quarta-feira, 27 de julho de 2016

FUTEBOL DE MENINOS EM CRÔNICAS E POESIA

Hoje, 27 de julho de 2016, resolvi juntar numa única publicação quatro postagens que tratam de assuntos ligados a futebol de meninos. O futebol é uma das paixões da minha vida e, na minha infância já distante, eu posso agora dizer com certeza: era a primeira. Com esta publicação eu homenageio todas as crianças (de hoje e do passado) que como eu adoram futebol. Boa leitura e boas lembranças.

O TEMPO E A BOLA (25 de fevereiro de 2016)

Zildo Gallo



Rola a bola
e pula e rola
no terreno vazio de obras
o espaço das gentes pequenas
pernas e pés
correndo... correndo...
para frente
para trás
para frente
para trás
alegres...
incansáveis...
presentes...

Rola o tempo
e salta e corre
para a frente
para a frente
mais à frente...
o terreno apequena-se
as gentes ficam grandes
um prédio emerge
no meio do campo
a bola já não rola
pernas e pés
correm agora
cansados...
bambos...
ausentes...
para frente...
adiante...
numa linha sem horizonte
já quase desligada (esquecida)
do seu ponto de partida.

PS.: Escrito em outubro de 2001 e modificado em fevereiro de 2016.



Onze (11, o número mágico do futebol) notas sobre o futebol de meninos.

1. Olhando lá para trás, para os longínquos tempos da minha infância, observo que, de fato, desconheço melhor diversão para meninos do que o futebol.
2. Jogávamos praticamente todos os dias e o jogo acontecia em qualquer lugar, mas onde morava havia um terreno sem construção que transformamos em campo e nele jogamos durante alguns anos.
3. Nós mesmos estabelecíamos as regras do jogo, todos os dias. Era mais ou menos assim: vira aos 10 e acaba nos vinte e, assim, no décimo gol mudávamos de lado no campo; gol de goleiro não vale etc. Às vezes, as regras eram bem estranhas, mas combinado era combinado e pronto.
4. Brincávamos horas a fio com algumas pausas para descanso e para beber água. Nestes momentos conversávamos. Sobre o que? Adivinhem! Sobre os melhores lances da partida e cada um tinha a sua façanha para se gabar. Além de jogadores éramos comentaristas, cada um puxando a sardinha para a sua brasa, é óbvio.
5. Eu ia para a escola no período da manhã. Quando voltava para casa, almoçava, fazia a lição e disparava para o campinho. Aos poucos os meninos iam chegando, até que alguém gritava: "deu time!"
6. Com número suficiente de jogadores, organizávamos os times, sempre tomando o cuidado de não deixar os melhores craques no mesmo lado. Gostávamos de jogos bem disputados. Havia aí um senso de justiça.
7. Era uma infinidade de gols e haja garganta para comemorar cada um. Gols de calcanhar e os raríssimos de bicicleta tornavam-se lendas durante vários dias. Uma vez fiz um do meio do campo, fiquei insuportável durante algum tempo, mas o tempo passa...
8. Nos meses de férias o futebol começava já no período da manhã, todos os dias, com chuva e com sol, com chuva era muito divertido, não para as nossas mães que tinham que lavar as roupas embarreadas.
9. Reafirmando, todos os dias discutíamos as regras de cada partida e elas  tinham que ser respeitadas. Todo combinado era justo. Caso alguém reclamasse, a resposta era: "foi combinado!" Era um autoaprendizado muito democrático. Cada menino um voto, muito justo...
10. Tomar um chapéu ou uma bola no meio as pernas era motivo para gozação, muita gozação. A vítima não via a hora de que o acontecido caísse no esquecimento, mas costumava demorar.
11. Enquanto houvesse alguma luz, havia jogo. "Menino, vem tomar banho, já é noite!" Eram as mães chamando os craques mirins para o descanso necessário e merecido, depois de tanta correria, chutes, tombos, pancadas, raladas e gols, muitos gols, é claro.

FUTEBOL DE MENINOS: O CASO DO GOLEIRO INDISPENSÁVEL (20 de fevereiro de 2016)

Zildo Gallo

A minha adoração pelo futebol vem de longe, desde a primeira infância, mas foi na adolescência que ela de fato se consolidou. Como todo boleiro que se preze, tenho muitas histórias para contar, muitas mesmo, mas vou relembrar da minha experiência como goleiro, esta função que poucos desejam; todos querem ser atacantes e se imaginam marcando muitos gols. Ninguém quer ser goleiro. Como muitos, eu sempre achei que todo goleiro tem que ser um pouco louco.


Nos anos sessenta do século passado, nas brincadeiras infantis, quando dividíamos os times nos campinhos, conseguir goleiros sempre gerava alguma discussão, ou melhor, muita discussão. O revezamento era uma boa saída para a questão e geralmente era o que acontecia.

Como todos os outros meninos da minha convivência, eu preferia jogar no ataque, mas um dia isso mudou. Foi bem por acaso. Num dia, no ano de 1969, quando estudava no segundo ano do ginásio no Kennedy (Instituto Estadual de Educação Presidente Kennedy - IEEPK) em Americana (SP), numa aula de educação física, fui colocado no gol contra a minha vontade, é claro, para disputar uma partida de futebol de salão contra outra classe do segundo ano também.

O tempo regulamentar da partida terminou e o jogo estava empatado (não me lembro do placar). Fomos à disputa de pênaltis. Não costumávamos bater os pênaltis alternadamente. Em primeiro lugar um time finalizava a sua série de três e em seguida o outro iniciava a sua série. Caso houvesse empate, iniciava-se uma série alternada.

