sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

NATAL

Zildo Gallo

http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/natal-1/presepio.htm


Nasci no meu dia de nascer,
Como o menino Jesus nasceu no seu dia.
Entretanto, o meu nascimento não é o Natal,
Comemorado em todos os lugares,
Como é comemorado o do bom Deus Menino.
Entretanto, é o meu natal,
O dia mais importante para mim
Desde que vim viver na Terra.
O último dia mais importante da minha vida,
Sem dúvida alguma,
Será o dia da minha partida deste mundo.
Espero e peço ao bom Deus Menino
Que não seja tão triste e tão dolorido
Como o dia da partida do bom moço Jesus,
Que partiu daqui tão jovem.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

HAICAI DO TAO


Zildo Gallo


Tudo é um só
Mas em dois se divide
Mas se abraçam


MEU PAÍS


Zildo Gallo


No meu país havia matas.
Agora, doidamente, as desmatam.
E matam... e matam... e matam...
Gentes, bichos e, também, baratas,
Estas já nascidas pra morrer.
Até o sapo cururu já nem canta,
Na beira daquele rio,
Nem mesmo quando vem o frio.
Oh maninha,
Assim vai o meu país,
Embarcação levando ao mundo
Soja, açúcar, carnes e venenos,
Aos borbotões, aos borbotões...
Sem nenhuma pena.
E que se dane a multidão,
Coisa bem pequena,
Encantada, anestesiada...
Em pétreo coração.


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

ASSIM...

Zildo Gallo


As coisas andam
E estão
Nem pés
Nem cabeças
Arrastando-se
Sem direção
Assim, vêm e vão...
Assim, vão e vêm...
Em fechado círculo
Em eterna repetição
Assim, as coisas se vão
Entre aventuras vãs
E desventuras tantas
E tontas...
Assim o mundo vai
Girando seu círculo
Em círculos...
Em círculos...
Assim as coisas são
Eternas repetições
Que vêm
E que vão
E que vêm...


sexta-feira, 22 de novembro de 2019

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

BANANAS


Zildo Gallo


Àqueles que obstruem o meu caminho
Eu digo apenas
Leiam Mario Quintana
E lhes dou grande banana
Não tenho a mesma finesse
Daquele poeta bacana



sexta-feira, 25 de outubro de 2019

HORIZONTE


Zildo Gallo


Em tempos de atirar pedras
Há que se plantar flores

Em tempos de fúrias
Há que se espalhar risos

Em tempos escuros e medonhos
Há que se semear esperanças

Flores nas mãos
Sorrisos nos lábios
À espera das luzes
Na linha do horizonte

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

LEVEZA: um pedido


Zildo Gallo


No entreato da existência
Entre tantos e tontos
Vagando pelos salões escuros
Dos desejos irrealizados
Velhas Remingtons e Olivettis
Livros sujos
Papéis amarelados
Um último desejo assalta-me a alma:
A existência poderia ser muito mais leve
De sustentável leveza

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

LEVEZA DA VIDA


ZILDO GALLO


As águas fluem de cima para baixo
Os vapores trafegam de baixo para cima
Mas ambos sempre serão a mesma coisa
E ambos podem endurecer-se ao intenso frio
A vida vem das águas e as imita
Todavia, a vida sempre parece bem mais dura

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

AS ALEGRIAS

Zildo Gallo


Por onde andam as alegrias?
Encolhidas em meio aos escombros?
Assustadas?
Fugindo dos seres noturnos?

Zumbis sonâmbulos espreitam
Em toda esquina penumbrosa...
Trolls, orcs e ogros também...

Onde andam as alegrias?
Em quais corações elas se recolheram?

Quem sabe se abrindo largos sorrisos
E liberando contagiantes gargalhadas,
Ainda que a fórceps arrancados,
Elas apareçam,
Aos poucos,
Devagar,
E abram,
Cuidadosamente,
Ainda que tomadas pela desconfiança,
As portas fechadas nos becos medonhos
E preencham os espaços esvaziados,
Paulatinamente,
Com as luzes dos sóis interiores.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

SOBRE AS SOMBRAS: UM ENSAIO SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA ONTEM E HOJE


ZILDO GALLO*


Este ensaio reúne cinco artigos publicados no zildo-gallo.blogspot.com e tem como objetivo contribuir com a discussão sobre a crise paradigmática que envolve toda a humanidade num clima de incertezas e medos. Velhos paradigmas precisam ser superados e eles lutam encarniçadamente para esticar a sua sobrevivência, colocando em risco, com essa teimosia, a própria sobrevivência da humanidade dentro de padrões civilizados. Neste momento do planeta, a barbárie não é uma questão a ser desprezada, ela já se coloca no horizonte como uma ameaça realizável num prazo muito curto. Acredito que, nesta hora crucial, toda contribuição ao debate sobre o tema seja relevante; aqui segue a minha modesta contribuição, que está dividida em quatro artigos (capítulos): 1) As sombras que assombram a humanidade, 2) O dia das mulheres e do sagrado feminino, 3) De primeiro de maio a primeiro de maio o trabalho continua acorrentado, 4) Saber cuidar a essência do humano e, 5) Uma tragédia anunciada e uma nova ética para o nosso planeta.

