quarta-feira, 27 de julho de 2016

FUTEBOL DE MENINOS EM CRÔNICAS E POESIA

Hoje, 27 de julho de 2016, resolvi juntar numa única publicação quatro postagens que tratam de assuntos ligados a futebol de meninos. O futebol é uma das paixões da minha vida e, na minha infância já distante, eu posso agora dizer com certeza: era a primeira. Com esta publicação eu homenageio todas as crianças (de hoje e do passado) que como eu adoram futebol. Boa leitura e boas lembranças.

O TEMPO E A BOLA (25 de fevereiro de 2016)

Zildo Gallo



Rola a bola
e pula e rola
no terreno vazio de obras
o espaço das gentes pequenas
pernas e pés
correndo... correndo...
para frente
para trás
para frente
para trás
alegres...
incansáveis...
presentes...

Rola o tempo
e salta e corre
para a frente
para a frente
mais à frente...
o terreno apequena-se
as gentes ficam grandes
um prédio emerge
no meio do campo
a bola já não rola
pernas e pés
correm agora
cansados...
bambos...
ausentes...
para frente...
adiante...
numa linha sem horizonte
já quase desligada (esquecida)
do seu ponto de partida.

PS.: Escrito em outubro de 2001 e modificado em fevereiro de 2016.



Onze (11, o número mágico do futebol) notas sobre o futebol de meninos.

1. Olhando lá para trás, para os longínquos tempos da minha infância, observo que, de fato, desconheço melhor diversão para meninos do que o futebol.
2. Jogávamos praticamente todos os dias e o jogo acontecia em qualquer lugar, mas onde morava havia um terreno sem construção que transformamos em campo e nele jogamos durante alguns anos.
3. Nós mesmos estabelecíamos as regras do jogo, todos os dias. Era mais ou menos assim: vira aos 10 e acaba nos vinte e, assim, no décimo gol mudávamos de lado no campo; gol de goleiro não vale etc. Às vezes, as regras eram bem estranhas, mas combinado era combinado e pronto.
4. Brincávamos horas a fio com algumas pausas para descanso e para beber água. Nestes momentos conversávamos. Sobre o que? Adivinhem! Sobre os melhores lances da partida e cada um tinha a sua façanha para se gabar. Além de jogadores éramos comentaristas, cada um puxando a sardinha para a sua brasa, é óbvio.
5. Eu ia para a escola no período da manhã. Quando voltava para casa, almoçava, fazia a lição e disparava para o campinho. Aos poucos os meninos iam chegando, até que alguém gritava: "deu time!"
6. Com número suficiente de jogadores, organizávamos os times, sempre tomando o cuidado de não deixar os melhores craques no mesmo lado. Gostávamos de jogos bem disputados. Havia aí um senso de justiça.
7. Era uma infinidade de gols e haja garganta para comemorar cada um. Gols de calcanhar e os raríssimos de bicicleta tornavam-se lendas durante vários dias. Uma vez fiz um do meio do campo, fiquei insuportável durante algum tempo, mas o tempo passa...
8. Nos meses de férias o futebol começava já no período da manhã, todos os dias, com chuva e com sol, com chuva era muito divertido, não para as nossas mães que tinham que lavar as roupas embarreadas.
9. Reafirmando, todos os dias discutíamos as regras de cada partida e elas  tinham que ser respeitadas. Todo combinado era justo. Caso alguém reclamasse, a resposta era: "foi combinado!" Era um autoaprendizado muito democrático. Cada menino um voto, muito justo...
10. Tomar um chapéu ou uma bola no meio as pernas era motivo para gozação, muita gozação. A vítima não via a hora de que o acontecido caísse no esquecimento, mas costumava demorar.
11. Enquanto houvesse alguma luz, havia jogo. "Menino, vem tomar banho, já é noite!" Eram as mães chamando os craques mirins para o descanso necessário e merecido, depois de tanta correria, chutes, tombos, pancadas, raladas e gols, muitos gols, é claro.