O time adversário iniciaria a sua série e, então, postei-me debaixo da trave. Não sei até hoje como aquilo se deu, foi pura magia e também um pouco de loucura, acho... Atirei-me ao encontro das bolas como que se estivesse sendo teleguiado pelos deuses do futebol e defendi os três chutes. Não me perguntem como, eu não sei. Lembro-me que os chutes foram bem dados, não foi sorte e nem erro dos adversários, juro!. A cada gol impedido comemorávamos, é óbvio... Hoje eu acredito que todo goleiro precisa ser bastante intuitivo, naquela época, como toda criança, não pensava a respeito disso. Logo depois o nosso primeiro batedor acertou o seu chute e, naquele dia e nos seguintes, virei assunto na roda dos meninos. Então, tornei-me goleiro, acabei pegando gosto pela coisa.

Fora da escola, nos campinhos da cidade, também jogava no gol. Vivia esfolado, mas ser reconhecido como bom goleiro era muito gratificante. Eu e vários meninos da classe resolvemos montar um time para competir com outros times juvenis espalhados pela cidade. Aí tem mais histórias, vou contar uma. Um garoto da minha sala de aula, que morava no bairro São Manoel, distante do centro da cidade e do Kennedy, e que não participava do nosso time, pois já tinha o seu onde residia, convidou-nos para uma partida.

Os jogadores do meu time moravam em bairros diferentes e distantes uns dos outros. Íamos aos jogos a pé, não importava a distância. Tudo pelo futebol... Também tínhamos todo o tempo do mundo No dia do jogo no São Manoel eu me perdi e não consegui encontrar o campo. No dia seguinte tive a noticia, uma má notícia: o nosso time perdeu. Todos me culparam pelo resultado negativo, mas marcaram uma revanche. Então, no dia marcado meus amigos tiveram o cuidado de passar na minha casa para seguirmos juntos até o local da partida, não queriam correr nenhum risco.

Hoje – nas alturas dos meus sessenta anos – lembro-me com nitidez do campinho do São Manoel. Era um terreno bem grande, não construído, é óbvio, e totalmente sem grama, um autêntico “rapadão”. Fechei o gol e ralei-me todo. Virei lenda... Aconteceram vários outros jogos, tanto na escola como nos campinhos da cidade, e isso durou até 1970, o ano em que o Brasil ficou tricampeão mundial de futebol no México.

Em 1971, transferi-me para o período noturno do Kennedy, pois tinha que trabalhar, e o nosso time acabou se desmanchando. As partidas de futebol tornaram-se esporádicas e eu encerrei a minha gloriosa carreira de goleiro, que não se encontra registrada em nenhuma revista, nenhum livro, nenhum filme e nenhuma fotografia. Ela está gravada apenas na minha memória e, a partir de agora, nesta humilde crônica.

PS.: a foto que ilustra o texto foi achada na internet e não lembra em nada os nossos campinhos (a trave tem rede!) que eram desprovidos de gramado. E o goleiro? Está usando luvas! Algo impensável na época.

O ROUBO DA BOLA DE CAPOTÃO (30 de abril de 2015)