1.      As sombras que assombram a humanidade

A humanidade vive assombrada por muitas sombras milenares que a acompanham desde os primórdios da civilização. Neste artigo (ensaio) eu pretendo discursar sobre as três que considero mais importantes, pois elas são três elementos basilares do patriarcado: a exploração do trabalho alheio (escravatura, jornadas excessivas, baixas remunerações, trabalho infantil, insalubre etc.); a violência contra a mulher, nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, exploração sexual etc.) e; a apropriação privada do território por poucos em detrimento da maioria (propriedade privada do espaço de produção da existência).
Para entendermos esta questão e, sobretudo, a necessidade de se superar as três sombras, temos que, de antemão, compreender de que homens estamos falando. Que tipo de distorções levaram a humanidade a produzir, penetrar e perder-se nesta escuridão milenar? Para tanto, precisamos compreender três dimensões importantes que moldam o ser humano, que transformam o primata em homem. Estamos falando do homo economicus, do homo sapiens e do homo religiosus - o homem que transforma a natureza, o homem sábio que pensa a si e a natureza e o homem que transcende a sua própria natureza.
O homo economicus é a dimensão mais primitiva do ser humano e diz respeito à sua sobrevivência material. Imbuído da razão, o homo sapiens consegue pensar a sua sobrevivência material e, a partir deste pensar, elaborar estratégias diversificadas e criativas para ela. O homo religiosus deseja ir além da sua sobrevivência material e transcender a sua própria natureza humana ou, quem sabe, realizar-se efetivamente como homem, num patamar acima da sua animalidade.
Na pré-história, do paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. No paleolítico, o uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio. A seguir, no neolítico, a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Nos primórdios das cidades a situação se modifica, com o surgimento do trabalho escravo, do patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos do território dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade trevosa que comanda a humanidade desde então.
Numa situação indefesa, com conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é bastante compreensível o surgimento da tríade obscura. Travou-se uma luta entre "fortes" e "fracos" que perdura até hoje e a questão central da luta passou a ser a sobrevivência das famílias dentro das cidades. Contudo, com o passar do tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da expansão crescente do conhecimento sobre a natureza, mas, ao mesmo tempo, ela entrou num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não proprietários, entre homens e mulheres e entre as nacionalidades tornou-se uma constante, tornou-se a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que nem tudo dava para todos, embalada no medo permanente da escassez.
No correr da história, os povos também sonharam utopias, imaginaram mundos movidos pela abundância e onde houvesse abundância haveria paz. Imaginavam que a "providência divina", em algum momento os tiraria do sofrimento. Imaginavam uma transcendência dessa condição humana, dessa que pensam ser a condição humana, marcada pela dor e pela miséria. O desejo de transcender os limites da matéria, o círculo vicioso do sofrimento sem fim, acabou conduzindo, muitas vezes para a possibilidade de transcendê-lo numa vida post mortem. Isso ensejou a expansão das grandes religiões, que institucionalizaram a dimensão transcendental do ser humano. Para os cristãos, por exemplo, o princípio da igualdade é plenamente possível na outra vida e acreditou-se, durante muito tempo, que só aí ele seria possível. Somos todos iguais, mas neste mundo é muito difícil materializar tal princípio; esta é uma crença muito arraigada ainda. Modernamente, a Teologia da Libertação enfrentou esta questão e colocou a igualdade como possibilidade no mundo material, mas ela enfrenta resistências no seio da própria Igreja Católica, de onde ela surgiu.
O ser humano, enquanto homo sapiens, imbuído da sua razão, também imagina sociedades, mundos, onde os flagelos produzidos pela ideia da escassez, que produz as diferenças entre os iguais, desapareça ou, minimamente, diminua; aí entra a política como um instrumento de uma transcendência no campo material. Então, a política é um campo aberto à utopia, ao desejo de um mundo de iguais. Todavia, ocorre que a ideia da diferença se cristalizou entre os homens a ponto de muitos, senão a grande maioria, acreditarem-se efetivamente diferentes; são melhores nascidos, mais fortes, mais puros, adeptos da verdadeira religião, habitam o país mais civilizado etc., o que contribui para lançar água no moinho (moto contínuo) da separação e das guerras.
Ocorre ainda outra situação naturalmente adversa, porém mais sutil: por mais que a sociedade possa ser igualitária, a vida na matéria é frágil, perecível e finita e também sujeita a muitas intempéries e acidentes. Assim, o desejo latente por uma transcendência para além da matéria atua nos homens como um elemento estabilizador da sua personalidade, criando o espaço da espiritualidade, que está posto num local atemporal, acima das religiões, no inconsciente coletivo da humanidade. Então, o homo religiosus é um importante elemento constitutivo da psique humana. Reprimir tal aspecto da existência (intolerância religiosa), como muitas vezes aconteceu e como ainda acontece, basta observar o fundamentalismo religioso contemporâneo, é um ato pernicioso ao desenvolvimento pleno das potencialidades humanas.
Neste começo do século XXI, dos pontos de vista da produtividade da economia e do conhecimento sobre a natureza, é possível afirmar que a pobreza extrema, a fome, a carência de moradias salubres, a falta de educação escolar entre outras questões mais afeitas ao homo economicus, já poderiam estar plenamente superadas. Em vez disso, o que temos? Ainda há fome, doenças de veiculação hídrica, analfabetismo, favelas etc. e, sobretudo, uma brutal e injustificável concentração de renda. A humanidade ainda se encontra enredada no círculo vicioso do medo primitivo da escassez, que continua engendrando diferenças sociais e alimentando a concepção do modo "natural" de ser da humanidade, muitas vezes justificado por estúpidas concepções sociais neodarwinianas, que separa os seres humanos em mais e menos aptos. Só muita falta de visão, provocada pelas brumas da ideologia “liberal” dominante, eivada de individualismo e utilitarismo, para conceber uma luta permanente por comida num mundo repleto de desperdícios injustificados e de crescente obesidade mórbida, não só a dos Estados Unidos, mas também a de países emergentes como o Brasil, por exemplo.
Outra questão incompreensível no estágio de desenvolvimento da economia no século XXI é a superexploração do trabalho ainda persistente. O estágio atual do acúmulo tecnológico já permitiria jornadas mais reduzidas e flexíveis de trabalho. Estaríamos já bem próximos da sociedade do ócio imaginada por Paul Lafarge, mas esta está longe de ser uma realidade. A exploração excessiva do trabalho humano ainda prevalece e se faz acompanhar das baixas remunerações que não garantem uma vida digna aos trabalhadores. Esta ainda é uma grande sombra que ainda assombra a humanidade, principalmente nos países pobres, com destaque para os africanos.
A inferiorização da mulher no século XXI ainda é muito presente e, em muitos países, ela chega à beira da irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil de exploração da mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o corpo feminino transforma-se em valiosa mercadoria. Por exemplo, as revistas eróticas são um grande negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o inverso do que acontece com a remuneração das mulheres nas fábricas e nas fazendas. O mercado conseguiu uma grande façanha: transformou a liberdade sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século passado em mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a sexualidade humana continuam ainda hoje envoltas por uma grande sombra.
Diante do exposto, a questão central que se coloca é a seguinte: o ser humano para se desenvolver, para conseguir atingir o potencial inato imanente nas suas três dimensões (econômica, racional e transcendental) necessita de liberdade. A dimensão econômica serve como alicerce das outras duas. Contudo, conforme estudos de Thomas Piketty (O capital no século XXI), a renda nunca esteve tão concentrada como está agora e, consequentemente, a propriedade privada dos meios de produção. A concentração da riqueza permanece, no correr dos séculos, como uma grande sombra a obstar as luzes necessárias à expansão do espírito humano. Uma sociedade com distribuição da riqueza mais justa pode garantir maior acesso ao conhecimento e à cultura, liberando o ser racional especulador e criativo de cada membro seu, libertando-a da ignorância que agora funciona como um véu a encobrir as verdadeiras causas dos flagelos por ela vividos. Uma sociedade liberta da faina incessante pela sobrevivência e que garante a liberdade aos indivíduos de buscarem realizações além do mundo material pode contribuir para a expansão da sua dimensão transcendental.
Assim, a liberdade para criar é fundamental, pois a criação, com destaque para a criação artística, tem enorme potencial transformador. A arte costuma falar com uma linguagem que extrapola a razão e que coloca os seres humanos diante de outras possibilidades, possibilidades não materiais, mas, ao contrário, sensíveis, que se colocam mais nos campos intuitivo e afetivo e que podem tornar os homens mais sensíveis e compassivos.
E, falando de homens mais compassivos: a compaixão é a essência mais profunda do ser humano e ela se apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro um igual e, ao mesmo tempo, um diferente e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro você mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave mãe Terra. A partir daí o homem abandona o seu papel de conquistador, de guerreiro, e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da criação.

PS.: o texto acima foi produzido originalmente para o Grupo de Estudos de Ecologia Profunda do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (mestrado e doutorado) da Universidade de Araraquara, do qual eu participei entre os anos de 2011 e 2012. Na sequência, tratarei de duas sombras que assombram a humanidade: a exploração do trabalho humano e a violência contra a mulher,

2.      O dia das mulheres e do sagrado feminino

No dia 8 de março de cada ano, comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Trata-se de um dia de homenagem à dimensão feminina do ser humano e também de uma efeméride que deve ser consagrada à mais profunda reflexão. Há muito para refletir, pois o estado da real condição das mulheres no nosso planeta, que carrega o nome de uma deusa, Terra (Gaia para os gregos e Terra os latinos, a deusa que deu a luz a todos os deuses, deusas e à vida que se esparramou pelas águas, terra e ar, conforme ensina a mitologia greco-romana), não é nenhuma maravilha, mesmo...
A situação já foi muito pior, mas ainda existem muitas situações de descabida inferioridade e de violência inaceitável. A sociedade patriarcal rompeu e conspurcou a sacralidade feminina e ela precisa ser restabelecida. Trata-se de uma tarefa para toda a humanidade, em todos os cantos do mundo, pois o patriarcado precisa ser superado para que se restabeleça a igualdade primitiva que se perdeu com o avanço da civilização, que se dá após o fim do neolítico, com o surgimento das cidades.
A subjugação das mulheres e da energia feminina pelos homens é o verdadeiro pecado original da civilização, mas os homens, com destaque para o Ocidente, por mais incrível que pareça, mais particularmente após a expansão do judaico-cristianismo, conseguiram imputá-lo às mulheres; lembram-se do mito de Adão e Eva? Há que se pedir perdão a Eva e a todas as suas filhas. Assim, reproduzo abaixo um artigo que escrevi em março de 2015, por considerá-lo muito claro e oportuno, com o fito de colocar mais uma pedra no edifício do arrependimento, que se transformará, quando enfim concluído, no monumento do verdadeiro perdão. Só depois disso a humanidade rumará no sentido da sua definitiva libertação, da sua transcendência. Ao artigo!

