sábado, 30 de abril de 2016

Primeiro de maio chegou e o trabalhador continua acorrentado

Zildo Gallo

Neste primeiro de maio de 2016, comemora-se o Dia do Trabalho no mundo todo. No Brasil a sua comemoração acontece num ambiente de muita tensão por conta da luta contra a tentativa de golpe contra a Presidenta Dilma, que foi reeleita pelo Partido dos Trabalhadores, em 2014, contra a vontade da imprensa e de grande parte do empresariado nacional. Muitas manifestações estão ocorrendo em todo território nacional e elas são de suma importância, porque a queda da Presidenta poderá significar a perda de muitos direitos sociais conquistados no correr da história das lutas trabalhistas brasileiras.

Todavia, a situação da classe trabalhadora não está difícil só no Brasil. O capitalismo mundial vive neste momento uma grave crise e os trabalhadores estão sendo as grandes vítimas dela em todo mundo Nada de novo, pois também foi assim nas outras outras crises, como a de 1929, por exemplo. Depois dessa grande crise, a atual apresenta-se como a mais grave e o seu desfecho parece distante e incerto. Não dá para se fazer previsões seguras.

Neste momento grave da história da humanidade, quando se assiste a um ataque frontal contra os assalariados e pobres do planeta, quando a renda concentra-se de forma nunca antes vista nas mãos de poucas famílias, em detrimento da imensa maioria da população, faz-se necessária uma compreensão da real situação do trabalho nos tempos de hoje, partindo de uma volta ao passado distante, como sói razoável fazê-lo, para que se possa alinhavar argumentos válidos para a instituição de um ponto de partida que leve à saída da crise e à emancipação dos trabalhadores.

No sentido do exposto acima, eu reproduzo aqui o artigo que escrevi neste blog em 21 de dezembro de 2014. Acredito que ele lança luzes tanto sobre a história do trabalho e dos trabalhadores desde a antiguidade como para a situação presente de ambos. Ao artigo!

