Zildo
Gallo
Continuando
o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 13 de maio de 2016, num dia frio de outono, um
poema sobre a minha percepção da carta número 3 (três) do Tarô de Marselha, a Imperatriz.
Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a
mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais contemporâneas, como o Tarô dos
Orixás, por exemplo. A Imperatriz é a terceira carta da jornada arquetípica do
Tarô e, após ela, continuarei publicando um poema por semana e, ao cabo de 22
semanas, que teve início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em
forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.
A IMPERATRIZ
Senhora do mundo material,
Senhora da prosperidade,
Da abundância
E do alimento.
Senhora de tudo que nasce e cresce.
Só a Senhora,
No seu recolhimento alquímico,
Constrói a vida,
Partindo da minúscula semente,
E, ao término da sua tarefa,
Lança-a à luz do sol,
Como um arqueiro que atira flechas
No vazio do espaço,
Esperando que ele seja preenchido.
Grande Mãe,
A Grande Mãe
Dos nossos remotos ancestrais,
Que souberam reconhecê-la
Em cada ser vivente
Neste solo por onde caminhamos,
Este solo que é seu colo
Que nos acolhe,
Sem que disso demos conta,
Hoje,
Como filhos ingratos que nos tornamos.
Como mãe dos deuses e de todos os seres,
O seu desejo mais profundo
E verdadeiro
É que todos tenham em abundância
Tudo aquilo que é de verdade necessário,
O verdadeiramente necessário
À Caminhada de cada um
Neste planeta que leva seu nome:
Terra, Gaia, Gayatri...
Como toda mãe,
A Senhora sofre ante o sofrimento
E ante os tropeços enganosos de cada filho
seu,
Mas sabe que eles foram atirados
Como flechas ao mundo,
Ao livre arbítrio,
Para que façam o seu próprio caminho
Ao caminhar.
Muitas delas pousam em terrenos hostis
E acabam por se perder
E seu desejo é que elas encontrem
Um bom caminho
Ao caminhar.
Seus filhos já não lhe reconhecem
E ferem o seu colo
Acolhedor
E, não satisfeitos,
Escavam as feridas que sangram
Como lágrimas escorrendo,
Mas nem mesmo assim os abandona,
Pois, no seu derradeiro momento,
Acolhe cada um,
Em seu substrato material,
No seu generoso colo,
No seu útero cósmico.
COMPLEMENTO
Em complemento ao poema, reproduzo aqui
o artigo "Saber Cuidar: a Essência do Humano", que publiquei em 8 de
dezembro de 2014, neste blog, onde aparece a mãe Terra (Gaia) na fábula-mito do
Cuidado, que trata da criação do ser humano e da sua profunda ligação com a
Grande Mãe que, no Tarô de Marselha, eu a reconheço na carta da Imperatriz.
SABER CUIDAR: A ESSÊNCIA DO HUMANO
Zildo Gallo
Cuidado
é o tema principal do livro Saber Cuidar:
Ética do Humano – Compaixão pela Terra, de Leonardo Boff, onde ele resgata a
fábula-mito do Cuidado ou Fábula de Higino. Caio Júlio Higino, em latim Gaius Julius Higinus, foi um escritor da Roma Antiga (primeiro século a.C.). Sua principal obra chama-se Fábulas ou Genealogias. Trata-se da recompilação de 300 lendas,
histórias e mitos da tradição greco-latina. Eis a fábula:
Certa vez, depois de atravessar um rio, o deus Cuidado viu uma porção
de barro. Então, teve uma inspiração. Tomou um pouco de barro e deu-lhe uma forma.
Enquanto contemplava a sua obra, apareceu Júpiter, o senhor de todos os deuses.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele, o que Júpiter fez com satisfação.
Todavia, quando Cuidado quis dar um nome a sua criatura, Júpiter o proibiu, exigindo que
fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e
Cuidado discutiam, surgiu a deusa Terra. Ela quis também dar o seu nome
à criatura, pois fora feita de barro, que era material do seu próprio corpo,
provocando com isso uma discussão generalizada. Como não chegavam a um acordo,
chamaram Saturno para que funcionasse como árbitro da questão. Procurando ser
justo, Saturno tomou a sua decisão: "Você, Júpiter, deu-lhe o espírito e,
por isso, recebê-lo-á de volta quando a criatura morrer. Você, Terra, deu-lhe o
corpo e recebê-lo-á de volta quando da sua morte. Cuidado, como você foi quem moldou
tal criatura, ela deverá ficar sob seus cuidados enquanto viver. E, já que
vocês não chegam a um acordo sobre o seu nome, decido eu: esta criatura será
chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra
fértil”.
O ser humano nasceu, assim como todos os seres, do corpo da
Terra. Conforme a lenda, nasceu de uma terra fértil, do húmus da terra, que foi
trabalhada com esmero e muito cuidado pelo deus Cuidado. A palavra humilde
também deriva de húmus e, desta forma, ser humilde significaria reconhecer-se
filho da Terra, da sua fertilidade, assim como todos as demais criaturas que também
são filhas da mesma mãe, que também se formaram a partir do mesmo corpo, do
mesmo barro.
A partir da fábula-mito do cuidado, podemos elaborar uma linha de
raciocínio que pode levar-nos a entender o propósito maior da existência, o do
cuidado necessário com o ser humano, que deve refletir-se no cuidado com a
própria Terra, que é ao mesmo tempo nossa mãe e nossa casa, cuja maternidade e abrigo
dividimos com todos os seres vivos, nossos irmãos. Reconhecer-se filho da mesma
mãe significa compreender e respeitar a teia da vida que foi sendo construída lentamente, durante milhões e
milhões de anos no nosso planeta.