Zildo Gallo



Devia ser o ano de 1966, já faz muito tempo, é difícil precisar a data depois de tantos anos decorridos. Éramos um grupo de meninos, todos bem crianças mesmo, nem púberes éramos ainda. O que nos ligava eram as muitas brincadeiras de rua e o futebol, muitas vezes jogado nas ruas também. Para esse esporte improvisávamos bolas quando não as tínhamos, enchendo meias velhas com trapos, dando-lhes uma forma o mais arredondada possível.
O município de Americana (SP) era pequeno naquela época e, apesar de não muito distante do centro da cidade, o lugar onde morávamos poderia ser visto como periférico. Outra coisa que nos ligava era a pobreza, pois poucos escapavam dessa condição naquela vizinhança. Havia muitos meninos no nosso grupo, muitos mesmo, e, num dado momento, não sei exatamente porque e como, desejamos montar um time de futebol, para disputarmos partidas com outros times infantis que existiam na cidade. Achávamo-nos bons de bola o suficiente. Só precisávamos de uma boa bola de capotão.
Um desejo não atendido ou, melhor, impossibilitado de ser atendido, pode levar-nos a fazer coisas não recomendadas pela moral e os bons costumes. Na infância, quando a personalidade está em construção, quando a noção de certo e errado é ainda muito movediça, o "Diabo pode atentar", como diziam os mais velhos. Um dia ele chegou e atentou. Alguns garotos, às escondidas do restante do grupo, foram até o centro da cidade atrás de uma bola, mas só um deles teve a coragem de fazer o combinado. Ele dirigiu-se até a porta de uma loja de produtos esportivos e, quando notou que ninguém estava olhando, pegou uma bola que estava em exposição perto da porta e sumiu, sem que ninguém percebesse.
No mesmo dia ele apareceu no terreno onde brincávamos como uma bola velha, caindo aos pedaços, como costumeiramente fazíamos. Chegou todo orgulhoso, ostentando a bola de capotão de tamanho oficial, acho que era uma Drible; a cor, eu tenho certeza, era branca. Contou-nos o ocorrido e pediu segredo, acho que tinha receio de que seus pais soubessem. Foi assim que conseguimos a nossa bola, de uma forma nem um pouco convencional e lícita. Muito mais tarde é que fui compreender que o nosso silêncio colocou-nos como cúmplices. Este é um aprendizado mais refinado e eles vem com o tempo, com o amadurecimento.
Já tínhamos a bola, mas faltava o jogo de camisas. Quanto a esse objetivo, agimos coletivamente e fizemos uma campanha na vizinhança, pedindo ajuda a todos os nossos conhecidos e parentes, juntando um pouco aqui, um pouco ali. Deu certo, muitos contribuíram e conseguimos comprar o jogo de camisas na loja onde a bola foi roubada. Fizemos isso sem pensar. Talvez fosse a única loja que vendia jogos de camisas, talvez... não sei... Viramos um time, de fato. Adotamos como nome do time o nome do nosso bairro, se não me falha a memória, já se vão cinquenta anos.
O garoto que conseguiu a bola era o nosso melhor jogador, um craque mesmo, era o que eu achava. O tempo foi passando, passando e passou. O nosso time já não mais existia, tornei-me adolescente e cursava o ginásio. Nessa época, num dia qualquer, tomei um baita susto com uma notícia que me chegou, não me lembro exatamente como. Aquele nosso craque foi pego em flagrante furtando dinheiro do escritório onde trabalhava como office-boy. Lembro que a minha cabeça girou: será que deveríamos ter contado aos seus pais sobre o delito cometido? será que seus pais realmente não sabiam? será? será? Confesso que senti alguma culpa, culpa mesmo, pois isso nunca me saiu da cabeça. Caramba! que bela bola era aquela... Como devolvê-la? Como perder o nosso objeto desejado? Será que o Diabo morava nos nossos desejos, como acreditavam os mais velhos? Com o passar dos anos eu fui percebendo que eles tinham razão.
Depois desse episódio nunca mais tive notícias do garoto bom de bola. Pelo que sei ele, que era menor de idade à época, parou por aí. Nunca mais tivemos notícias de nenhum outro acontecimento ilegal. Acho que o susto de ser pego e o fato de ficar à disposição e vigiado pelo Juizado de Menores por algum tempo serviu para corrigir os desvios de caráter. Ainda bem. Naqueles tempos Americana era uma cidade tranquila, com baixo nível de criminalidade. Lembro-me que andávamos à pé pelas madrugadas, voltando de festinhas e nunca corríamos perigos. Fatos como o que relatei eram bem raros e muito mais raros eram os episódios envolvendo violência; quando acontecia algum, era uma espantosa comoção pública.
O tempo foi passando, passando e chegamos aos dias atuais. Hoje, Americana conta com uma estrutura desportiva ampla e pública esparramada pela cidade, o que não acontecia na minha infância. Assim, acredito que o grande desejo dos meninos da cidade não deve ser uma bola de futebol, pois vejo que muitos têm e, quando não têm, a Prefeitura tem e todos podem jogar. Na minha infância, ter uma boa quadra desportiva, um bom campo de futebol e uma boa bola era o máximo. Poucos tinham acesso, só as crianças oriundas de famílias mais ricas de fato tinham, já que elas frequentavam clubes privados, inacessíveis à maioria da população.
E daí, acabaram-se os desejos? Não, de jeito nenhum. Vivemos numa sociedade que produz desejos, muitos desejos, um após o outro. Todo dia um novo desejo é criado, sem que nos demos conta. Hoje as crianças desejam tênis de marca, vídeo games, celulares etc. Os desejos são criados de forma bem mais ostensiva que nos anos sessenta do século passado, quando ainda não éramos, de fato, uma autêntica "sociedade de consumo". Os desejos são criados, mas o acesso a eles ainda não é para todos. O acesso só é possível aos que têm renda, isso que Keynes (economista britânico) chamou de demanda efetiva. Assim, o sonho de ter um tênis bacana na infância não é para todos. Quem nunca ouviu falar de um menino que se viu obrigado a tirar seu tênis por "meninos de rua" e voltar descalço para casa? Eu já, várias vezes.
A criação contínua de desejos, os mais variados possíveis, pela propaganda a serviço da indústria numa sociedade muito desigual como a nossa não pode ser considerada uma coisa boa e, de fato, não é. O aumento da violência, com destaque para os furtos praticados por menores de idade, é um bom exemplo disso. Exigir que crianças, seres em formação, sublimem seus desejos, quando eles são diuturnamente enfiados nas suas pequenas cabeças pelos meios de comunicação, parece-me no mínimo um contrassenso. Na verdade, considero uma grande hipocrisia, pois tentam inculcar a culpa nas vítimas. A hipocrisia é a marca, a grife mais conhecida, da sociedade de consumo.
Quando escrevo estas palavras, sei que muitos entre aqueles que nunca se sentiram privados do acesso aos bens de consumo talvez não consigam compreendê-las. Para compreendê-las é preciso que saiam do seu mundo protegido, indo além dos seus bunkers, os condomínios fechados e os shopping centers protegidos, e se coloquem no lugar dos excluídos, dos muitos excluídos. Eles são muitos mesmo. Não é uma tarefa fácil em tempos tão individualistas, egoístas mesmo, como os tempos atuais, mas é uma tarefa necessária. O colocar-se no lugar dos que sofrem é um ato de caridade, é a verdadeira caridade propugnada pelo cristianismo, que encontra as suas raízes na compaixão. Estamos num país majoritariamente cristão, ou não? Será que somos como aqueles fariseus, aos quais Jesus chamava de sepulcros caiados, que agem como zeladores prestimosos dos bons costumes, das leis, que são belos na aparência e podres por dentro? Aliás, o que conta na sociedade de consumo é a aparência; trata-se de uma sociedade farisaica. Alguém discorda?