O homem humanizado e a sociedade: o papel do trabalho




Falar do homem enquanto um ser humano parece redundante, mas não é, pois o homo sapiens, enquanto espécie animal, enquanto ser vivente, é um projeto em construção, um projeto humanizante em permanente elaboração e reelaboração. Ele está posto como um vir a ser, um devir, um transformar-se, um tornar-se novo, portanto, ele ainda não é, ele será. Ele sempre está carecendo de se humanizar. Então, humanizar trata-se de um processo e, de forma bem simples, humanizar significa tornar humano. Indo um pouco mais além: para tornar humano é preciso despertar valores humanos.
O ser humano está em permanente elaboração. A palavra elaboração vem de labor, que é trabalho em latim. Daí extraímos três possíveis situações: 1) o homem é um ser que trabalha; 2) que constrói pelo trabalho e; 3) que se constrói pelo seu trabalho. Todas as três possibilidades são reais e, ao mesmo tempo, complementares. Desta forma, é mais que lícito afirmar que o fazer humano é que constrói o ser humano enquanto tal. Simplificando, se possível: o homem é um ser que transforma (modifica) a natureza externa, que enxerga a sua própria natureza (que se vê na sua natureza interna) e que transforma a sua própria natureza. Resumindo: à medida que ele transforma o mundo ele também se transforma, dá outra forma ao seu mundo interior. Lá pelos idos do século XIX, Friedrich Engels falava do sobre "o papel do trabalho na transformação do macaco em homem", suspeito que ele tinha razão.
Por sua vez, a palavra trabalho vem da palavra latina tripalium, que era um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes munidos de pontas de ferro, com o qual os agricultores batiam o trigo para separá-lo da espiga. A maioria dos dicionários, contudo, registra o tripálio apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente, ou, talvez, se tornado depois. O tripálio (do latim tri: três e palus: pau, literalmente, "três paus") é um instrumento romano de tortura, um tripé formado por três estacas cravadas no chão na forma de uma  pirâmide no qual eram supliciados os escravos. Daí derivou-se o verbo do latim vulgar tripaliare que significava, a princípio, torturar alguém no tripálio. É comumente aceito entre os linguistas que esses termos deram origem, no português, às palavras "trabalho" e "trabalhar", ainda que no seu sentido original o "trabalhador" fosse um carrasco, e não aquele que labora, que elabora e que se elabora, como entendemos hoje em dia.
Parece estranho a palavra trabalho derivar de um instrumento de tortura. Entretanto, se olharmos para a história do trabalho, veremos que faz todo sentido. As palavras não se formam do mero acaso. Então, olhemos para a história do trabalho.
Na pré-história, do paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Mas essa situação não dura, pois nos primórdios das primeiras cidades ela se modifica, com o surgimento do trabalho escravo, do patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos do território dominados pelos patriarcas. Sugiro aqui a leitura de uma obra clássica: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels (1884).
A civilização nasce com vários aspectos sombrios e uma dessas sombras é a apropriação do trabalho alheio de forma arbitrária e violenta, através do trabalho escravo. O escravo é um indivíduo destituído da sua liberdade e que vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e negociável, como uma mercadoria. Na verdade, stricto sensu, é uma mercadoria como qualquer outra mercadoria.
No correr dos séculos, a exploração do trabalho sofreu várias mudanças, mas ainda permanecem situações muito obscuras, como se verá na sequencia. Na idade média europeia, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho servil, principalmente na agropecuária. Os trabalhadores já não eram uma mercadoria negociável, mas não podiam sair das terras de seus senhores e estavam sujeitos a normas draconianas impostas por esses senhores feudais, que tudo podiam, já que eram a lei, a polícia e o juiz. Além disso, grande parte da produção camponesa era consumida pela aristocracia agrária e pelos seus soldados, deixando os trabalhadores da terra em constante situação de pobreza e, muitas vezes, de fome.
Todavia, nem toda relação de trabalho era opressiva na idade média europeia, pois havia um tipo de trabalho livre, que era o trabalho artesanal. O artesão era dono da sua oficina e das suas ferramentas e vendia a sua produção que, naquela época, era feita, na sua maioria, sob encomenda. Alfaiates, pintores, escultores, marceneiros, construtores, entre outros, exerciam o seu trabalho de forma livre. Tratava-se de um trabalho criativo, com começo, meio e fim e, por conta disso, prazeroso e, ainda por cima, melhor remunerado que o trabalho camponês.
A expansão da manufatura na Europa com maior ênfase a partir do século XV, já criando um princípio de estrutura fabril, começou a diminuir a importância do trabalho artesanal, aumentando o assalariamento na produção de mercadorias manufaturadas. Abrindo parêntesis: é importante lembrar aqui que a partir do século XV, o trabalho escravo foi recriado nas colônias Europeias, com destaque para as Américas. Entretanto, a destruição da produção artesanal ocorrerá definitivamente com a Primeira Revolução Industrial, que tem seu início no final do século XVIII na Inglaterra. A partir daí, as oficinas dos artesãos serão fechadas e eles se tornarão assalariados. Nessa época também ocorrerá um êxodo rural de grande monta e levas e mais levas de camponeses serão lançados no mercado de trabalho da indústria nascente e crescente. Trata-se de um período de extrema exploração do trabalhador: salários baixos, jornadas de trabalho extensas, trabalho infantil e feminino abusivos, situações de grande insalubridade nos locais de trabalho, entre outras formas de degradação e o que é mais importante, o trabalho deixou de ser criativo, tornando-se repetitivo e monótono. A melhor definição para essa forma de trabalho é "trabalho alienado".
Uma forma de remediar os efeitos nefastos do trabalho alienado, levantada já no século XIX por pensadores sociais como Karl Marx e Paul Lafargue, e que adquiriu um certo consenso no meio dos cientistas sociais que vieram a seguir, é a redução da jornada de trabalho. Com isso as pessoas poderiam fazer coisas criativas, inteligentes e agradáveis no seu tempo livre. E, de fato, do século XIX até os dias de hoje, as jornadas de trabalho diminuíram muito, com destaque para os países europeus. Recentemente, o sociólogo Domenico De Masi retomou a discussão sobre a importância do tempo livre no seu livro "O ócio criativo".
Com o correr da história e com as lutas de resistência dos operários, que se organizaram em sindicatos e partidos políticos, a exploração foi diminuindo e as condições de trabalho foram paulatinamente melhoradas. Os salários subiram, as jornadas foram reduzidas e muitos benefícios foram introduzidos nas relações entre capital e trabalho, tais como férias remuneradas, aposentadoria, entre outras, melhorando as condições de vida da maioria da população, que é assalariada, e diminuindo a pobreza nos países industrializados.