2.1. O Dia Internacional da Mulher e a necessidade de resgatar os valores femininos

Na sociedade estratificada do mundo civilizado, onde existem os muito ricos e os muito pobres, encontramos também vários outros tipos de estratificação, onde se repete a dicotomia entre "os de cima" e os "de baixo", que acaba dividindo os grupos sociais entre "incluídos" e "excluídos". Os de alta rendas estão em cima e os de baixa renda estão em baixo; os brancos (caucasianos) estão em cima e os negros (afrodescendentes) e índios estão em baixo; os heterossexuais estão colocados acima e os homossexuais abaixo e, ainda; os seres humanos do sexo masculino continuam no "andar de cima" e os do sexo feminino no "andar debaixo". Além destas divisões encontramos outras: as ligadas às religiões; às nacionalidades; ao nível de escolaridade etc. Etc. mesmo, pois os seres humanos são mestres em produzir divisões, em criar grupinhos. É muita divisão para uma única humanidade.
A primeira e grande divisão da humanidade é a de caráter biológico, entre o sexo masculino e o sexo feminino. Trata-se de uma divisão natural, diferente das outras citadas acima que têm origens socioculturais. A bipolaridade que encontramos no universo material, que se expressa, inclusive, no nível atômico, com a divisão entre prótons (com carga positiva) e elétrons (com carga negativa), é encontrada na biologia, com a divisão entre macho e fêmea. Sem a combinação entre prótons e elétrons, que são antagônicos e também complementares não haveria a matéria como a conhecemos e, muito menos, o universo com as suas galáxias e seus sistemas solares. Sem a complementaridade entre masculino e feminino, a vida poderia ser composta majoritariamente por vírus, por muitos seres unicelulares e vários tipos de fungos. A vida superior, incluindo aí os seres humanos, não seria possível. Não existe uma hierarquia, neste caso, ambos, masculino e feminino são necessários, o que existe é uma condição de efetiva e necessária igualdade.
Diante do exposto até aqui, afirmo: pensar em superioridade e inferioridade entre os gêneros é, no mínimo, estupidez e, no máximo, alguma expressão impublicável (escolha a expressão, à vontade). Todavia, em relação aos seres humanos uma diferença foi criada; trata-se de uma criação sociocultural, apenas sociocultural. Entretanto, muitos ainda acreditam que, do ponto de vista biológico, os homens nasceram melhor aquinhoados. Muitos, raciocinando no limite inferior das suas capacidades, não enxergando além da sua própria massa corpórea, acreditam que a força física os diferenciam. No mundo de hoje, onde as máquinas há muito tempo substituíram a força física nas tarefas mais pesadas, pensar assim é minimamente ridículo, pois a força bruta, que foi valorizada em outros tempos, hoje significa muito pouco, muito pouco mesmo. É muita ignorância e o nosso planeta ainda está lotado de ignorância, infelizmente...
A partir da introdução um tanto azeda que fiz acima para o meu artigo em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sigo na construção do mesmo, pretendendo lançar luzes sobre o porquê da brutal inferiorização e violência sofridas pelas mulheres durante milênios da trajetória humana no planeta Terra. É possível entender esta barbaridade, acreditem.
Entre 2011 e 2012, participei de um grupo de estudos sobre ecologia profunda, na UNIARA (Universidade de Araraquara), onde leciono no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado). Por conta das nossas ricas discussões, escrevi um texto para análise do grupo, onde falo sobre as três grandes sombras que acompanham a humanidade desde os primórdios da civilização, três elementos basilares do patriarcado: 1) a exploração do trabalho alheio (escravatura, jornadas abusivas, baixos salários, trabalho infantil, insalubre etc.); 2) a violência contra a mulher, nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, violência física, exploração sexual, exploração econômica etc.); 3) a concentração da propriedade e da renda por poucos em detrimento da maioria. Vou tratar aqui, com mais detalhe, o detalhe possível num artigo relativamente pequeno, da sombra que ainda paira sobre o mundo feminino.
Na pré-história (paleolítico e neolítico), os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois, nas tribos, ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Nos primórdios das cidades, com o enfraquecimento das sociedades tribais, a situação se modificou. Surgiu o trabalho escravo, o patriarcado e o casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos, e, aos poucos, firmou-se a propriedade privada, os fragmentos de territórios apropriados e dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade trevosa que comanda a humanidade desde então.
Apesar de tudo, precisamos ser indulgentes com a humanidade: numa situação indefesa, com conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é compreensível o surgimento da tríade obscura. Para sobreviver num ambiente hostil, os humanos precisaram arrojar-se, tornar-se fortes e agressivos. A batalha pela sobrevivência acontecia todos os dias. Os humanos tornaram-se hábeis caçadores e desenvolveram armas úteis tanto para a caça como para a defesa. Tiveram que aprender a conviver com os fenômenos naturais agressivos e sobrepujá-los. Com o fortalecimento da família monogâmica e patriarcal, nos primórdios da civilização, a questão central da luta humana passou a ser a sobrevivência das famílias nas cidades. Nas tribos importava mais acentuadamente a sobrevivência do coletivo dos seus membros, a sobrevivência da própria tribo. A civilização acabou estreitando a ideia de coletividade, entendendo-a como um conjunto de famílias, o que se trata de uma redução simplista, que serviu para justificar a exploração do homem pelo homem. O teólogo e filósofo Leonardo Boff (2003) denominou esse primeiro momento da trajetória da humanidade de paradigma conquista.
Contudo, com o passar do tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da expansão crescente do conhecimento sobre a natureza e dos avanços da tecnologia. Ela tinha tudo para deixar de lado essa competição insana, mas acabou entrando num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não proprietários, entre homens e mulheres e entre as diversas nacionalidades tornou-se uma constante. A guerra, violenta ou subliminar, tornou-se a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que nem tudo dava para todos, embalada no medo permanente de uma possível escassez. As mulheres foram as que mais perderam nessa trajetória, pois elas praticamente se transformaram em propriedade dos homens, alienando a sua liberdade e a sua criatividade. A partir da civilização o mundo tornou-se essencialmente masculino e isso se cristalizou, transformou-se num tipo de vício, um vício difícil de ser largado.
Hoje, no século XXI, a inferiorização da mulher ainda é muito presente e, em muitos países, ela chega à beira da irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil de exploração da mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o corpo feminino transformou-se em valiosa mercadoria. Só um exemplo, tem muitos: as revistas eróticas são um grande negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o inverso do que acontece nas fábricas e nas fazendas. O mercado produziu uma grande façanha: transformou a liberdade sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século passado, em mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a sexualidade humana continuam, ainda hoje, envoltas por uma grande sombra.
Hoje a humanidade precisa e tem plenas condições de superar o paradigma conquista, em função das imensas conquistas no campo da ciência e da produtividade da economia. Entendo também que a necessidade de mudança paradigmática passa com maior ênfase pela questão de gênero e que esta questão é, em última instância, espiritual, pois se trata de uma mudança profunda na forma de ser dos indivíduos e da sociedade. Acredito mesmo que a centralidade das questões contemporâneas está nas disputas, que remontam a ancestralidade do homo sapiens, entre os sexos masculino e feminino, no sentido de que prevalece até os dias de hoje uma compreensão majoritariamente masculina da realidade.
Para facilitar a compreensão do que quero dizer, lanço mão da milenar filosofia chinesa. Os chineses enxergam o universo como uma relação, uma relação de duas forças antípodas e, ao mesmo tempo, complementares. Basta observarmos a natureza, esta é a sabedoria chinesa: para que exista o frio tem que haver o quente, para o molhado há o seco, para o mole tem o duro, para o claro tem o escuro, para o triste tem o alegre, para o bom tem o ruim etc. De forma bem simples, eles dividem tudo e todos os fenômenos em dois grandes blocos: YIN e YANG (veja a figura abaixo).