O MENINO AMERICANO E A BOLA DE CAPOTÃO  (1 de abril de 2015)

Zildo Gallo












Muitas vivências e fatos da nossa existência, por mais longínquos que estejam no tempo, sempre permanecem na memória. Permanecem porque carregam significados singulares, especiais. Muitos deles, caso analisemos rapidamente, podem parecer sem importância, mas, caso insistamos na observação, caso não "deixemos para lá", o que corriqueiramente costumamos fazer, sempre acabaremos por achar algum significado profundo escondido. A história que relato a seguir é um caso desses.
No final dos anos 60 do século passado, quando morava em Americana (SP), à rua Frederico Pollo, na Vila Jones, numa situação de muita pobreza e dificuldades econômicas concretas (existe dificuldade econômica não concreta?), eu e vários meninos da minha rua e das proximidades, que também enfrentavam situações parecidas, uns mais outros menos, vivenciamos durante algum tempo uma história inédita, até mesmo estranha, dada as nossas condições limitadas de vida e da percepção diminuta que tínhamos do mundo, pelo menos a minha era assim. Apesar da estranheza, a história era bem agradável, tanto que grudou nas paredes da minha memória.
Antes de narrar os acontecimentos pretéritos, que são bem curtos e singelos, acho conveniente descrever o cenário do enredo e, ao mesmo tempo, acrescentar algumas informações que, com o correr do tempo, fui adquirindo sobre a história de Americana, cidade na qual vivi a maior parte da minha infância, toda a adolescência e parte da idade adulta. São informações que considero importantes para a compreensão do sincrônico encadeamento dos fatos.
O nome do bairro, Vila Jones, homenageia uma das famílias de imigrantes americanos confederados, que começaram a se instalar, entre 1865 e 1885, nas terras próximas ao ribeirão Quilombo que, posteriormente, formarão o município de Americana. Os Jones são uma família com visibilidade e importância na história local. A senhora Judith Mac Knight Jones, esposa do Dr. James Roderick Jones (Jaime Jones, assim ele era chamado pelos brasileiros), além de ter no currículo o fato de ser tia de Rita Lee Jones, nossa eterna rainha do rock, também escreveu um livro importante, que resultou de uma grande pesquisa histórica, sobre a imigração e a instalação dos imigrantes confederados no Brasil do segundo império: Soldado Descansa! uma Epopeia Norte Americana sob os Céus do Brasil.
O cenário dos acontecimentos que vou narrar foi onde hoje funciona uma escola estadual, entre quatro ruas: Rua Washington Luis, Rua Florindo Cibin, Rua Martins Fontes e Rua Guilherme de Almeida. Neste quarteirão, nos anos 60 e 70, havia um campo de futebol, o Canto do Rio. Acredito que se chamava assim porque estava localizado perto da microbacia do Córrego Pyles, que ficava no sítio dos Jones. O nome do córrego, Pyles, também homenageia uma família de imigrantes americanos.
Quando eu me mudei para Americana com minha família, em 1963, o Canto do Rio estava vivendo um processo de deterioração. Antes, ele era bem cuidado e tinha, inclusive, em todo o lado que margeava a Rua Washington Luis, uma arquibancada construída com tijolos e concreto. Com o abandono, várias famílias começaram a saquear a arquibancada para, com os tijolos dali extraídos, ampliarem as suas residências; a arquibancada desapareceu em muito pouco tempo.
Apesar da degradação, o campo nunca deixou de ser usado enquanto tal, até que virasse uma escola. Que legal que tenha virado escola! Nos finais de semana ele era utilizado por um time que se formou a partir dos frequentadores do bar de um posto de gasolina na Avenida Campos Salles, o Servicentro Esso. Meu pai, Aristides, que trabalhava no posto, no seu primeiro emprego em Americana, também jogava no time, que era composto, na sua maioria, por operários das fábricas de tecidos da região, que, ao final da tarde, quando saíam do trabalho, paravam no bar, conhecido por todos como Bar do Posto, onde bebiam alguma coisa e jogavam conversa fora, antes de irem para sua casas. Tenho na memória alguns nomes de jogadores: Buzina, Piti, Viola e Japão. Lembro-me também que Piti era surdo-mudo e Japão era o borracheiro do posto. Guardei-os porque os achava engraçados, acho que é por isso, não sei, a memória é uma coisa muito estranha.
Durante os dias úteis da semana o Canto do Rio era das crianças. De manhã eu ia para a escola e à tarde rumava para o campo, onde encontrava outros meninos. Ficávamos esperando, conversando bobagens, até que aparecesse alguém com uma bola. Havia poucos meninos proprietários de bolas de futebol, eram os "donos da bola". E os donos de uma bola de capotão de tamanho oficial? Esses eram uma raridade, raridade mesmo. Uma bola Drible de couro, costurada à mão, de tamanho número cinco, grandona, era muito cara; naquela época ela era um desejo praticamente impossível de ser alcançado pela esmagadora maioria dos meninos do Canto do Rio.
Contudo, às vezes, os desejos mais difíceis podem ser atendidos, como num passe de mágica. Num dia, não me lembro de qual ano, eu e meus amigos esperávamos alguém com uma bola e eis que de repente, não mais que de repente (como no poema de Vinícius de Moraes), apareceu um menino que chegava acompanhado pelo pai. Ele era muito diferente dos meninos dali, comigo incluso, era alto, do tipo forte e tinha o rosto claro e rosado. Apresentou-se como Johnny, num português com sotaque engraçado, pelo menos eu achei engraçado. E, o que é mais importante: ele trazia consigo uma bola de capotão oficial, branquinha, lindona.
Johnny era americano e ficaria no Brasil por algum tempo. No tempo que ficou em Americana, ele virou o verdadeiro "dono da bola". Acredito que nenhum outro gringo tenha sido tão bem recebido e tão festejado como ele. Acredito que ele mesmo não saiba disso, com certeza. Brincamos muito com a bola de capotão do Johnny. Ele foi o primeiro americano que conheci pessoalmente. Conhecíamos os descendentes dos confederados, um americano legítimo como ele estava num outro nível e, ainda mais, ele tinha uma bola de capotão número cinco.
Um dia o Johnny foi embora e levou consigo a bola de capotão, nada mai justo. Um americano que gostava de futebol naquela época era uma raridade, a posse da bola era muito mais que merecida. Todavia, o mundo é sempre uma caixinha de surpresas.
Muitos anos mais tarde, quando trabalhava como professor no Departamento de Economia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) foi que fiquei sabendo o nome completo do Johnny, John Cowart Dawsey. Ele foi professor da UNIMEP entre 1989 e 1996, conforme informa o seu Currículo Lattes. Eu, por minha vez, lecionei na universidade entre 1987 e 2006. Jung chama essas coincidências, que ele não considera assim, de sincronicidade.
Hoje, o Johnny (John Cowart Dawsey) é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e vejo, pelo seu Lattes, que ele é um pesquisador produtivo. Ele é uma espécie de "dono da bola" na sua área de conhecimento. Os comentários que ouço sobre ele são sempre abonadores Quanto ao futebol, tenho informações que ele continua gostando do esporte bretão como antes. Só que agora ele não é mais uma raridade, pois muitos americanos gostam de futebol, mas o menino Johnny foi um pioneiro nesta questão, isto ninguém tira dele.