À Primeira Revolução Industrial seguiu a Segunda Revolução, na segunda metade do século XIX, que completou a industrialização na Europa e se estendeu aos Estados Unidos e Japão. No século XX a industrialização se estende a países como Brasil, Argentina, entre outros, trata-se de um desenvolvimento tardio. O que é interessante de se notar é que, tanto na Segunda Revolução quanto na industrialização tardia, muitos benefícios serão incorporados, tornando o trabalho menos árduo que na Primeira Revolução, são avanços efetivos, há que se considerar.
Entretanto,  no que diz respeito à criatividade no trabalho, a situação pouco mudou, pois o trabalho industrial continuou repetitivo e monótono, por conta do excessivo parcelamento das atividades nas linhas de montagem (lembram-se do Charlie Chaplin em Tempos Modernos?). Todavia, em contrapartida, a moderna divisão do trabalho produz um resultado benéfico à sociedade, que é o barateamento das mercadorias, que foi preconizado por Adam Smith, o pai da economia política, na sua magnífica obra, Riqueza das Nações.
Parecia que tudo estava caminhando bem, mas no final do século XX, principalmente por conta do crescimento da indústria na Ásia, com destaque para a China, Singapura, Vietnã etc., que se dá de forma precária (jornadas excessivas, baixos salários, condições insalubres etc.), a situação do trabalho e dos trabalhadores sofreu um revés em todo mundo, incluindo aí a Europa e os Estados Unidos. A concorrência internacional fez aumentar o desemprego fora dos países asiáticos e as condições de trabalho também pioraram, principalmente por conta das terceirizações, chegando a registrar, inclusive, muitas ocorrências de trabalho similar ao escravo, como no caso da indústria de roupas feitas no Estado de São Paulo. Em muitos casos a situação retrocedeu ao que era nos séculos XVIII e XIX e até pioraram, como no caso do trabalho escravo.
Do exposto até aqui surgem algumas questões: 1) será que a exploração do homem pelo homem e das nações por outras nações é o único modus operandi possível para a civilização?; 2) será que a produção de bens de consumo precisa dar-se de forma tão alienada, alijando em demasia os trabalhadores dos processos criativos, para que tais bens sejam acessíveis à maioria das pessoas?; 3) será que a necessidade permanente de acúmulo de riquezas pelos países, o desejado e buscado "desenvolvimento econômico" tem que se dar de forma tão competitiva e predatória, onde tudo vale, num tipo de guerra permanente entre todos?
Laudas e mais laudas já foram escritas sobre estas questões e muitas outras ainda serão produzidas e não serão em demasia, pois parece até possível que toda essa enorme e desenfreada competição dê cabo da civilização. A crise ambiental, com destaque para o aquecimento global, já está dando o seu alerta. Não são apenas as pessoas que são passíveis de exploração, a natureza também tem sido explorada além da sua capacidade de suporte. Então, completo aqui a primeira questão acima levantada: será que a exploração abusiva da natureza também faz parte do modus operandi da civilização?
É mais que evidente que parar ou diminuir o ritmo dessa grande máquina (civilização), que foi posta em movimento com o surgimento das primeiras cidades, é um trabalho hercúleo - olha o  trabalho aí de novo! Quiçá seja possível redirecionar a máquina da civilização positivamente, sem que ela se desmonte, jogando a humanidade num estado de barbárie. Será possível fazê-lo? Esta é uma questão a ser respondida com a devida urgência. Todavia, não se trata de uma tarefa para um herói em particular, mas de uma árdua tarefa para toda humanidade, o que a torna muito difícil, entretanto imprescindível.
Por onde começar? A resposta a esta questão é difícil e, talvez, por conta disso, a melhor forma de iniciar seja retrabalhando o significado do trabalho. Outros valores também necessitam de ressignificação, mas como o trabalho é um elemento fundante da humanidade, talvez seja o mais importante, é de bom alvitre começar por ele. Durante a maior parte da história da civilização o trabalho esteve associado ao sofrimento, como já foi visto, e, por conta disso, foi estigmatizado. Há que se resgatar a dignidade do trabalho e, para tanto, precisamos compreendê-lo na sua profundidade, atingindo a sua essência.
Comecemos por lembrar que o homem é um ser social e que, neste sentido, o trabalho é um elemento essencial à socialização. A forma como cada ser humano trabalha determina a sua forma de ser e o seu conjunto de relações. Ele começa a trabalhar para cuidar de si e dos membros do seu grupo, com destaque para as crianças, que necessitam de proteção plena e não têm como produzir a sua própria existência. Então, desde o seu início, o trabalho surge também como um serviço prestado ao outro. Estou falando aqui do trabalho essencialmente humano, que significa utilizar-se da natureza e modificá-la a seu serviço, criando com isso um processo que não se repete apenas, mas que aumenta a sua dimensão e que se aperfeiçoa, criando isso que conhecemos como cultura.
A humanidade precisa fazer mea culpa e ressignificar positivamente o trabalho. Ela precisa abolir todas as formas de aviltamento das relações trabalhistas existentes e elas ainda são muitas. O trabalho meramente repetitivo precisa diminuir e quando isso não for de todo possível, deverá ter seus efeitos negativos minimizados, a redução das jornadas pode ajudar neste sentido, liberando tempo para que as pessoas exerçam a sua criatividade de alguma forma.
Cabe reforçar aqui a ideia de que trabalhar significa uma relação de cuidado (ver meu artigo Saber cuidar: a essência do humano, neste blog) e que o cuidado determina o modo de ser humano. Os humanos são cuidados quando crianças, passam a cuidar quando ficam adultos e recebem cuidados na sua velhice. Tudo isso implica em afetividade e o afeto, neste sentido, é a essência mais profunda do ser humano. O trabalho escravo, ainda sobrevivente, e as demais degradações laborais, como a exploração das crianças e das mulheres, entre outras, vão no sentido contrário à essência humana.
Começar pela ressignificação do trabalho no imaginário coletivo da humanidade talvez seja o primeiro passo a ser dado. A partir daí, outros passos serão dados, criando um movimento sustentado positivamente, resgatando os valores humanos, que sempre se formam a partir do cuidado e do afeto. Depois disso, o trabalho ressignificado (re)assumirá o seu real papel na história da humanidade que é o de serviço, ajudando-a a seguir na sua trajetória humanizante. Trabalho e serviço passarão a ser, de fato, sinônimos. Só mais uma última consideração: a urgência é necessária.
Referências
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. São Paulo: Editora Sextante, 2000.
ENGELS. Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Rio de Janeiro: Global Editora, 1990.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro Editora, 2006.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre a sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural, 1985.




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