  
Na figura são visíveis dois peixinhos do mesmo tamanho, harmoniosamente encostados um no outro. Um é branco e representa o aspecto solar masculino e o outro é preto e representa o aspecto lunar feminino. Um detalhe importante: O peixe branco tem um olho preto e o preto tem um olho branco, significando que o masculino também possui elementos do feminino e que o feminino também contém elementos do masculino, sugerindo uma complementaridade perfeita, apesar de todo o antagonismo. As características de Yin e Yang são opostas e complementares, como se pode ver no quadro abaixo.
Pelo quadro vemos que Yin, que representa o feminino, tem atributos opostos a Yang, que representa o masculino. Na sua conturbada trajetória, com destaque para os tempos pretéritos, a humanidade lançou mão com mais vigor dos atributos masculinos por conta do paradigma conquista, focando mais a necessidade de sobrevivência, e acabou obliterando os femininos, inclusive com a própria inferiorização da mulher, guardiã das energias Yin. A humanidade tornou-se majoritariamente Yang: agressiva, competitiva, racional, expansionista etc.

UNIVERSO BIPOLAR
YIN
YANG
FEMININO
MASCULINO
CONTRÁTIL
EXPANSIVO
CONSERVACIONISTA
EXIGENTE
RECEPTIVO
AGRESSIVO
COOPERATIVO
COMPETITIVO
INTUITIVO
RACIONAL
SINTÉTICO
ANALÍTICO

Nesta altura da história da humanidade, com tranquilidade, podemos concluir que, em última instância, as crises econômica, social e ambiental, vividas em todo o mundo, decorrem do desbalanceamento das duas energias primordiais, com a balança pendendo para o lado Yang, o que reforçou e ainda reforça o paradigma conquista. A sobrevivência da humanidade enquanto tal, depende da transição para um novo paradigma, o paradigma do cuidado. É preciso diminuir a competição e aumentar a cooperação, é preciso diminuir a agressão e aumentar a aceitação e assim por diante. E, o que é de muita importância, neste mundo conduzido pela ciência: é preciso dar vazão às outras formas de percepção da realidade, possibilitadas pela intuição, que é a contraparte feminina da racionalidade masculina. O começo da caminhada para o paradigma do cuidado é o resgate da dignidade feminina, uma tarefa ainda árdua para a humanidade, todavia imprescindível.
Caminhar rumo ao paradigma do cuidado significa que a humanidade precisa tornar-se mais afetiva e compassiva, dois atributos femininos.  E, por falar em homens mais compassivos: a compaixão é a essência mais profunda do ser humano e ela se apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro “um igual” e ao mesmo tempo, “um diferente” e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro a si mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave mãe Terra. A partir daí o homem abandona o seu papel de conquistador, de guerreiro, e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da criação.
Para terminar, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, ofereço o poema de Victor Hugo, onde ele capta as essências masculina e feminina. Lembrando, sempre é bom lembrar: a mulher também guarda em sua alma a essência masculina e o homem a feminina. Somos seres muito complexos e esta é a beleza.

O Homem e a Mulher

O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.


Viva as mulheres! Viva os homens! Viva a igualdade!

3.      De primeiro de maio a primeiro de maio o trabalho continua acorrentado

No primeiro de maio de cada ano comemora-se o Dia do Trabalho no mundo todo. No Brasil, em 2017, a sua comemoração acontecia num ambiente de muita tensão por conta do desmanche da legislação trabalhista, propiciada pelo golpe de estado contra a Presidenta Dilma, que foi reeleita pelo Partido dos Trabalhadores - PT, em 2014, contra a vontade da grande imprensa e de grande parte do empresariado nacional, com destaque para o capital financeiro.
Todavia, a situação da classe trabalhadora não está difícil só no Brasil. O capitalismo mundial vive, neste momento, uma grave crise e os trabalhadores estão sendo as grandes vítimas dela em todo o mundo. Nada de novo, pois também foi assim nas outras crises, como a de 1929, por exemplo. Depois dessa crise, a atual apresenta-se como a mais grave e o seu desfecho parece distante e muito incerto. Não tem como fazer previsões seguras, neste momento.
Neste momento grave da história da humanidade, quando se assiste a um ataque frontal contra os assalariados e pobres do planeta, quando a renda se concentra de forma nunca antes vista nas mãos de poucas famílias, em detrimento da imensa maioria da população, faz-se necessária uma compreensão da real situação do trabalho nos tempos de hoje, partindo de uma volta ao passado distante, como sói razoável fazê-lo, para que se possa alinhavar argumentos válidos para a instituição de um ponto de partida que leve à saída da crise e à emancipação dos trabalhadores.
No sentido do exposto acima, em reproduzo aqui o artigo (ensaio) "O homem humanizado e a sociedade: o papel do trabalho", que escrevi em 21 de dezembro de 2014. Acredito que ele pode lançar luzes tanto sobre a história do trabalho e dos trabalhadores desde a antiguidade como para a situação presente de ambos. Ao artigo!

