sábado, 30 de abril de 2016

Primeiro de maio chegou e o trabalhador continua acorrentado

Zildo Gallo

Neste primeiro de maio de 2016, comemora-se o Dia do Trabalho no mundo todo. No Brasil a sua comemoração acontece num ambiente de muita tensão por conta da luta contra a tentativa de golpe contra a Presidenta Dilma, que foi reeleita pelo Partido dos Trabalhadores, em 2014, contra a vontade da imprensa e de grande parte do empresariado nacional. Muitas manifestações estão ocorrendo em todo território nacional e elas são de suma importância, porque a queda da Presidenta poderá significar a perda de muitos direitos sociais conquistados no correr da história das lutas trabalhistas brasileiras.

Todavia, a situação da classe trabalhadora não está difícil só no Brasil. O capitalismo mundial vive neste momento uma grave crise e os trabalhadores estão sendo as grandes vítimas dela em todo mundo Nada de novo, pois também foi assim nas outras outras crises, como a de 1929, por exemplo. Depois dessa grande crise, a atual apresenta-se como a mais grave e o seu desfecho parece distante e incerto. Não dá para se fazer previsões seguras.

Neste momento grave da história da humanidade, quando se assiste a um ataque frontal contra os assalariados e pobres do planeta, quando a renda concentra-se de forma nunca antes vista nas mãos de poucas famílias, em detrimento da imensa maioria da população, faz-se necessária uma compreensão da real situação do trabalho nos tempos de hoje, partindo de uma volta ao passado distante, como sói razoável fazê-lo, para que se possa alinhavar argumentos válidos para a instituição de um ponto de partida que leve à saída da crise e à emancipação dos trabalhadores.

No sentido do exposto acima, eu reproduzo aqui o artigo que escrevi neste blog em 21 de dezembro de 2014. Acredito que ele lança luzes tanto sobre a história do trabalho e dos trabalhadores desde a antiguidade como para a situação presente de ambos. Ao artigo!