PS.: A história é verdadeira, aconteceu mesmo. Resolvi transformá-la numa crônica, numa crônica sobre o futebol das crianças em tempos difíceis. A bola é um símbolo, um desejo, é um meio e, ao mesmo tempo um objetivo. Não é o jogador que atinge a meta (o gol), mas a bola chutada por ele. Por ser redonda, não sabemos onde começa e onde termina, o que é um enigma. Por ser redonda ela rola, se não rolasse, o futebol não seria possível. A posse de uma bola de qualidade era na minha infância uma forma de poder. Todavia, o poder tinha que ser exercido de forma democrática, porque não dá para jogar futebol sozinho. Esta é a beleza desse esporte: o "dono da bola" tem que dividir a bola para poder jogar.

terça-feira, 26 de julho de 2016

SEMEADURA E COSMO

Zildo Gallo 
Garimpar imagens na imensidão da internet e observá-las pode ser um bom exercício para compreender o mundo. Muitas vezes as imagens falam por si mesmas, como nas fotografias de Sebastião Salgado, mas elas podem (servem) para ilustrar crônicas e poemas como é o caso do meu poema "Semeadura e Cosmo", que escrevi depois de um trabalho espiritual em dezembro de 2001, em Araçoiaba da Serra (SP). As imagens podem ajudar na compreensão de textos, podem? Elas podem falar mais que os textos. À imagem e ao poema!

SEMEADURA E COSMO

Há que se preparar a terra
E lançar as sementes.
Brotarão girassóis
Que se movimentam
À busca de luz.


Zildo Gallo – Araçoiaba da Serra, SP, 16 de dezembro de 2001

segunda-feira, 25 de julho de 2016

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: A TORRE

Zildo Gallo

Continuando o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 25 de julho de 2016, num dia invernal ensolarado, seco e não muito frio, um poema sobre a minha percepção da carta número 16 (dezesseis) do Tarô de Marselha, a Torre. Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais novas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. A Torre é a décima sexta carta da jornada arquetípica do Tarô e, após ela, continuarei publicando pelo menos um poema por semana e, ao cabo de mais ou menos 20 semanas, com início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.


A TORRE

Com o brilho da mente astuta ergui
O mais sólido de todos os castelos,
Pedra sobre pedra, pedra sobre pedra,
E no ponto mais alto do mais alto
Suspendi a inexpugnável torre,
De onde, orgulhoso, comando os batalhões.

Nada de baixo pode atingir-me
E lá fora estão todos os outros
E cá no mais dentro de dentro estou eu,
Bem protegido pelo jogo das guerras mentais,
Que me defende de tudo aquilo
Que não quero e nem desejo ver.

Isto posto, chega-me uma dura verdade:
Neste mundo nada é inabalável
E, inevitavelmente, tudo se move.
Ao bem da minha verdade eu tenho que me dizer:
A minha fortaleza tem a imaginária solidez
Dos castelos erguidos com lâminas de baralho.

Em verdade, também tenho que me dizer:
O meu castelo foi engendrado para ruir,
Para que eu experimente o desapego em liberdade,
Da liberdade de viver a vida longe dos muros
Que separam meu quintal imaginado
Do mundo verdadeiro que lá fora viceja.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

ENTENDENDO O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Zildo Gallo

Este artigo foi publicado originalmente em 27 de novembro de 2014. Pela importância do tema para a humanidade nos dias de hoje, resolvi republicá-lo hoje, 20 de julho de 2016. Trata-se de uma rápida e necessária discussão sobre o conceito de desenvolvimento sustentável. A palavra sustentabilidade está sendo abusada e o seu significado está sendo perdido, pois foi apropriada pelos marqueteiros como mote para vender quaisquer coisas, inclusive coisas nada sustentáveis do ponto de vista socioambiental. Ao artigo!