FUTEBOL DE MENINOS: O CASO DO GOLEIRO INDISPENSÁVEL (20 de fevereiro de 2016)

Zildo Gallo

A minha adoração pelo futebol vem de longe, desde a primeira infância, mas foi na adolescência que ela de fato se consolidou. Como todo boleiro que se preze, tenho muitas histórias para contar, muitas mesmo, mas vou relembrar da minha experiência como goleiro, esta função que poucos desejam; todos querem ser atacantes e se imaginam marcando muitos gols. Ninguém quer ser goleiro. Como muitos, eu sempre achei que todo goleiro tem que ser um pouco louco.


Nos anos sessenta do século passado, nas brincadeiras infantis, quando dividíamos os times nos campinhos, conseguir goleiros sempre gerava alguma discussão, ou melhor, muita discussão. O revezamento era uma boa saída para a questão e geralmente era o que acontecia.

Como todos os outros meninos da minha convivência, eu preferia jogar no ataque, mas um dia isso mudou. Foi bem por acaso. Num dia, no ano de 1969, quando estudava no segundo ano do ginásio no Kennedy (Instituto Estadual de Educação Presidente Kennedy - IEEPK) em Americana (SP), numa aula de educação física, fui colocado no gol contra a minha vontade, é claro, para disputar uma partida de futebol de salão contra outra classe do segundo ano também.

O tempo regulamentar da partida terminou e o jogo estava empatado (não me lembro do placar). Fomos à disputa de pênaltis. Não costumávamos bater os pênaltis alternadamente. Em primeiro lugar um time finalizava a sua série de três e em seguida o outro iniciava a sua série. Caso houvesse empate, iniciava-se uma série alternada.

O time adversário iniciaria a sua série e, então, postei-me debaixo da trave. Não sei até hoje como aquilo se deu, foi pura magia e também um pouco de loucura, acho... Atirei-me ao encontro das bolas como que se estivesse sendo teleguiado pelos deuses do futebol e defendi os três chutes. Não me perguntem como, eu não sei. Lembro-me que os chutes foram bem dados, não foi sorte e nem erro dos adversários, juro!. A cada gol impedido comemorávamos, é óbvio... Hoje eu acredito que todo goleiro precisa ser bastante intuitivo, naquela época, como toda criança, não pensava a respeito disso. Logo depois o nosso primeiro batedor acertou o seu chute e, naquele dia e nos seguintes, virei assunto na roda dos meninos. Então, tornei-me goleiro, acabei pegando gosto pela coisa.

Fora da escola, nos campinhos da cidade, também jogava no gol. Vivia esfolado, mas ser reconhecido como bom goleiro era muito gratificante. Eu e vários meninos da classe resolvemos montar um time para competir com outros times juvenis espalhados pela cidade. Aí tem mais histórias, vou contar uma. Um garoto da minha sala de aula, que morava no bairro São Manoel, distante do centro da cidade e do Kennedy, e que não participava do nosso time, pois já tinha o seu onde residia, convidou-nos para uma partida.

Os jogadores do meu time moravam em bairros diferentes e distantes uns dos outros. Íamos aos jogos a pé, não importava a distância. Tudo pelo futebol... Também tínhamos todo o tempo do mundo No dia do jogo no São Manoel eu me perdi e não consegui encontrar o campo. No dia seguinte tive a noticia, uma má notícia: o nosso time perdeu. Todos me culparam pelo resultado negativo, mas marcaram uma revanche. Então, no dia marcado meus amigos tiveram o cuidado de passar na minha casa para seguirmos juntos até o local da partida, não queriam correr nenhum risco.

Hoje – nas alturas dos meus sessenta anos – lembro-me com nitidez do campinho do São Manoel. Era um terreno bem grande, não construído, é óbvio, e totalmente sem grama, um autêntico “rapadão”. Fechei o gol e ralei-me todo. Virei lenda... Aconteceram vários outros jogos, tanto na escola como nos campinhos da cidade, e isso durou até 1970, o ano em que o Brasil ficou tricampeão mundial de futebol no México.

Em 1971, transferi-me para o período noturno do Kennedy, pois tinha que trabalhar, e o nosso time acabou se desmanchando. As partidas de futebol tornaram-se esporádicas e eu encerrei a minha gloriosa carreira de goleiro, que não se encontra registrada em nenhuma revista, nenhum livro, nenhum filme e nenhuma fotografia. Ela está gravada apenas na minha memória e, a partir de agora, nesta humilde crônica.