O homem humanizado e a sociedade: o papel do trabalho




Falar do homem enquanto um ser humano parece redundante, mas não é, pois o homo sapiens, enquanto espécie animal, enquanto ser vivente, é um projeto em construção, um projeto humanizante em permanente elaboração e reelaboração. Ele está posto como um vir a ser, um devir, um transformar-se, um tornar-se novo, portanto, ele ainda não é, ele será. Ele sempre está carecendo de se humanizar. Então, humanizar trata-se de um processo e, de forma bem simples, humanizar significa tornar humano. Indo um pouco mais além: para tornar humano é preciso despertar valores humanos.
O ser humano está em permanente elaboração. A palavra elaboração vem de labor, que é trabalho em latim. Daí extraímos três possíveis situações: 1) o homem é um ser que trabalha; 2) que constrói pelo trabalho e; 3) que se constrói pelo seu trabalho. Todas as três possibilidades são reais e, ao mesmo tempo, complementares. Desta forma, é mais que lícito afirmar que o fazer humano é que constrói o ser humano enquanto tal. Simplificando, se possível: o homem é um ser que transforma (modifica) a natureza externa, que enxerga a sua própria natureza (que se vê na sua natureza interna) e que transforma a sua própria natureza. Resumindo: à medida que ele transforma o mundo ele também se transforma, dá outra forma ao seu mundo interior. Lá pelos idos do século XIX, Friedrich Engels falava do sobre "o papel do trabalho na transformação do macaco em homem", suspeito que ele tinha razão.
Por sua vez, a palavra trabalho vem da palavra latina tripalium, que era um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes munidos de pontas de ferro, com o qual os agricultores batiam o trigo para separá-lo da espiga. A maioria dos dicionários, contudo, registra o tripálio apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente, ou, talvez, se tornado depois. O tripálio (do latim tri: três e palus: pau, literalmente, "três paus") é um instrumento romano de tortura, um tripé formado por três estacas cravadas no chão na forma de uma  pirâmide no qual eram supliciados os escravos. Daí derivou-se o verbo do latim vulgar tripaliare que significava, a princípio, torturar alguém no tripálio. É comumente aceito entre os linguistas que esses termos deram origem, no português, às palavras "trabalho" e "trabalhar", ainda que no seu sentido original o "trabalhador" fosse um carrasco, e não aquele que labora, que elabora e que se elabora, como entendemos hoje em dia.
Parece estranho a palavra trabalho derivar de um instrumento de tortura. Entretanto, se olharmos para a história do trabalho, veremos que faz todo sentido. As palavras não se formam do mero acaso. Então, olhemos para a história do trabalho.
Na pré-história, do paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Mas essa situação não dura, pois nos primórdios das primeiras cidades ela se modifica, com o surgimento do trabalho escravo, do patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos do território dominados pelos patriarcas. Sugiro aqui a leitura de uma obra clássica: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels (1884).
A civilização nasce com vários aspectos sombrios e uma dessas sombras é a apropriação do trabalho alheio de forma arbitrária e violenta, através do trabalho escravo. O escravo é um indivíduo destituído da sua liberdade e que vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e negociável, como uma mercadoria. Na verdade, stricto sensu, é uma mercadoria como qualquer outra mercadoria.
No correr dos séculos, a exploração do trabalho sofreu várias mudanças, mas ainda permanecem situações muito obscuras, como se verá na sequencia. Na idade média europeia, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho servil, principalmente na agropecuária. Os trabalhadores já não eram uma mercadoria negociável, mas não podiam sair das terras de seus senhores e estavam sujeitos a normas draconianas impostas por esses senhores feudais, que tudo podiam, já que eram a lei, a polícia e o juiz. Além disso, grande parte da produção camponesa era consumida pela aristocracia agrária e pelos seus soldados, deixando os trabalhadores da terra em constante situação de pobreza e, muitas vezes, de fome.
Todavia, nem toda relação de trabalho era opressiva na idade média europeia, pois havia um tipo de trabalho livre, que era o trabalho artesanal. O artesão era dono da sua oficina e das suas ferramentas e vendia a sua produção que, naquela época, era feita, na sua maioria, sob encomenda. Alfaiates, pintores, escultores, marceneiros, construtores, entre outros, exerciam o seu trabalho de forma livre. Tratava-se de um trabalho criativo, com começo, meio e fim e, por conta disso, prazeroso e, ainda por cima, melhor remunerado que o trabalho camponês.