3.1.O homem humanizado e a sociedade: o papel do trabalho

Falar do homem enquanto um ser humano parece redundante, mas não é, pois o homo sapiens, enquanto espécie animal, enquanto ser vivente, é um projeto em construção, um projeto humanizante em permanente elaboração e reelaboração. Ele está posto como um vir a ser, um devir, um transformar-se, um tornar-se novo, portanto, ele ainda não é, ele será. Ele sempre está carecendo de se humanizar. Então, humanizar trata-se de um processo e, de forma bem simples, humanizar significa tornar humano. Indo um pouco mais além: para tornar humano é preciso despertar valores humanos.
O ser humano está em permanente elaboração. A palavra elaboração vem de labor, que é trabalho em latim. Daí extraímos três possíveis situações: 1) o homem é um ser que trabalha; 2) que constrói pelo trabalho e; 3) que se constrói pelo seu trabalho. Todas as três possibilidades são reais e, ao mesmo tempo, complementares. Desta forma, é mais que lícito afirmar que o fazer humano é que constrói o ser humano enquanto tal. Simplificando, se possível: o homem é um ser que transforma (modifica) a natureza externa, que enxerga a sua própria natureza (que se vê na sua natureza interna) e que transforma a sua própria natureza. Resumindo: à medida que ele transforma o mundo ele também se transforma, dá outra forma ao seu mundo interior. Lá pelos idos do século XIX, Friedrich Engels (1990) falava do sobre "o papel do trabalho na transformação do macaco em homem", suspeito que ele tinha razão.
Por sua vez, a palavra trabalho vem da palavra latina tripalium, que era um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes munidos de pontas de ferro, com o qual os agricultores batiam o trigo para separá-lo da espiga. A maioria dos dicionários, contudo, registra o tripálio apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente, ou, talvez, se tornado depois, não se sabe ao certo. O tripálio (do latim tri: três e palus: pau, literalmente, "três paus") é um instrumento romano de tortura, um tripé formado por três estacas cravadas no chão na forma de uma  pirâmide no qual eram supliciados os escravos. Daí derivou-se o verbo do latim vulgar tripaliare que significava, a princípio, torturar alguém no tripálio. É comumente aceito entre os linguistas que esses termos deram origem, no português, às palavras "trabalho" e "trabalhar", ainda que no seu sentido original o "trabalhador" fosse um carrasco, e não aquele que labora, que elabora e que se elabora, como entendemos hoje em dia.
Parece estranho a palavra trabalho derivar de um instrumento de tortura. Entretanto, se olharmos para a história do trabalho, veremos que faz todo sentido. As palavras não se formam do mero acaso. Então, olhemos para a história do trabalho.
Na pré-história, do paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Mas essa situação não dura, pois nos primórdios das primeiras cidades ela se modifica, com o surgimento do trabalho escravo, do patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos do território dominados pelos patriarcas. Sugiro aqui a leitura de uma obra clássica de Friedrich Engels (2006)A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.
A civilização nasce com vários aspectos sombrios e uma dessas sombras é a apropriação do trabalho alheio de forma arbitrária e violenta, através do trabalho escravo. O escravo é um indivíduo destituído da sua liberdade e que vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e negociável, como uma mercadoria. Na verdade, stricto sensu, é uma mercadoria como qualquer outra mercadoria.
No correr dos séculos, a exploração do trabalho sofreu várias mudanças, mas ainda permanecem situações muito obscuras, como se verá na sequência. Na idade média europeia, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho servil, principalmente na agropecuária. Os trabalhadores já não eram uma mercadoria negociável, mas não podiam sair das terras de seus senhores e estavam sujeitos a normas draconianas impostas por esses senhores feudais, que tudo podiam, já que eram a lei, a polícia e o juiz. Além disso, grande parte da produção camponesa era consumida pela aristocracia agrária e pelos seus soldados, deixando os trabalhadores da terra em constante situação de pobreza e, muitas vezes, de fome.
Todavia, nem toda relação de trabalho era opressiva na idade média europeia, pois havia um tipo de trabalho livre, que era o trabalho artesanal. O artesão era dono da sua oficina e das suas ferramentas e vendia a sua produção que, naquela época, era feita, na sua maioria, sob encomenda. Alfaiates, pintores, escultores, marceneiros, construtores, entre outros, exerciam o seu trabalho de forma livre. Tratava-se de um trabalho criativo, com começo, meio e fim e, por conta disso, prazeroso e, ainda por cima, melhor remunerado que o trabalho camponês.
A expansão da manufatura na Europa com maior ênfase a partir do século XV, já criando um princípio de estrutura fabril, começou a diminuir a importância do trabalho artesanal, aumentando o assalariamento na produção de mercadorias manufaturadas. Abrindo parêntesis: é importante lembrar aqui que a partir do século XV, o trabalho escravo foi recriado nas colônias Europeias, com destaque para as Américas. Entretanto, a destruição da produção artesanal ocorrerá definitivamente com a Primeira Revolução Industrial, que tem seu início no final do século XVIII na Inglaterra. A partir daí as oficinas dos artesãos serão fechadas e eles se tornarão assalariados. Nessa época também ocorrerá um êxodo rural de grande monta e levas e mais levas de camponeses serão lançados no mercado de trabalho da indústria nascente e crescente. Trata-se de um período de extrema exploração do trabalhador: salários baixos, jornadas de trabalho extensas, trabalho infantil e feminino abusivos, situações de grande insalubridade nos locais de trabalho, entre outras formas de degradação e o que é mais importante, o trabalho deixou de ser criativo, tornando-se repetitivo e monótono. A melhor definição para essa forma de trabalho é "trabalho alienado".
Uma forma de remediar os efeitos nefastos do trabalho alienado, levantada já no século XIX por pensadores sociais como Karl Marx e Paul Lafargue, e que adquiriu um certo consenso no meio dos cientistas sociais que vieram a seguir, é a redução da jornada de trabalho. Com isso as pessoas poderiam fazer coisas criativas, inteligentes e agradáveis no seu tempo livre. E, de fato, do século XIX até os dias de hoje, as jornadas de trabalho diminuíram muito, com destaque para os países europeus. Recentemente, o sociólogo Domenico De Masi (2000) retomou a discussão sobre a importância do tempo livre no seu livro "O ócio criativo".
Com o correr da história e com as lutas de resistência dos operários, que se organizaram em sindicatos e partidos políticos, a exploração foi diminuindo e as condições de trabalho foram paulatinamente melhoradas. Os salários subiram, as jornadas foram reduzidas e muitos benefícios foram introduzidos nas relações entre capital e trabalho, tais como férias remuneradas, aposentadoria, entre outras, melhorando as condições de vida da maioria da população, que é assalariada, e diminuindo a pobreza nos países industrializados.