PS.: a foto que ilustra o texto foi achada na internet e não lembra em nada os nossos campinhos (a trave tem rede!) que eram desprovidos de gramado. E o goleiro? Está usando luvas! Algo impensável na época.

O ROUBO DA BOLA DE CAPOTÃO (30 de abril de 2015)

Zildo Gallo



Devia ser o ano de 1966, já faz muito tempo, é difícil precisar a data depois de tantos anos decorridos. Éramos um grupo de meninos, todos bem crianças mesmo, nem púberes éramos ainda. O que nos ligava eram as muitas brincadeiras de rua e o futebol, muitas vezes jogado nas ruas também. Para esse esporte improvisávamos bolas quando não as tínhamos, enchendo meias velhas com trapos, dando-lhes uma forma o mais arredondada possível.
O município de Americana (SP) era pequeno naquela época e, apesar de não muito distante do centro da cidade, o lugar onde morávamos poderia ser visto como periférico. Outra coisa que nos ligava era a pobreza, pois poucos escapavam dessa condição naquela vizinhança. Havia muitos meninos no nosso grupo, muitos mesmo, e, num dado momento, não sei exatamente porque e como, desejamos montar um time de futebol, para disputarmos partidas com outros times infantis que existiam na cidade. Achávamo-nos bons de bola o suficiente. Só precisávamos de uma boa bola de capotão.
Um desejo não atendido ou, melhor, impossibilitado de ser atendido, pode levar-nos a fazer coisas não recomendadas pela moral e os bons costumes. Na infância, quando a personalidade está em construção, quando a noção de certo e errado é ainda muito movediça, o "Diabo pode atentar", como diziam os mais velhos. Um dia ele chegou e atentou. Alguns garotos, às escondidas do restante do grupo, foram até o centro da cidade atrás de uma bola, mas só um deles teve a coragem de fazer o combinado. Ele dirigiu-se até a porta de uma loja de produtos esportivos e, quando notou que ninguém estava olhando, pegou uma bola que estava em exposição perto da porta e sumiu, sem que ninguém percebesse.
No mesmo dia ele apareceu no terreno onde brincávamos como uma bola velha, caindo aos pedaços, como costumeiramente fazíamos. Chegou todo orgulhoso, ostentando a bola de capotão de tamanho oficial, acho que era uma Drible; a cor, eu tenho certeza, era branca. Contou-nos o ocorrido e pediu segredo, acho que tinha receio de que seus pais soubessem. Foi assim que conseguimos a nossa bola, de uma forma nem um pouco convencional e lícita. Muito mais tarde é que fui compreender que o nosso silêncio colocou-nos como cúmplices. Este é um aprendizado mais refinado e eles vem com o tempo, com o amadurecimento.
Já tínhamos a bola, mas faltava o jogo de camisas. Quanto a esse objetivo, agimos coletivamente e fizemos uma campanha na vizinhança, pedindo ajuda a todos os nossos conhecidos e parentes, juntando um pouco aqui, um pouco ali. Deu certo, muitos contribuíram e conseguimos comprar o jogo de camisas na loja onde a bola foi roubada. Fizemos isso sem pensar. Talvez fosse a única loja que vendia jogos de camisas, talvez... não sei... Viramos um time, de fato. Adotamos como nome do time o nome do nosso bairro, se não me falha a memória, já se vão cinquenta anos.
O garoto que conseguiu a bola era o nosso melhor jogador, um craque mesmo, era o que eu achava. O tempo foi passando, passando e passou. O nosso time já não mais existia, tornei-me adolescente e cursava o ginásio. Nessa época, num dia qualquer, tomei um baita susto com uma notícia que me chegou, não me lembro exatamente como. Aquele nosso craque foi pego em flagrante furtando dinheiro do escritório onde trabalhava como office-boy. Lembro que a minha cabeça girou: será que deveríamos ter contado aos seus pais sobre o delito cometido? será que seus pais realmente não sabiam? será? será? Confesso que senti alguma culpa, culpa mesmo, pois isso nunca me saiu da cabeça. Caramba! que bela bola era aquela... Como devolvê-la? Como perder o nosso objeto desejado? Será que o Diabo morava nos nossos desejos, como acreditavam os mais velhos? Com o passar dos anos eu fui percebendo que eles tinham razão.