A expansão da manufatura na Europa com maior ênfase a partir do século XV, já criando um princípio de estrutura fabril, começou a diminuir a importância do trabalho artesanal, aumentando o assalariamento na produção de mercadorias manufaturadas. Abrindo parêntesis: é importante lembrar aqui que a partir do século XV, o trabalho escravo foi recriado nas colônias Europeias, com destaque para as Américas. Entretanto, a destruição da produção artesanal ocorrerá definitivamente com a Primeira Revolução Industrial, que tem seu início no final do século XVIII na Inglaterra. A partir daí, as oficinas dos artesãos serão fechadas e eles se tornarão assalariados. Nessa época também ocorrerá um êxodo rural de grande monta e levas e mais levas de camponeses serão lançados no mercado de trabalho da indústria nascente e crescente. Trata-se de um período de extrema exploração do trabalhador: salários baixos, jornadas de trabalho extensas, trabalho infantil e feminino abusivos, situações de grande insalubridade nos locais de trabalho, entre outras formas de degradação e o que é mais importante, o trabalho deixou de ser criativo, tornando-se repetitivo e monótono. A melhor definição para essa forma de trabalho é "trabalho alienado".
Uma forma de remediar os efeitos nefastos do trabalho alienado, levantada já no século XIX por pensadores sociais como Karl Marx e Paul Lafargue, e que adquiriu um certo consenso no meio dos cientistas sociais que vieram a seguir, é a redução da jornada de trabalho. Com isso as pessoas poderiam fazer coisas criativas, inteligentes e agradáveis no seu tempo livre. E, de fato, do século XIX até os dias de hoje, as jornadas de trabalho diminuíram muito, com destaque para os países europeus. Recentemente, o sociólogo Domenico De Masi retomou a discussão sobre a importância do tempo livre no seu livro "O ócio criativo".
Com o correr da história e com as lutas de resistência dos operários, que se organizaram em sindicatos e partidos políticos, a exploração foi diminuindo e as condições de trabalho foram paulatinamente melhoradas. Os salários subiram, as jornadas foram reduzidas e muitos benefícios foram introduzidos nas relações entre capital e trabalho, tais como férias remuneradas, aposentadoria, entre outras, melhorando as condições de vida da maioria da população, que é assalariada, e diminuindo a pobreza nos países industrializados.
À Primeira Revolução Industrial seguiu a Segunda Revolução, na segunda metade do século XIX, que completou a industrialização na Europa e se estendeu aos Estados Unidos e Japão. No século XX a industrialização se estende a países como Brasil, Argentina, entre outros, trata-se de um desenvolvimento tardio. O que é interessante de se notar é que, tanto na Segunda Revolução quanto na industrialização tardia, muitos benefícios serão incorporados, tornando o trabalho menos árduo que na Primeira Revolução, são avanços efetivos, há que se considerar.
Entretanto,  no que diz respeito à criatividade no trabalho, a situação pouco mudou, pois o trabalho industrial continuou repetitivo e monótono, por conta do excessivo parcelamento das atividades nas linhas de montagem (lembram-se do Charlie Chaplin em Tempos Modernos?). Todavia, em contrapartida, a moderna divisão do trabalho produz um resultado benéfico à sociedade, que é o barateamento das mercadorias, que foi preconizado por Adam Smith, o pai da economia política, na sua magnífica obra, Riqueza das Nações.
Parecia que tudo estava caminhando bem, mas no final do século XX, principalmente por conta do crescimento da indústria na Ásia, com destaque para a China, Singapura, Vietnã etc., que se dá de forma precária (jornadas excessivas, baixos salários, condições insalubres etc.), a situação do trabalho e dos trabalhadores sofreu um revés em todo mundo, incluindo aí a Europa e os Estados Unidos. A concorrência internacional fez aumentar o desemprego fora dos países asiáticos e as condições de trabalho também pioraram, principalmente por conta das terceirizações, chegando a registrar, inclusive, muitas ocorrências de trabalho similar ao escravo, como no caso da indústria de roupas feitas no Estado de São Paulo. Em muitos casos a situação retrocedeu ao que era nos séculos XVIII e XIX e até pioraram, como no caso do trabalho escravo.
Do exposto até aqui surgem algumas questões: 1) será que a exploração do homem pelo homem e das nações por outras nações é o único modus operandi possível para a civilização?; 2) será que a produção de bens de consumo precisa dar-se de forma tão alienada, alijando em demasia os trabalhadores dos processos criativos, para que tais bens sejam acessíveis à maioria das pessoas?; 3) será que a necessidade permanente de acúmulo de riquezas pelos países, o desejado e buscado "desenvolvimento econômico" tem que se dar de forma tão competitiva e predatória, onde tudo vale, num tipo de guerra permanente entre todos?