À Primeira Revolução Industrial seguiu a Segunda Revolução, na segunda metade do século XIX, que completou a industrialização na Europa e se estendeu aos Estados Unidos e Japão. No século XX a industrialização se estende a países como Brasil, Argentina, entre outros, trata-se de um desenvolvimento tardio. O que é interessante de se notar é que, tanto na Segunda Revolução quanto na industrialização tardia, muitos benefícios serão incorporados, tornando o trabalho menos árduo que na Primeira Revolução, são avanços efetivos, há que se considerar.
Entretanto, no que diz respeito à criatividade no trabalho, a situação pouco mudou, já que o trabalho industrial continuou repetitivo e monótono, por conta do excessivo parcelamento das atividades nas linhas de montagem (lembram-se do Charlie Chaplin em Tempos Modernos?). Todavia, em contrapartida, a moderna divisão do trabalho produz um resultado benéfico à sociedade, que é o barateamento das mercadorias, que foi preconizado por Adam Smith (1985), o pai da economia política, na sua magnífica obra, Riqueza das Nações.
Parecia que tudo estava caminhando bem, mas no final do século XX, principalmente por conta do crescimento da indústria na Ásia, com destaque para a China, Singapura, Vietnã etc., que se dá de forma precária (jornadas excessivas, baixos salários, condições insalubres etc.), a situação do trabalho e dos trabalhadores sofreu um revés em todo mundo, incluindo aí a Europa e os Estados Unidos. A concorrência internacional fez aumentar o desemprego fora dos países asiáticos e as condições de trabalho também pioraram, principalmente por conta das terceirizações, chegando a registrar, inclusive, muitas ocorrências de trabalho similar ao escravo, como no caso da indústria de roupas feitas no Estado de São Paulo. Em muitos casos a situação retrocedeu ao que era nos séculos XVIII e XIX e até pioraram, como no caso do trabalho escravo.
Do exposto até aqui surgem algumas questões: 1) será que a exploração do homem pelo homem e das nações por outras nações é o único modus operandi possível para a civilização?; 2) será que a produção de bens de consumo precisa dar-se de forma tão alienada, alijando em demasia os trabalhadores dos processos criativos, para que tais bens sejam acessíveis à maioria das pessoas?; 3) será que a necessidade permanente de acúmulo de riquezas pelos países, o desejado e buscado "desenvolvimento econômico" tem que se dar de forma tão competitiva e predatória, onde tudo vale, num tipo de guerra permanente entre todos?
Laudas e mais laudas já foram escritas sobre estas questões e muitas outras ainda serão produzidas e não serão em demasia, pois parece até possível que toda essa enorme e desenfreada competição dê cabo da civilização. A crise ambiental, com destaque para o aquecimento global, já está dando o seu alerta. Não são apenas as pessoas que são passíveis de exploração, a natureza também tem sido explorada além da sua capacidade de suporte. Então, completo aqui a primeira questão acima levantada: será que a exploração abusiva da natureza também faz parte do modus operandi da civilização?
É mais que evidente que parar ou diminuir o ritmo dessa grande máquina (civilização), que foi posta em movimento com o surgimento das primeiras cidades, é um trabalho hercúleo - olha o trabalho aí de novo! Quiçá seja possível redirecionar a máquina da civilização positivamente, sem que ela se desmonte, jogando a humanidade num estado de barbárie. Será possível fazê-lo? Esta é uma questão a ser respondida com a devida urgência. Todavia, não se trata de uma tarefa para um herói em particular, mas de uma árdua tarefa para toda humanidade, o que a torna muito difícil, entretanto imprescindível.
Por onde começar? A resposta a esta questão é difícil e, talvez, por conta disso, a melhor forma de iniciar seja retrabalhando o significado do trabalho. Outros valores também necessitam de ressignificação, mas como o trabalho é um elemento fundante da humanidade, talvez seja o mais importante, é de bom alvitre começar por ele. Durante a maior parte da história da civilização o trabalho esteve associado ao sofrimento, como já foi visto, e, por conta disso, foi estigmatizado. Há que se resgatar a dignidade do trabalho e, para tanto, precisamos compreendê-lo na sua profundidade, atingindo a sua essência.
Comecemos por lembrar que o homem é um ser social e que, neste sentido, o trabalho é um elemento essencial à socialização. A forma como cada ser humano trabalha determina a sua forma de ser e o seu conjunto de relações. Ele começa a trabalhar para cuidar de si e dos membros do seu grupo, com destaque para as crianças, que necessitam de proteção plena e não têm como produzir a sua própria existência. Então, desde o seu início, o trabalho surge também como um serviço prestado ao outro. Estou falando aqui do trabalho essencialmente humano, que significa utilizar-se da natureza e modificá-la a seu serviço, criando com isso um processo que não se repete apenas, mas que aumenta a sua dimensão e que se aperfeiçoa, criando isso que conhecemos como cultura.
A humanidade precisa fazer mea culpa e ressignificar positivamente o trabalho. Ela precisa abolir todas as formas de aviltamento das relações trabalhistas existentes e elas ainda são muitas. O trabalho meramente repetitivo precisa diminuir e quando isso não for de todo possível, deverá ter seus efeitos negativos minimizados, a redução das jornadas pode ajudar neste sentido, liberando tempo para que as pessoas exerçam a sua criatividade de alguma forma.
Cabe reforçar aqui a ideia de que trabalhar significa uma relação de cuidado (ver meu artigo, que será reproduzido abaixo) e que o cuidado determina o modo de ser humano. Os humanos são cuidados quando crianças, passam a cuidar quando ficam adultos e recebem cuidados na sua velhice. Tudo isso implica em afetividade e o afeto, neste sentido, é a essência mais profunda do ser humano. O trabalho escravo, ainda sobrevivente, e as demais degradações laborais, como a exploração das crianças e das mulheres, entre outras, vão no sentido contrário à essência humana.
Começar pela ressignificação do trabalho no imaginário coletivo da humanidade talvez seja o primeiro passo a ser dado. A partir daí outros passos serão dados, criando um movimento sustentado positivamente, resgatando os valores humanos, que sempre se formam a partir do cuidado e do afeto. Depois disso, o trabalho ressignificado (re)assumirá o seu real papel na história da humanidade que é o de serviço (não se trata do trabalho servil inferiorizado, mas do trabalho com características cooperativas), ajudando-a a seguir na sua trajetória humanizante. Trabalho e serviço passarão a ser, de fato, sinônimos. Só mais uma última consideração: a urgência é necessária. Ao meu artigo (ensaio) sobre o cuidado.