A partir do início da década de 1970, travaram-se muitas discussões sobre revisões do con­ceito de desenvolvimento, no sentido de ampliar a sua abrangência, indo além do mero crescimento econômico, para nele incorporar as dimensões sociais e ambientais. Tratava-se de um debate necessário e urgente. Assim, alternativas de desenvolvimento que incluíam a preservação ambiental e os ganhos sociais foram definidas como ecodesenvol­vimento, desenvolvi­mento sustentável, desenvolvimento alternativo, etc.

O conceito de ecodesenvolvimento foi usado pela primeira vez em 1973 por Mau­rice Strong (membro da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento - CMMAD). Todavia, foi Ignacy Sachs (1986) quem formulou os princípios bási­cos desta nova visão de desenvolvimento, integrando seis aspectos básicos que deveriam orientar o crescimento econômico: 1) a satisfa­ção das necessidades básicas; 2) a solidariedade com as futuras gerações; 3) a par­tici­pação da população envolvida; 4) a preservação do meio ambiente e dos recur­sos naturais; 5) estruturação de um sistema social que garanta emprego, segurança social e respeito a outras culturas e; 6) programas de educação.

O ecodesenvolvimento foi apresentado como uma estratégia de desenvol­vi­mento que negava o crescimento econômico destruidor dos recursos naturais. Ele propôs uma nova ética para o desenvolvimento, reforçando a necessidade de se usar os recursos natu­rais de cada ecossistema de forma cuidadosa pelas popula­ções. O objetivo do crescimento econômico deveria ser o de melhorar a qualidade de vida das pessoas e a satisfação de suas necessidades básicas, utilizando tecnolo­gias ambientalmente adequadas.

Ao contrário do ecodesenvolvimento, que sobreviveu por um curto período de tempo, o con­ceito de desenvolvimento sustentável, seu contemporâneo, permane­ceu. Isto aconteceu, talvez, em função de ter sido adotado em documentos impor­tantes como o Nosso Futuro Comum (Relatório Brundtland, 1987) e o Informe da Comissão de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (1991). Sua definição mais conhe­cida foi registrada em 1987 no documento Nosso Futuro Comum“o desenvolvi­mento sustentável é aquele que atende às necessida­des do presente sem compro­meter a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessi­dades” (CMMAD, 1991, p. 46). Sachs usa os conceitos ecodesen­volvi­mento e desenvolvimento sustentável como sinônimos.

O Relatório Brundtland, apresenta um rol de medidas que de­vem ser tomadas pelos estado nacionais para que eles possam garantir a susten­tabilidade do desenvolvimento: 1) manutenção de um nível populacional sustentá­vel; 2) garantia de alimentação no longo prazo; 3) preservação da biodiversidade e dos ecossistemas; 4) diminuição do consumo de energia e adoção de tecnologias baseadas em fontes renová­veis; 5) aumento da produção industrial nos países não industrializados na base de tecno­logias ecologicamente adaptadas; 6) controle da urbanização selvagem e integração entre campo e cidades menores; 7) satisfação das necessidades básicas.

A satisfação das necessidades e das aspirações humanas é o principal ob­je­tivo do desenvolvimento. Para a CMMAD (1991, pp. 46-47), “num mundo onde a pobreza e a injus­tiça são endêmi­cas, sempre poderão ocorrer crises ecológicas e de outros tipos”. Para que o desenvolvi­mento seja sustentável é necessário “que todos te­nham aten­didas as suas necessidades básicas e lhes sejam proporcionadas oportu­nidades de concretizar suas aspirações a uma vida melhor”.

O desenvolvimento sustentável não é um estado de harmonia permanente. Trata-se de um processo onde o uso dos recursos, o destino dos investimentos, os caminhos do desenvolvimento da tecnologia e as mudanças institu­cionais devem estar de acordo com as necessidades do presente e do futuro. Não se trata de um processo fácil. As escolhas são difíceis. “Assim, em última análise, o desenvolvimento sustentável depende do empenho político” (CMMAD, p. 10).

Como estratégia para se atingir o desenvolvimento sustentável faz-se ne­ces­sária a consideração das questões econômicas e ecológicas nos processos de to­mada de deci­sões, visto que, nas atividades do mundo real, economia e ecologia estão integradas. Nesse sentido são necessárias mudanças de atitudes e ob­jetivos e a adoção de novas disposições institucionais em todos os níveis: munici­pal, estadual e federal. A sustentabilidade requer responsabilidades maiores com os impactos das deci­sões. Para tanto, mudanças fazem-se necessárias nas estruturas legais e institu­cionais no sentido do reforço do interesse comum. Contudo, a lei por si só não consegue impor o interesse comum, que requer também a conscientização e o apoio da comunidade, o que implica em maior participação pública nas decisões que afetam o meio ambiente e a sociedade.

Para se conseguir o exposto acima, a melhor maneira é a descentralização admi­nistrativa dos recursos de que dependem as comunidades locais, concedendo-lhes voz ativa sobre o seu uso, através do estímulo às iniciativas dos cidadãos e das organizações populares e do fortalecimento da democracia local, pois as ações sociais e ambientais passam dominantemente pelo espaço local, dado que elas estão muito mais visíveis nos municípios, além do fato de que o poder local, em tese, encontra-se mais próximo do cidadão. A descentralização da gestão pública ajuda e é necessária ao processo de busca do desenvolvimento sustentável.