Laudas e mais laudas já foram escritas sobre estas questões e muitas outras ainda serão produzidas e não serão em demasia, pois parece até possível que toda essa enorme e desenfreada competição dê cabo da civilização. A crise ambiental, com destaque para o aquecimento global, já está dando o seu alerta. Não são apenas as pessoas que são passíveis de exploração, a natureza também tem sido explorada além da sua capacidade de suporte. Então, completo aqui a primeira questão acima levantada: será que a exploração abusiva da natureza também faz parte do modus operandi da civilização?
É mais que evidente que parar ou diminuir o ritmo dessa grande máquina (civilização), que foi posta em movimento com o surgimento das primeiras cidades, é um trabalho hercúleo - olha o  trabalho aí de novo! Quiçá seja possível redirecionar a máquina da civilização positivamente, sem que ela se desmonte, jogando a humanidade num estado de barbárie. Será possível fazê-lo? Esta é uma questão a ser respondida com a devida urgência. Todavia, não se trata de uma tarefa para um herói em particular, mas de uma árdua tarefa para toda humanidade, o que a torna muito difícil, entretanto imprescindível.
Por onde começar? A resposta a esta questão é difícil e, talvez, por conta disso, a melhor forma de iniciar seja retrabalhando o significado do trabalho. Outros valores também necessitam de ressignificação, mas como o trabalho é um elemento fundante da humanidade, talvez seja o mais importante, é de bom alvitre começar por ele. Durante a maior parte da história da civilização o trabalho esteve associado ao sofrimento, como já foi visto, e, por conta disso, foi estigmatizado. Há que se resgatar a dignidade do trabalho e, para tanto, precisamos compreendê-lo na sua profundidade, atingindo a sua essência.
Comecemos por lembrar que o homem é um ser social e que, neste sentido, o trabalho é um elemento essencial à socialização. A forma como cada ser humano trabalha determina a sua forma de ser e o seu conjunto de relações. Ele começa a trabalhar para cuidar de si e dos membros do seu grupo, com destaque para as crianças, que necessitam de proteção plena e não têm como produzir a sua própria existência. Então, desde o seu início, o trabalho surge também como um serviço prestado ao outro. Estou falando aqui do trabalho essencialmente humano, que significa utilizar-se da natureza e modificá-la a seu serviço, criando com isso um processo que não se repete apenas, mas que aumenta a sua dimensão e que se aperfeiçoa, criando isso que conhecemos como cultura.
A humanidade precisa fazer mea culpa e ressignificar positivamente o trabalho. Ela precisa abolir todas as formas de aviltamento das relações trabalhistas existentes e elas ainda são muitas. O trabalho meramente repetitivo precisa diminuir e quando isso não for de todo possível, deverá ter seus efeitos negativos minimizados, a redução das jornadas pode ajudar neste sentido, liberando tempo para que as pessoas exerçam a sua criatividade de alguma forma.
Cabe reforçar aqui a ideia de que trabalhar significa uma relação de cuidado (ver meu artigo Saber cuidar: a essência do humano, neste blog) e que o cuidado determina o modo de ser humano. Os humanos são cuidados quando crianças, passam a cuidar quando ficam adultos e recebem cuidados na sua velhice. Tudo isso implica em afetividade e o afeto, neste sentido, é a essência mais profunda do ser humano. O trabalho escravo, ainda sobrevivente, e as demais degradações laborais, como a exploração das crianças e das mulheres, entre outras, vão no sentido contrário à essência humana.
Começar pela ressignificação do trabalho no imaginário coletivo da humanidade talvez seja o primeiro passo a ser dado. A partir daí, outros passos serão dados, criando um movimento sustentado positivamente, resgatando os valores humanos, que sempre se formam a partir do cuidado e do afeto. Depois disso, o trabalho ressignificado (re)assumirá o seu real papel na história da humanidade que é o de serviço, ajudando-a a seguir na sua trajetória humanizante. Trabalho e serviço passarão a ser, de fato, sinônimos. Só mais uma última consideração: a urgência é necessária.
Referências
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. São Paulo: Editora Sextante, 2000.
ENGELS. Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Rio de Janeiro: Global Editora, 1990.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro Editora, 2006.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre a sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural, 1985.