Depois desse episódio nunca mais tive notícias do garoto bom de bola. Pelo que sei ele, que era menor de idade à época, parou por aí. Nunca mais tivemos notícias de nenhum outro acontecimento ilegal. Acho que o susto de ser pego e o fato de ficar à disposição e vigiado pelo Juizado de Menores por algum tempo serviu para corrigir os desvios de caráter. Ainda bem. Naqueles tempos Americana era uma cidade tranquila, com baixo nível de criminalidade. Lembro-me que andávamos à pé pelas madrugadas, voltando de festinhas e nunca corríamos perigos. Fatos como o que relatei eram bem raros e muito mais raros eram os episódios envolvendo violência; quando acontecia algum, era uma espantosa comoção pública.
O tempo foi passando, passando e chegamos aos dias atuais. Hoje, Americana conta com uma estrutura desportiva ampla e pública esparramada pela cidade, o que não acontecia na minha infância. Assim, acredito que o grande desejo dos meninos da cidade não deve ser uma bola de futebol, pois vejo que muitos têm e, quando não têm, a Prefeitura tem e todos podem jogar. Na minha infância, ter uma boa quadra desportiva, um bom campo de futebol e uma boa bola era o máximo. Poucos tinham acesso, só as crianças oriundas de famílias mais ricas de fato tinham, já que elas frequentavam clubes privados, inacessíveis à maioria da população.
E daí, acabaram-se os desejos? Não, de jeito nenhum. Vivemos numa sociedade que produz desejos, muitos desejos, um após o outro. Todo dia um novo desejo é criado, sem que nos demos conta. Hoje as crianças desejam tênis de marca, vídeo games, celulares etc. Os desejos são criados de forma bem mais ostensiva que nos anos sessenta do século passado, quando ainda não éramos, de fato, uma autêntica "sociedade de consumo". Os desejos são criados, mas o acesso a eles ainda não é para todos. O acesso só é possível aos que têm renda, isso que Keynes (economista britânico) chamou de demanda efetiva. Assim, o sonho de ter um tênis bacana na infância não é para todos. Quem nunca ouviu falar de um menino que se viu obrigado a tirar seu tênis por "meninos de rua" e voltar descalço para casa? Eu já, várias vezes.
A criação contínua de desejos, os mais variados possíveis, pela propaganda a serviço da indústria numa sociedade muito desigual como a nossa não pode ser considerada uma coisa boa e, de fato, não é. O aumento da violência, com destaque para os furtos praticados por menores de idade, é um bom exemplo disso. Exigir que crianças, seres em formação, sublimem seus desejos, quando eles são diuturnamente enfiados nas suas pequenas cabeças pelos meios de comunicação, parece-me no mínimo um contrassenso. Na verdade, considero uma grande hipocrisia, pois tentam inculcar a culpa nas vítimas. A hipocrisia é a marca, a grife mais conhecida, da sociedade de consumo.
Quando escrevo estas palavras, sei que muitos entre aqueles que nunca se sentiram privados do acesso aos bens de consumo talvez não consigam compreendê-las. Para compreendê-las é preciso que saiam do seu mundo protegido, indo além dos seus bunkers, os condomínios fechados e os shopping centers protegidos, e se coloquem no lugar dos excluídos, dos muitos excluídos. Eles são muitos mesmo. Não é uma tarefa fácil em tempos tão individualistas, egoístas mesmo, como os tempos atuais, mas é uma tarefa necessária. O colocar-se no lugar dos que sofrem é um ato de caridade, é a verdadeira caridade propugnada pelo cristianismo, que encontra as suas raízes na compaixão. Estamos num país majoritariamente cristão, ou não? Será que somos como aqueles fariseus, aos quais Jesus chamava de sepulcros caiados, que agem como zeladores prestimosos dos bons costumes, das leis, que são belos na aparência e podres por dentro? Aliás, o que conta na sociedade de consumo é a aparência; trata-se de uma sociedade farisaica. Alguém discorda?