Em junho de 1992, aconteceu no Rio de Janeiro a Conferência da ONU so­bre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD). O documento mais im­portante que resul­tou do encontro foi a Agenda 21, que se trata de um programa de ação em forma de reco­mendações. Conforme a Secretaria da CNUMAD, para a implantação plena da Agenda, eram necessários gastos da ordem de 625 bilhões de dólares ao ano, incluindo aí uma transferência de 125 bilhões do Norte para o Sul, a título de Assistência Oficial ao Desen­volvimento, o que significava, em 1993, 70 bilhões a mais que o nível de transferência praticado naquele período (SACHS, 1993, p.59). Em 2003, 11 anos depois, Washington Novaes (2005, p. 325) informou que a ajuda dos países ricos não aumentou e estava em 56 bilhões de dólares/ano, comprovando o descaso dos ricos do pla­neta.

A Agenda 21 global reconhecia desde o início que o desenvolvimento sus­tentável e a proteção do meio ambiente só se viabilizariam com o apoio das comu­nidades locais. No Brasil, a partir de 1992, alguns estados e vários municípios decidiram construir suas Agen­das 21. No nível nacional, o processo começou em 1997, por iniciativa do Ministério do Meio Ambiente, envolvendo cera de 40 mil pessoas nas discussões estaduais, e foi con­cluído em 2002. Novaes (2005, p.325) avalia que este foi o maior processo de participação para definir políticas públicas no Brasil.

Foram realizados seis diagnósticos setoriais que apontaram a situação vi­gente em seis áreas básicas, os conflitos, as estratégias e as ações prioritárias. As áreas escolhidas foram as que seguem: 1) gestão dos recursos naturais; 2) agricul­tura sustentável; 3) cida­des sustentáveis; 4) redução das desigualdades sociais; 5) infraestrutura e integração regional; 6) ciência e tecnologia para o desenvolvi­mento sustentável. O amplo processo de consulta, que se deu após a realização dos diagnósticos preliminares e que contou com várias etapas, foi todo registrado e resultou na Agenda 21 brasileira. O material produzido nesse processo, um con­junto de documentos muito valiosos, foi publicado e pode (deve) ser consultado por estados, municípios e cidadãos (NOVAES, 2005, pp. 325-331).

Ignacy Sachs – membro do grupo que auxiliou no preparo das Conferên­cias de Es­tocolmo e do Rio de Janeiro e dos dois encontros preliminares sobre desen­volvimento e meio ambiente que as antecederam, Founex (1971) e Haia (1991) – em seu trabalho Es­tratégias de Transição para o Século XXI: Desenvol­vimento e Meio Ambiente, defende que devem ser consideradas no processo de desenvolvi­mento, de forma simultânea, cinco dimensões de sustentabilidade: social, econômica, ecológica, espacial e cultural, abrangendo, assim, os mais amplos aspectos ambientais e da vida em sociedade. Cos­tanza, citado por Sachs (1993, p. 24), de forma cristalina, assim entende a questão da sustentabilidade:

Sustentabilidade é um relacionamento entre sistemas econômicos dinâmi­cos e sistemas ecológicos maiores e também dinâmicos, embora de mu­dança mais lenta, em que: 1) a vida humana pode continuar indefinida­mente; 2) os indivíduos podem prosperar; 3) as culturas humanas podem desenvolver-se; mas em que 4) os resul­tados das atividades humanas obedecem a limites para não destruir a diversidade, a complexidade e a função do sistema ecológico de apoio à vida.

Sachs (2004, p. 25), numa análise mais recente, considera que o conceito de desenvol­vi­mento tem evoluído, incorporando experiências tanto positivas como negativas e refletindo as mudanças políticas e os modismos intelectuais. E, por falar em mo­dismos, o autor analisa os pontos de vista dos intelectuais “pós-moder­nos” e dos “fundamentalistas de mercado” sobre a questão do desenvolvimento.

Segundo ele (2004, p. 25), os primeiros propõem a renuncia do conceito do desenvolvimento e alegam que ele contribui para “per­petuar as relações assimétricas entre as minorias dominadoras e as mai­orias dominadas”, dentro dos países e entre os países. Eles propõem avançar para um estado de pós-desen­volvimento, mas sem esclarecer o que seria isso. Contudo, têm razão quando duvidam da possibilidade de crescimento indefinido da produção material, por conta da finitude do planeta. Esta verdade óbvia, tomada isolada­mente, deixa uma questão aberta: como supe­rar os dois maiores problemas não resolvidos no século XX e herdados pelo século XXI: o desemprego em massa e as desigualdades sociais cres­centes? Parece que não dá para, simplesmente, abandonar a ideia de desenvolvimento.

O segundo grupo, por sua vez, considera o desenvolvimento como um con­ceito re­dundante. Os seus membros entendem que o desenvolvimento vem como resultado natural do crescimento econômico, graças ao “efeito cascata”. Não faria sentido pensar uma teoria sobre o desenvolvimento. A teoria do “efeito cas­cata”, caso funcionasse, o que, na reali­dade, não ocorre, é inaceitável em termos éticos, pondera Sachs, pois, “num mundo de desigualdades abismais, é um ab­surdo pre­tender que os ricos devam ficar mais ricos ainda, para que os destituídos possam ser um pouco menos destituídos”. Então, Sachs volve o olhar para o economista Amartya Sen que defende a urgente reaproximação da ética, da econo­mia e da política e cita as palavras de Gandhi: “as economias que ignoram considerações morais e senti­mentos são como bonecos de cera que, mesmo tendo aparência de vida, ainda carecem de vida real” (SACHS, 2004, pp. 26-27).