quinta-feira, 28 de abril de 2016

É JUSTO? (1)

ZILDO GALLO

Garimpar imagens na internet e compará-las pode ser um bom exercício para compreender o mundo nos dias de hoje. Muitas vezes as imagens falam por si mesmas, como nas fotografias de Sebastião Salgado, por exemplo, mas elas podem (servem) para ilustrar crônicas e poemas como é o caso do meu poema "Parto Prematuro", que também poderia chamar-se "Predestinação". Em 1979, quando escrevi este pequeno poema, não havia a internet com a sua abundância de imagens disponíveis de todo o nosso planeta. As imagens podem ajudar na compreensão de textos, podem? Às imagens e ao poema!

POUQUÍSSIMOS MORAM ASSIM

MUITÍSSIMOS MORAM ASSIM


PARTO PREMATURO

Nascer no quarto-sala-cozinha
de terra batida
cheirando a molhado;
nascer na alcova
adornada
cheirando a rosas
compradas no florista.

Zildo Gallo - Americana, SP, 20 de novembro de 1979


terça-feira, 26 de abril de 2016

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: O LOUCO

Zildo Gallo

A partir de hoje, 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu comecei a postar poemas que retratam a minha visão sobre os arcanos maiores do Tarô. Desde 1990 eu venho estudando as mais diferentes versões do oráculo conhecido como Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais contemporâneas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. Começo pela carta número 0 (zero), representada pela figura do louco, que no baralho de jogar (arcanos menores) equivale à figura do Curinga. Pretendo publicar um poema por semana e ao cabo de 22 semanas terei passado a minha visão sobre todos os arcanos maiores.



O LOUCO

Estou aqui
Ou ali
Ou acolá
Se me querem fico
Senão me vou
E fico
E vou
É bem assim que sou
Bem aqui aonde estou

Na minha trouxa carrego
Tudo de nada
Nada de tudo
Tudo de tudo carregar
A cabeça não me faz
Minha cabeça de vento
Leve ao vento
Leva o vento

Sempre pronto para dar
A minha mortal pirueta
E voltar
E ir
E voltar
E a minha própria sombra enganar

Não tenho rabo
Como meu cachorro tem o seu
Mas sempre atrás dele corro
Como ele atrás do seu
Suspeito que ele lá está
Sempre... sempre a me espreitar

Que me olhem
Que se espantem
Gargalho e sigo hoje
Como ontem
Em algum lugar posso parar
Mas gosto mesmo é de andar
Distraído... distraído...
Bambeando
Para lá e para cá
A beira do precipício
Sem medo do fundo vazio

Se caio
O corpo desce à terra
E o espírito alça voo
Rumo ao infinito e além
Nada ter
Nada a temer
O que perder?

Distinta plateia
Aplausos!
Aplausos!
Clap! Clap! Clap!
Senhoras e senhores
O espetáculo vai começar
E o palhaço o que é?
Ele é: é trelelé!
E chega de trololó!
Muitos me acham louco,
Outros muitos me têm como tolo,
Mas, na verdade,
Na verdade mais verdadeira,
Eu sou é um andarilho caminhado
À procura de um caminho.


quinta-feira, 14 de abril de 2016

Homenagem a Carlos Castañeda

Zildo Gallo

Carlos César Salvador Arana Castañeda, mais conhecido como Carlos Castañeda (1925-1998), foi um antropólogo formado pela Universidade da Califórnia que ganhou fama após a publicação, em 1968, de sua dissertação de mestrado intitulada The Teachings of Don Juan - a Yaqui way of knowledge, lançada no Brasil como A Erva do Diabo. Esta sua primeira obra tornou-se um fenômeno de vendas entre os jovens do movimento hippie e da contracultura, que chegaram a transformar o antropólogo num guru da nova era. Formaram-se legiões de admiradores que queriam, por conta própria, inclusive, reviver as experiências xamânicas descritas no seu livro. A sua obra também foi muito debatida no meio acadêmico, sobretudo porque se tratava de uma publicação de cunho científico que despertara os interesses juvenis.