O MENINO AMERICANO E A BOLA DE CAPOTÃO  (1 de abril de 2015)

Zildo Gallo












Muitas vivências e fatos da nossa existência, por mais longínquos que estejam no tempo, sempre permanecem na memória. Permanecem porque carregam significados singulares, especiais. Muitos deles, caso analisemos rapidamente, podem parecer sem importância, mas, caso insistamos na observação, caso não "deixemos para lá", o que corriqueiramente costumamos fazer, sempre acabaremos por achar algum significado profundo escondido. A história que relato a seguir é um caso desses.
No final dos anos 60 do século passado, quando morava em Americana (SP), à rua Frederico Pollo, na Vila Jones, numa situação de muita pobreza e dificuldades econômicas concretas (existe dificuldade econômica não concreta?), eu e vários meninos da minha rua e das proximidades, que também enfrentavam situações parecidas, uns mais outros menos, vivenciamos durante algum tempo uma história inédita, até mesmo estranha, dada as nossas condições limitadas de vida e da percepção diminuta que tínhamos do mundo, pelo menos a minha era assim. Apesar da estranheza, a história era bem agradável, tanto que grudou nas paredes da minha memória.
Antes de narrar os acontecimentos pretéritos, que são bem curtos e singelos, acho conveniente descrever o cenário do enredo e, ao mesmo tempo, acrescentar algumas informações que, com o correr do tempo, fui adquirindo sobre a história de Americana, cidade na qual vivi a maior parte da minha infância, toda a adolescência e parte da idade adulta. São informações que considero importantes para a compreensão do sincrônico encadeamento dos fatos.
O nome do bairro, Vila Jones, homenageia uma das famílias de imigrantes americanos confederados, que começaram a se instalar, entre 1865 e 1885, nas terras próximas ao ribeirão Quilombo que, posteriormente, formarão o município de Americana. Os Jones são uma família com visibilidade e importância na história local. A senhora Judith Mac Knight Jones, esposa do Dr. James Roderick Jones (Jaime Jones, assim ele era chamado pelos brasileiros), além de ter no currículo o fato de ser tia de Rita Lee Jones, nossa eterna rainha do rock, também escreveu um livro importante, que resultou de uma grande pesquisa histórica, sobre a imigração e a instalação dos imigrantes confederados no Brasil do segundo império: Soldado Descansa! uma Epopeia Norte Americana sob os Céus do Brasil.
O cenário dos acontecimentos que vou narrar foi onde hoje funciona uma escola estadual, entre quatro ruas: Rua Washington Luis, Rua Florindo Cibin, Rua Martins Fontes e Rua Guilherme de Almeida. Neste quarteirão, nos anos 60 e 70, havia um campo de futebol, o Canto do Rio. Acredito que se chamava assim porque estava localizado perto da microbacia do Córrego Pyles, que ficava no sítio dos Jones. O nome do córrego, Pyles, também homenageia uma família de imigrantes americanos.
Quando eu me mudei para Americana com minha família, em 1963, o Canto do Rio estava vivendo um processo de deterioração. Antes, ele era bem cuidado e tinha, inclusive, em todo o lado que margeava a Rua Washington Luis, uma arquibancada construída com tijolos e concreto. Com o abandono, várias famílias começaram a saquear a arquibancada para, com os tijolos dali extraídos, ampliarem as suas residências; a arquibancada desapareceu em muito pouco tempo.
Apesar da degradação, o campo nunca deixou de ser usado enquanto tal, até que virasse uma escola. Que legal que tenha virado escola! Nos finais de semana ele era utilizado por um time que se formou a partir dos frequentadores do bar de um posto de gasolina na Avenida Campos Salles, o Servicentro Esso. Meu pai, Aristides, que trabalhava no posto, no seu primeiro emprego em Americana, também jogava no time, que era composto, na sua maioria, por operários das fábricas de tecidos da região, que, ao final da tarde, quando saíam do trabalho, paravam no bar, conhecido por todos como Bar do Posto, onde bebiam alguma coisa e jogavam conversa fora, antes de irem para sua casas. Tenho na memória alguns nomes de jogadores: Buzina, Piti, Viola e Japão. Lembro-me também que Piti era surdo-mudo e Japão era o borracheiro do posto. Guardei-os porque os achava engraçados, acho que é por isso, não sei, a memória é uma coisa muito estranha.