O desenvolvimento sustentável, como já foi visto, deve obede­cer ao imperativo ético da solidariedade com as gerações presentes e futuras e também exige que se explicitem os critérios de sustentabilidade social e am­biental e de viabilidade eco­nômica. Resumindo: “apenas as soluções que conside­rem estes três elementos, isto é, que promovam o crescimento econômico com impactos positivos em termos sociais e ambien­tais, merecem a denominação de desenvolvi­mento” (SACHS, 2004, p36).

Duas coisas ficam claras em toda esta conversa: 1) a sustentabilidade não pode significar não desenvolvimento, pois o não desenvolvimento significa claramente não resgatar os milhões de seres humanos que vivem na miséria; 2) em todo seu processo, o desenvolvimento não pode desconsiderar a solidariedade com as gerações futuras, garantindo que elas tenham os mesmos recursos de que dispõe a geração atual.

Tornar o desenvolvimento econômico sustentável trata-se de um bom desafio para todos os seres humanos, indistintamente. Até mesmo a simples permanência da ideia de sustentabilidade como uma utopia, ainda que por um tempo relativamente longo, pode ser muito útil, pois minimamente serve como um farol para os navegantes do planeta Terra.

Referências
COMISSÃO DE DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE. Nossa própria agenda. Rio de Janeiro: BID e PNUD, 1992.
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE DE DESENVOLVI­MENTO (CMMAD). Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1991. (Relatório Brundtland – 20 de março de 1987)
COSTANZA, Robert. Ecological economics: the science and management of sustainability. Nova York, Columbia University Press, 1991.
______. The ecological economics of sustainability: investing in natural capital. In Goodland et alii (eds.). Environmentally sustainable economic development: Building on BrundtlandUNESCO, 1991.
NOVAES, Washington. Agenda 21: um novo modelo de civilização. In: TRI­GUEIRO, André (coord.). Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2005.
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2004.
______. Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio am­biente. São Paulo: Studio Nobel: Fundação do Desenvolvimento Administrativo – FUNDAP, 1993.


______. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Edições Vértice, 1986.

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: O DIABO

Zildo Gallo

Continuando o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 20 de julho de 2016, num dia invernal ensolarado, seco e com baixas temperaturas, um poema sobre a minha percepção da carta número 15 (quinze) do Tarô de Marselha, o Diabo. Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais novas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. O Diabo é a décima quinta carta da jornada arquetípica do Tarô e, após ela, continuarei publicando pelo menos um poema por semana e, ao cabo de mais ou menos 20 semanas, com início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.


O DIABO

Olha bem para mim!
Não há nada para temer...
Não sei porquê te espantas,
Sou teu amigo velho e habito
Nos teus desejos mais secretos,
Nos teus impulsos mais reprimidos.

Montaram-me aos pedaços,
Com restos de bichos e de gente,
Mas sabes que não sou assim,
O teu falso medo deforma a minha real beleza;
De fato, sou o teu amigo mais secreto
E te sigo feito sombra por onde fores.

Tu te prendes a mim por magnética corrente,
Feita de alegrias delirantes e pungentes dores.
Estou nos prazeres que te levam por instantes às alturas
E também às profundezas das cavernas
Mais grudentas, sombrias e assombradas,
Que se enfiam na dureza da crosta terrestre.

Afirmo-te com a mais indelicada firmeza:
Não ascenderás aos reinos celestiais,
Se não conheceres os reinos carnais,
Onde comando como absoluto senhor que sou
E onde tudo é apenas uma distorção
Do que se apresenta nos outros.

Não adies o teu encontro comigo,
Pois é tolamente inútil fazê-lo.
Somente relaxe e assim de fato verás
Que sou apenas a tua caricatura,
O lado escuro da tua verdadeira luz,
Que eu até posso ajudar a (re)iluminar.


sexta-feira, 15 de julho de 2016

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: A TEMPERANÇA

Zildo Gallo

Continuando o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 15 de julho de 2016, num anoitecer invernal, muito seco e com temperatura anormalmente quente, um poema sobre a minha percepção da carta número 14 (quatorze) do Tarô de Marselha, a Temperança. Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais novas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. A Temperança é a décima quarta carta da jornada arquetípica do Tarô e, após ela, continuarei publicando pelo menos um poema por semana e, ao cabo de mais ou menos 20 semanas, com início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.


A TEMPERANÇA

Apareço na tua vida feito um anjo alquímico
Preparando a tua sagrada bebida,
O vinho santo da tua Santa Ceia,
O sagrado Soma dos deuses do Oriente,
Prontos para te orientar.

Apareço como um guia celestial
Apto a conduzir-te no real caminho da luz,
Mas, com segurança, eu te asseguro:
Não verás a luz divina antes de iluminar
Os subterrâneos onde tuas sombras se alojam.

Asseguro-te, com toda minha divinal placidez:
A aterradora descida ao mundo sombrio
Não é tarefa alegre, fácil e tranquila,
Mas ela não te aniquilará, ao contrário,
Ela te ressuscitará da tua morte em vida.

Apenas te peço:
Muita calma e tranquilidade,
Nem te peço que te apresses,
Apenas que aceites que eu te guie,
Pois teu tempo se estende até o infinito.



TEMPO E ROUPA SUJA