O mito do cuidado é mais que pertinente nos dias de hoje, pois
faz com que nos relembremos da nossa íntima ligação com a Terra, o nosso
planeta, instando-nos a que humildemente nos religuemos a ela, pois, neste
momento, ela também necessita dos nossos cuidados. Trata-se, metaforicamente,
da necessidade de uma volta para casa. Ele também pode servir como uma metáfora
de caráter educativo, pois serve para despertar naquele que lê uma reflexão
sobre a necessidade de cuidar dos seres humanos que sofrem e também de
transformar o cuidado recebido pelo deus Cuidado, sob as ordens de Saturno, no cuidado
com todos os outros seres viventes, com a própria Terra, por extensão.
O
cuidado surge quando a situação de existir de alguém tem importância para outro
alguém também existente, trata-se de uma relação, de um conjunto de relações. Alguém
sai de si mesmo e conecta-se a outros, que, reciprocamente, também fazem o
mesmo movimento. Por outro lado, a palavra cuidado significa preocupação, inquietação,
sentido de responsabilidade, pois aquele que cuida sente-se envolvido e afetivamente
ligado ao outro. Então, o cuidado é algo que se liga àquilo que é a essência
primitiva, a essência primeira, do ser humano, que não é a razão, mas o afeto. O
afeto antecede a razão; ele se encontra naquela situação de proteção que cada
ser humano recebe nos primeiros dias da sua vida, naqueles momentos em que está
totalmente dependente e indefeso em relação ao mundo que o cerca, naquele
momento em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao outro.
O
cuidado é o modo de ser do humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano e ele é
cuidado e se cuida em grupo, sendo dessa maneira um ser social. Caso não receba
cuidados, desde o nascimento até a morte, ele se desestrutura, definha e morre.
Ele recebe cuidados para aprender a cuidar. Ele deve aprender a cuidar de si
mesmo depois da sua infância, que é bem longa se comparada com a de outros
animais, para em seguida aprender a cuidar dos outros humanos e dos demais
seres vivos do planeta, pois tudo que vive precisa de cuidados para viver. Esta
é a regra do jogo neste mundo
Conforme
a fábula de Higino, o cuidado é fundamental para a existência e, neste sentido,
antecede o espírito soprado por Júpiter e o corpo esculpido por Cuidado com o
húmus fornecido pela deusa Terra. O Cuidado é a essência divina, é um a priori,
ele pré-existe. É aquele Eros, o puro amor, aquele deus grego que já existia na
noite dos tempos, antes mesmo da criação do universo.
Sem
cuidados a vida e os humanos não existiriam. Então, há que se ter cuidado com
tudo. É preciso ter compaixão com todos os seres que sofrem, humanos e não
humanos, obedecendo mais o coração,
seguindo mais a lógica da cordialidade do que a da competição e do uso
utilitário das coisas. Há que se ter cuidado com a Terra e com a sociedade, particularmente
com os excluídos, com todos, enfim.
Neste
momento, em desespero, tanto a Terra quanto a humanidade clamam por cuidados
essenciais. A degradação ambiental, a pobreza de milhões de pessoas e as
violências de todos os tipos precisam ser enfrentadas. Enfim, a grande crise
pela qual passa o planeta Terra, só pode ser enfrentada com mais cuidado, o que
resulta num clamor por um novo ordenamento ético para a humanidade e para o
nosso planeta.
Contudo,
as crises criam novas oportunidades e, neste momento, elas possibilitam
mergulhos na instância onde, segundo Leonardo Boff (2003), os valores são
continuamente formados. Segundo ele, a nova ética planetária “deve brotar da base última da existência
humana”. Ela não está na razão, como deseja o Ocidente. A razão não é a
essência da existência e por isso não pode explicar e nem abranger tudo. A
essência do existir está em “algo mais
elementar e ancestral: a afetividade”. Então, contrariando Descartes, que é
o pilar do saber ocidental, a experiência basilar não é o seu “penso, logo existo”, mas, segundo Boff,
é o “sinto, logo existo”.
Assim,
para Boff (2003), na raiz de todas as coisas não está a razão (logos), mas a paixão (pathos). “Pela paixão captamos o valor das coisas (...) Só quando nos
apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos movemos e somos”.
Neste ponto, Boff observa o surgimento de uma dramática dialética entre razão e
paixão, já que ele em absoluto não menospreza o papel da razão:
Se a razão reprimir a paixão, triunfa a
rigidez, a tirania da ordem e a ética utilitária. Se a paixão dispensar a
razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedonista, do puro gozo das
coisas. Mas, se vigorar a justa medida, e a paixão se servir da razão para um
autodesenvolvimento regrado, então emergem as duas forças que sustentam uma
ética promissora: a ternura e o vigor.
Leonardo
Boff (2003) considera que dessas premissas pode surgir uma ética que será capaz
de incluir toda a humanidade. Essa nova ética deverá estruturar-se em torno de
valores fundamentais ligados à vida, ao seu cuidado, ao fazer humano, às
relações cooperativas e à cultura da não violência e da paz. “É
um ethos que ama, que cuida, se responsabiliza, se solidariza e se compadece”.
Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
______. Saber cuidar: ética do
humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes 1999.
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