Durante os dias úteis da semana o Canto do Rio era das crianças. De manhã eu ia para a escola e à tarde rumava para o campo, onde encontrava outros meninos. Ficávamos esperando, conversando bobagens, até que aparecesse alguém com uma bola. Havia poucos meninos proprietários de bolas de futebol, eram os "donos da bola". E os donos de uma bola de capotão de tamanho oficial? Esses eram uma raridade, raridade mesmo. Uma bola Drible de couro, costurada à mão, de tamanho número cinco, grandona, era muito cara; naquela época ela era um desejo praticamente impossível de ser alcançado pela esmagadora maioria dos meninos do Canto do Rio.
Contudo, às vezes, os desejos mais difíceis podem ser atendidos, como num passe de mágica. Num dia, não me lembro de qual ano, eu e meus amigos esperávamos alguém com uma bola e eis que de repente, não mais que de repente (como no poema de Vinícius de Moraes), apareceu um menino que chegava acompanhado pelo pai. Ele era muito diferente dos meninos dali, comigo incluso, era alto, do tipo forte e tinha o rosto claro e rosado. Apresentou-se como Johnny, num português com sotaque engraçado, pelo menos eu achei engraçado. E, o que é mais importante: ele trazia consigo uma bola de capotão oficial, branquinha, lindona.
Johnny era americano e ficaria no Brasil por algum tempo. No tempo que ficou em Americana, ele virou o verdadeiro "dono da bola". Acredito que nenhum outro gringo tenha sido tão bem recebido e tão festejado como ele. Acredito que ele mesmo não saiba disso, com certeza. Brincamos muito com a bola de capotão do Johnny. Ele foi o primeiro americano que conheci pessoalmente. Conhecíamos os descendentes dos confederados, um americano legítimo como ele estava num outro nível e, ainda mais, ele tinha uma bola de capotão número cinco.
Um dia o Johnny foi embora e levou consigo a bola de capotão, nada mai justo. Um americano que gostava de futebol naquela época era uma raridade, a posse da bola era muito mais que merecida. Todavia, o mundo é sempre uma caixinha de surpresas.
Muitos anos mais tarde, quando trabalhava como professor no Departamento de Economia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) foi que fiquei sabendo o nome completo do Johnny, John Cowart Dawsey. Ele foi professor da UNIMEP entre 1989 e 1996, conforme informa o seu Currículo Lattes. Eu, por minha vez, lecionei na universidade entre 1987 e 2006. Jung chama essas coincidências, que ele não considera assim, de sincronicidade.
Hoje, o Johnny (John Cowart Dawsey) é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e vejo, pelo seu Lattes, que ele é um pesquisador produtivo. Ele é uma espécie de "dono da bola" na sua área de conhecimento. Os comentários que ouço sobre ele são sempre abonadores Quanto ao futebol, tenho informações que ele continua gostando do esporte bretão como antes. Só que agora ele não é mais uma raridade, pois muitos americanos gostam de futebol, mas o menino Johnny foi um pioneiro nesta questão, isto ninguém tira dele.

PS.: A história é verdadeira, aconteceu mesmo. Resolvi transformá-la numa crônica, numa crônica sobre o futebol das crianças em tempos difíceis. A bola é um símbolo, um desejo, é um meio e, ao mesmo tempo um objetivo. Não é o jogador que atinge a meta (o gol), mas a bola chutada por ele. Por ser redonda, não sabemos onde começa e onde termina, o que é um enigma. Por ser redonda ela rola, se não rolasse, o futebol não seria possível. A posse de uma bola de qualidade era na minha infância uma forma de poder. Todavia, o poder tinha que ser exercido de forma democrática, porque não dá para jogar futebol sozinho. Esta é a beleza desse esporte: o "dono da bola" tem que dividir a bola para poder jogar.

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