No Brasil, num primeiro momento, as suas obras foram proibidas pela ditadura militar por se acreditar que elas incentivavam a juventude ao uso de drogas, como no caso do cacto Peiote e do cogumelo Pscilocybe Mexicana, descritos em rituais xamânicos no seu primeiro livro, A Erva do Diabo.
Em 1974, não consigo precisar o ano com firmeza, chegou-me às mãos um exemplar do livro A Erva do Diabo, que li com muita curiosidade, pois a minha geração começou a se interessar e se informar sobre o xamanismo, as culturas indígenas, as religiões e filosofias orientais, num claro e fortíssimo contraponto à cultura, filosofia e espiritualidade ocidentais. Castañeda era mais um dos autores a contribuir com informações para a rebelião da minha geração contra tudo que representasse o status quo. Em plena ditadura, vivíamos a questionar tudo e todos e procurávamos escritores que poderiam contribuir neste sentido. Herman Hesse foi outro autor importante, pelo menos para mim, não só para mim, é óbvio, e poderá ser assunto de uma nova crônica. Aguardemos.
Um trecho do livro A Erva do Diabo repercutiu durante anos na minha vida e, cada vez mais, ele se mostra carregado de sentido, principalmente a partir do momento em que comecei a questionar com mais vigor a racionalidade cartesiana do Ocidente. Foi mais ou menos assim que seu mestre indígena, o xamã Dom Juan, se expressou: Olhe bem para cada caminho, e com propósito. Experimente-o tantas vezes quanto achar necessário. Depois, pergunte-se, e só a si, uma coisa. Essa pergunta é uma que só os muito velhos fazem. Meu benfeitor certa vez me contou a respeito, quando eu era jovem, e meu sangue era forte demais para poder entendê-la. Agora eu a entendo. Dir-lhe-ei qual é: esse caminho tem coração?”
Para Dom Juan, qualquer caminho era válido, desde que tivesse coração, fazendo um contraponto aos caminhos escolhidos só pela razão, só pela mente. Esta compreensão do xamã está muito mais próxima do saber oriental que do saber ocidental, sem nenhuma dúvida. Então, a forma de ver a vida e de se relacionar com a natureza das populações nativas das Américas diferem na essência da visão de mundo dos conquistadores europeus. Foi isto que Carlos César Salvador Arana Castañeda aprendeu com seu guru indígena.
Considerando a importância do antropólogo e escritor Carlos Castañeda na minha formação intelectual juvenil rebelde, muito rebelde, em 2002, escrevi um pequeno poema para homenageá-lo e ele fala exatamente do caminho que tem coração. Ao poema.

TRIBUTO A CARLOS CASTAÑEDA

O destino nos coloca escolhas
E podemos fazê-las
Iluminados pela razão
Ou tocados no coração.

A razão nos leva à construção
Do edifício exterior
Imagem sólida
Imóvel.

O coração nos direciona
À construção do edifício interior
Imagem fluida
Que se move e penetra
Em cada fresta
De porta ou janela que se abre.


Zildo Gallo - Piracicaba, SP, 20 de fevereiro de 2002

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Reflexões: o Papa Francisco, a Oração de São Francisco e os dias de hoje

Zildo Gallo
O cardeal católico argentino Jorge Mario Bergoglio tornou-se o primeiro pontífice do hemisfério sul do nosso planeta em 13 de março de 2013. Só isto já significa um grande feito, mas a sua eleição está carregada de outros aspectos relevantes para a humanidade dos dias de hoje. Apesar de ser um sacerdote jesuíta, ele adotou Francisco como seu nome religioso, em homenagem ao santo fundador da ordem dos franciscanos.
Este ato do cardeal Bergoglio significa muito mais que uma mera homenagem ao santo italiano que ficou conhecido como amigo dos pobres, dos marginalizados e de todas as criaturas da natureza, pois resgatou elementos fundantes do cristianismo original, que foram sendo perdidos ou desconsiderados no correr dos séculos da história da Igreja Católica Romana, quando ela aliou-se à aristocracia rural nos longos anos da Idade Média europeia e, até mesmo antes, quando se tornou a religião oficial do Império Romano, abandonando aqueles que foram os primeiros seguidores do Senhor de Nazaré e de seus apóstolos, no caso os humildes e os excluídos. Tudo isto é história e muita gente conhece, voltemos aos dias de hoje.
A humanidade vive hoje um momento singular e grave. A concentração de renda no capitalismo mundial chegou às raias do absurdo e a própria sobrevivência humana com o mínimo de dignidade está em grave risco, por conta da crise ambiental, que já mostra o seu lado perverso. A pobreza extrema, fome, epidemias, devastação de biomas, aquecimento global, guerras, violências dos mais variados tipos, consumo exagerado de entorpecentes, escassez de água doce com qualidade adequada para consumo, uso abusivo de agrotóxicos etc. estão piorando as condições de vida não só dos pobres, mas até mesmo dos mais ricos.
Diante desta gravíssima situação, o Papa Francisco produziu um documento de suma importância para este momento da história humana: a Lettera Enciclica Laudato Si' del Santo Padre Francesco sulla Cura della Casa Comune (Carta Encíclica Laudato Si' do Papa Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum), que enxerga todos os seres, humanos e não humanos, interligados numa imensa rede e se movimentando em necessária igualdade de direitos, numa clara alusão à mensagem de São Francisco.


A Cara Encíclica é importante neste momento porque, do ponto de vista da convivência dos seres humanos em sociedade, a situação só tem se agravado, pois talvez este seja o momento de maior individualismo da história dos homens. Boa parte da humanidade confiou de forma cega nas palavras do filósofo e economista Adam Smith, o pensador britânico que considerou a essência humana como egoísta, já que, para ele, os  homens buscam a todo custo, durante todo o tempo, a satisfação dos seus desejos individuais e que o mercado com sua onipresente “Mão Invisível” conduz todo esse conjunto de aspirações individuais para a concretização do bem-estar coletivo. A partir do final do século XVIII, a partir de Adam Smith, os defensores do capital divinizaram o mercado e as consequências disso estão mais do que evidentes, basta que se observe à volta: consumo exagerado por parte dos que têm renda e carência absoluta de tudo para os milhões de desprovidos.
O bem-estar social não é a somatória dos bem-estares individuais como desejam os liberais modernos, também conhecidos como neoliberais. O bem-estar coletivo é produzido coletivamente, em sociedade. A sociedade é o agente e não o indivíduo centrado no seu egoísmo hedonista. Há muito tempo atrás, São Francisco de Assis mostrou que o caminho era outro, o do altruísmo, o da alteridade, o do preocupar-se com outro. Este é o significado da opção do cardeal Bergoglio pelo nome Francisco para seu pontificado: resgatar a dimensão solidária do ser humano. Não é tarefa fácil nestes tempos tão individualistas e egoístas, mas é a grande tarefa de sua igreja, de todas as outras igrejas e de toda humanidade, congregando religiosos e laicos. É isto ou a barbárie. Não tem outra saída e não é o mercado que tem condições de levar a cabo este imenso desafio.
A Oração da Paz, também conhecida como Oração de São Francisco de Assis pode servir como guia e inspiração para a consecução dos objetivos urgentes e necessários à construção de uma nova civilização, que deverá sustentar-se na cooperação em substituição à competição, que é estimulada em tudo e em todos os lugares pelos aparelhos ideológicos do modo de produção capitalista.
Antes de apresentar a Oração, que é muito conhecida, acho necessário escrever bem rapidamente sobre a sua origem. Parece que ela surgiu pouco antes da Primeira Guerra Mundial. Suas origens são obscuras e seu autor é desconhecido. “A Oração da Paz” apareceu pela primeira vez em 1913 numa pequena revista local da Normandia, na França.  Foi o Marquês de la Rochetulon, fundador do semanário católico Souvenir Normand, quem enviou a oração ao então Papa Bento XV. Nessa época, em toda parte faziam-se orações pela paz, uma vez que a Europa inteira debatia-se com os terrores da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A partir daí ela esparramou-se pelo mundo. Eis a Oração da Paz, também conhecida como Oração de São Francisco de Assis:

Oração da paz - Oração de São Francisco de Assis

Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz;
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé;
Onde houver erros, que eu leve a verdade;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei com que eu procure mais consolar,
Que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado;
Pois é dando que se recebe;
É perdoando, que se é perdoado;
E é morrendo que se vive para a vida eterna.



TEMPO E ROUPA SUJA