4.      Saber cuidar a essência do humano

Cuidado é o tema principal do livro Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra, de Leonardo Boff (1999), onde ele resgata a fábula-mito do Cuidado ou Fábula de Higino. Caio Júlio Higino, em latim Gaius Julius Higinus, foi um escritor da Roma Antiga (primeiro século a.C.). Sua principal obra chama-se Fábulas ou Genealogias. Trata-se da recompilação de 300 lendas, histórias e mitos da tradição greco-latina. Eis a fábula:
Certa vez, depois de atravessar um rio, o deus Cuidado viu uma porção de barro. Então, teve uma inspiração. Tomou um pouco de barro e deu-lhe uma forma. Enquanto contemplava a sua obra, apareceu Júpiter, o senhor de todos os deuses. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele, o que Júpiter fez com satisfação. Todavia, quando Cuidado quis dar um nome a sua criatura, Júpiter o proibiu, exigindo que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu a deusa Terra. Ela quis também dar o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, que era material do seu próprio corpo, provocando com isso uma discussão generalizada. Como não chegavam a um acordo, chamaram Saturno para que funcionasse como árbitro da questão. Procurando ser justo, Saturno tomou a sua decisão: "Você, Júpiter, deu-lhe o espírito e, por isso, recebê-lo-á de volta quando a criatura morrer. Você, Terra, deu-lhe o corpo e recebê-lo-á de volta quando da sua morte. Cuidado, como você foi quem moldou tal criatura, ela deverá ficar sob seus cuidados enquanto viver. E, já que vocês não chegam a um acordo sobre o seu nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.
O ser humano nasceu, assim como todos os seres, do corpo da Terra. Conforme a lenda, nasceu de uma terra fértil, do húmus da terra, que foi trabalhada com esmero e muito cuidado pelo deus Cuidado. A palavra humilde também deriva de húmus e, desta forma, ser humilde significaria reconhecer-se filho da Terra, da sua fertilidade, assim como todos as demais criaturas que também são filhas da mesma mãe, que também se formaram a partir do mesmo corpo, do mesmo barro.
A partir da fábula-mito do cuidado, podemos elaborar uma linha de raciocínio que pode levar-nos a entender o propósito maior da existência, o do cuidado necessário com o ser humano, que deve refletir-se no cuidado com a própria Terra, que é ao mesmo tempo nossa mãe e nossa casa, cuja maternidade e abrigo dividimos com todos os seres vivos, nossos irmãos. Reconhecer-se filho da mesma mãe significa compreender e respeitar a teia da vida que foi sendo construída lentamente, durante milhões e milhões de anos no nosso planeta.
O mito do cuidado é mais que pertinente nos dias de hoje, pois faz com que nos relembremos da nossa íntima ligação com a Terra, o nosso planeta, instando-nos a que humildemente nos religuemos a ela, pois, neste momento, ela também necessita dos nossos cuidados. Trata-se, metaforicamente, da necessidade de uma volta para casa. Ele também pode servir como uma metáfora de caráter educativo, pois serve para despertar naquele que lê uma reflexão sobre a necessidade de cuidar dos seres humanos que sofrem e também de transformar o cuidado recebido pelo deus Cuidado, sob as ordens de Saturno, no cuidado com todos os outros seres viventes, com a própria Terra, por extensão.
O cuidado surge quando a situação de existir de alguém tem importância para outro alguém também existente, trata-se de uma relação, de um conjunto de relações. Alguém sai de si mesmo e conecta-se a outros, que, reciprocamente, também fazem o mesmo movimento. Por outro lado, a palavra cuidado significa preocupação, inquietação, sentido de responsabilidade, pois aquele que cuida sente-se envolvido e afetivamente ligado ao outro. Então, o cuidado é algo que se liga àquilo que é a essência primitiva, a essência primeira, do ser humano, que não é a razão, mas o afeto. O afeto antecede a razão; ele se encontra naquela situação de proteção que cada ser humano recebe nos primeiros dias da sua vida, naqueles momentos em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao mundo que o cerca, naquele momento em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao outro.
O cuidado é o modo de ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano e ele é cuidado e se cuida em grupo, sendo dessa maneira um ser social. Caso não receba cuidados, desde o nascimento até a morte, ele se desestrutura, definha e morre. Ele recebe cuidados para aprender a cuidar. Ele deve aprender a cuidar de si mesmo depois da sua infância, que é bem longa se comparada com a de outros animais, para em seguida aprender a cuidar dos outros humanos e dos demais seres vivos do planeta, pois tudo que vive precisa de cuidados para viver. Esta é a regra do jogo neste mundo.
Conforme a fábula de Higino, o cuidado é fundamental para a existência e, neste sentido, antecede o espírito soprado por Júpiter e o corpo esculpido por Cuidado com o húmus fornecido pela deusa Terra. O Cuidado é a essência divina, é um a priori, ele preexiste. É aquele Eros, o puro amor, aquele deus grego da antiga cosmogonia, que surge no início dos tempos para estimular a união dos seres.
Sem cuidados a vida e os humanos não existiriam. Então, há que se ter cuidado com tudo. É preciso ter compaixão com todos os seres que sofrem, humanos e não humanos, obedecendo mais o coração, seguindo mais a lógica da cordialidade do que a da competição e do uso utilitário das coisas. Há que se ter cuidado com a Terra e com a sociedade, particularmente com os excluídos, com todos, enfim.
Neste momento, em desespero, tanto a Terra quanto a humanidade clamam por cuidados essenciais. A degradação ambiental, a pobreza de milhões de pessoas e as violências de todos os tipos precisam ser enfrentadas. Enfim, a grande crise pela qual passa o planeta Terra, só pode ser enfrentada com mais cuidado, o que resulta num clamor por um novo ordenamento ético para a humanidade e para o nosso planeta.
Contudo, as crises criam novas oportunidades e, neste momento, elas possibilitam mergulhos na instância onde, segundo Leonardo Boff (2003), os valores são continuamente forma­dos. Segundo ele, a nova ética planetária “deve brotar da base última da existência humana”. Ela não está na razão, como deseja o Ocidente. A razão não é a essência da existência e por isso não pode explicar e nem abranger tudo. A essên­cia do existir está em “algo mais elementar e ancestral: a afetividade”. Então, contrariando Descartes, que é o pilar do saber ocidental, a experiência basilar não é o seu “penso, logo existo”, mas, segundo Boff, é o “sinto, logo existo”.
Assim, para Boff (2003), na raiz de todas as coisas não está a razão (logos), mas a paixão (pathos). “Pela paixão captamos o valor das coisas (...) Só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos move­mos e somos”. Neste ponto, Boff observa o surgimento de uma dramática dialética entre razão e paixão, já que ele em absoluto não menospreza o papel da razão:

Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética uti­litária. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedo­nista, do puro gozo das coisas. Mas, se vigorar a justa medida, e a paixão se servir da razão para um autodesenvolvimento regrado, então emergem as duas forças que sustentam uma ética promissora: a ternura e o vigor.

Leonardo Boff (2003) considera que dessas premissas pode surgir uma ética que será ca­paz de incluir toda a humanidade. Essa nova ética deverá estruturar-se em torno de valo­res fundamentais ligados à vida, ao seu cuidado, ao fazer humano, às relações cooperati­vas e à cultura da não violência e da paz. “É um ethos que ama, que cuida, se responsabi­liza, se solidariza e se compadece”.

5.      Uma tragédia anunciada e uma nova ética para o planeta

A partir da década de 1970, muitos alertas foram dados sobre a situação de risco que paira sobre o planeta Terra. Uma catástrofe de grande porte está se aproximando e, como a sua causa não vem do espaço ou dos subterrâneos do planeta, talvez haja tempo ainda para evitá-la ou, melhor, minimizá-la, melhor ainda, diminuir a sua dimensão. Trata-se de um risco construído pela humanidade na sua trajetória, aos poucos, mais precisamente há cerca de dois séculos. Caso olhemos para o tempo geológico, que é contado em milhões de anos, observamos o seu processo curtíssimo de formação. Os humanos e, indiretamente, todos os demais seres – os inocentes pagam pelos culpados – começam a colher as consequências de um modelo de economia que começou na Primeira Revolução Industrial, no final do século XVIII, com a invenção da máquina a vapor e com o uso intenso do carvão mineral.
Estamos falando de algo que está na pauta dos mais variados jornais e das revistas, das escolas, dos congressos científicos, dos governos, etc.: o aquecimento global (efeito estufa). Este fenômeno tem muitas causas: o desflorestamento, a emissão de metano nos lixões, a emissão de metano pela bovinocultura, mas a principal delas é o uso do combustível fóssil (carvão e petróleo), com suas emissões de gás carbônico na atmosfera. No rol de emissores de gás carbônico destacam-se a indústria e o transporte individual (automóveis). O fenômeno é bem simples: os gases do efeito estufa retém o calor na atmosfera, não permitindo que ele se dissipe rumo ao espaço.
A partir da Primeira Revolução Industrial, a economia entrou num ritmo de crescimento nunca visto até então. Os séculos XIX e XX presenciaram outra revolução econômica, essa de maior monta, a Segunda Revolução Industrial. Mais particularmente, todo o século XX presenciou a expansão do uso de uma nova fonte de energia, o Petróleo, principal agente do aquecimento global, mas as coisas não pararam por aí. A expansão da produção de mercadorias e o consequente crescimento econômico, que as revoluções industriais propiciaram, tornaram-se necessidades e objetivos de todas as nações, que os assimilaram como a tradução do que viria a ser o desenvolvimento econômico. Então, país não industrializado passou a significar país subdesenvolvido, trata-se de uma simplificação.
O desenvolvimento tecnológico que tem acompanhado as revoluções industriais possibilitou a produção de uma infinidade nunca antes imaginada de produtos, daquilo que os economistas chamam de bens de consumo. Então, nasceu o que hoje chamamos de sociedade de consumo e, com ela, o seu principal ator social, o consumidor com poder de compra, o cidadão consumidor; chegamos ao ponto de pensarmos o simples acesso ao consumo como se fosse o acesso definitivo à cidadania, o que se trata de um reducionismo imbecilizante, no mínimo. Por muito tempo pensamos que o sonho do consumo crescente, ilimitado, uma cornucópia sem limites vomitando produtos, seria possível e acessível a todos no planeta. Bastava apenas que cada país cumprisse o seu papel e entrasse no caminho da ordem e do progresso, da ordem capitalista e do progresso material.
Hoje, na primeira metade do século XXI, fica cada vez mais claro que esse sonho é de difícil concretização. Usando a linguagem dos ecologistas: a Terra, com a sua capacidade de suporte, seus limites, não sustenta um crescimento econômico infinito, pois ela é finita e funciona através de ciclos – estações do ano, ciclo hidrológico, nascimento-morte-nascimento etc. – e não, apenas, através de acúmulos, acúmulos e mais acúmulos. As consequências do modelo adotado já estão visíveis: grande acumulação e concentração de riquezas e desacumulação do meio ambiente.
Como desacumulação ambiental podemos observar: a água doce disponível para consumo humano e dos demais seres vivos está cada vez mais contaminada; a temperatura do planeta está aumentando e as suas consequências já se fazem sentir no derretimento das geleiras, nas secas e nas inundações, por exemplo; as terras agrícolas sofrem processos erosivos de grande monta e estão contaminadas por defensivos agrícolas; a biodiversidade da Terra está diminuindo dia-a-dia e, talvez, até desapareçam espécies animais e vegetais sem que a humanidade jamais as tenha conhecido; etc.
Além de todas as mazelas rapidamente expostas acima, há uma questão moral, porque não dizer ética: a quem serviu todo esse progresso? Serviu a toda a humanidade? Caso observemos bem de perto, nem precisa de tanta proximidade, percebemos que todo esse avanço da produção de bens materiais beneficiou uma parte menor da humanidade, deixando a África, muitos países asiáticos e a maioria dos países da América Latina de fora. Os países ricos “beneficiam-se” com o consumo desenfreado enquanto os países pobres veem o esgotamento dos seus recursos naturais e recebem, por tabela, os efeitos do aquecimento global, resultante da queima excessiva de combustíveis fósseis nos primeiros, em grande parte extraídos nos segundos.
Explicando o beneficiam-se entre aspas do parágrafo acima: nem sempre consumir muito significa bem-estar, isto depende em larga medida do que e do quanto se consome; consumir alimentos com excesso de defensivos agrícolas, excessivamente processados (industrializados), com gorduras trans, muito açúcar e muito sal, por exemplo, muitas vezes ingeridos nos fast foods espalhados pelos mais diversos centros urbanos do planeta, não é a melhor forma de se alimentar, com certeza. Os casos crescentes de obesidade mórbida em muitos países estão aí para confirmar esta assertiva. Os gastos absurdamente altos que os municípios precisam destinar ao tratamento dos resíduos sólidos (lixo) também estão entre as muitas contrapartidas negativas do consumo exagerado.
Esta breve explanação não tem maiores pretensões do que a de lançar sementes de preocupação nos corações e mentes dos leitores, apenas isto. Nunca na história da humanidade foi tão oportuno e necessário debruçar-se atentamente sobre o destino dos homens e de todos os seres do planeta como agora. É uma oportunidade ímpar, onde somos chamados a nos revermos e a revisitarmos as nossas relações com os nossos iguais e com todos os seres a nossa volta. É o ponto de partida para podermos modificar os nossos comportamentos econômicos, sociais e ecológicos à luz de uma nova ética, que deverá alicerçar-se no cuidado, no cuidado conosco, com nossos semelhantes, com a natureza, enfim, com toda a Terra, que é, ao mesmo tempo, nossa mãe e nossa morada.
Todo o exposto acima alerta-nos para a necessidade de se construir uma nova ética para balizar o comportamento de todos os seres humanos do planeta. É necessária a elaboração de um conjunto de regras mínimas e comuns a toda humanidade, independente das nacionalidades, religiões, raças etc., para doravante se buscar a minimização dos impactos antrópicos sobre a natureza. Assim, é necessária uma compreensão mínima sobre o significado da ética.
A palavra ética vem da palavra grega ethos, que significa morada. Todavia, não se tratava e, também hoje, não deve ser compreendida como a casa material, mas como a casa existencial. A casa existencial significava para os gregos a teia de relações entre o meio físico e os membros da comunidade. Para os dias de hoje, recuperando a concepção grega, a morada não deve ser apenas a casa onde as pessoas habitam, deve ser também a cidade, o país e o planeta Terra, a casa de todos.
A necessidade de se construir uma ética para a Terra é impor­tante e sua relevância para a própria sobrevivência da humanidade é inquestionável, pois a busca desenfreada por riqueza e poder e a luta sangrenta pela partilha das riquezas naturais têm impedido a convivência harmoniosa entre todos os homens e destes com os demais seres. Guerras e destruição ambiental são os resultados mais visíveis da desarmonia instalada. Há que se fundar um novo ethos para se criar uma relação nova entre os homens e destes com todos os demais seres. A nova ética deverá nascer da natu­reza mais profunda do ser humano. A essência do homem está mais no cuidado, na compaixão, do que na razão e na vontade. Há que se resgatar a essên­cia do humano.
O ser humano é um animal que, pela sua natureza, produz cultura. Ele cria normas e instituições a partir de estímulos do meio ambiente e das relações com os semelhantes e, as­sim, acaba modelando a sua própria natureza. Ele tam­bém é um animal que con­segue sobreviver em diversos ecossistemas, adaptando-se a eles e moldando-os de acordo com as suas necessidades. Toda sociedade, a partir da sua cultura, desen­volve uma ideia particu­lar do que é a natureza. Então, o conceito de natu­reza não é natural, ele é criado e ins­tituído pelos homens. É um dos pilares que sustentam as relações sociais e a produ­ção material e espiritual dos povos. Para a sociedade atual, destacando-se a oci­dental, a natu­reza, por definição, contrapõe-se à cultura. A cultura é considerada como algo supe­rior e que, por isso, pode controlar a natureza.
A partir da Revolução Científica e da Revolução Industrial, o homem colocou-se acima da natu­reza, acima dos demais seres que nela convivem. Trata-se de um pro­cesso de sepa­ração, de um processo que coloca a natureza a sua plena disposi­ção. Todos já ouviram a expressão “o homem é um animal social”, distinguindo-o dos outros animais. Ocorre que a vida social não é privilégio da humanidade. A sociabilidade acontece de forma ampla no mundo animal. Esta atitude arrogante produz um fosso entre a humanidade e a natureza. Ela tornou-se estranha ao homem, que se acredita dela separado. Na sua mente ela deixou de ser a sua morada, pois a sua casa passou a ser apenas a natureza por ele modifi­cada, a natureza “construída”.
Nos últimos séculos a justificativa dada para o avanço da ciência e da indústria tem sido a elevação do nível de consumo. O consumo é essencial para a vida humana; não é esta a questão. O problema não é o consumo em si, mas os seus padrões e efeitos sobre o meio ambiente é que são questioná­veis. O atendi­mento de várias possibilidades de consumo deve acontecer para melhorar as condições de vida das populações excluídas, não se questiona isto, de forma alguma.
O consumo moderno, contudo, seguiu cami­nhos tortuosos e virou consumismo, penetrando no inconsciente coletivo da população, onde se confundiu com o desejo de liberdade. Ser livre é poder apropriar-se da natureza, transformá-la em bens de consumo e consumi-la. Quanto maior o consumo maior a liberdade. Em rela­ção à natureza consolida-se, com a aceitação deste conceito de liber­dade, uma ética utilitarista. A natureza está aí para ser usada e abusada.
A abundância de bens de consumo produzidos pela indús­tria é vista como um símbolo do sucesso das economias modernas. En­tretanto, de algumas décadas para cá, esta abundância começou a ser vista com olhares negativos, já que o consumismo passou a ser considerado um problema social.
O consumo exacerbado não é mais uma opção aberta, com amplas possibilidades para toda a Terra. A aceitação da ideia de um “desenvol­vimento sustentável” indica que se fixou um limite superior para o progresso. Esta aceitação coloca um novo e saudável desafio: como eliminar a miséria, sem desrespeitar a capacidade de suporte do planeta?
Po­demos querer empurrar o crescimento além dos limites, mas devemos ter cons­ciência do fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmese da natureza. A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a própria medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante) eram imediatamente fulminados por Nêmese. Há muito a humanidade vem exercendo a sua arrogância e a deusa já começou a manifestar a sua ira. O desarranjo do clima pode ser só o começo. Não devemos pagar para ver, mas muitos ainda acham que sim.
A partir da década de 1970, muitos alertas foram dados sobre a situação de risco que paira sobre o planeta Terra. Uma catástrofe de grande porte está se aproximando e, como a sua causa não vem do espaço ou dos subterrâneos do planeta, talvez haja tempo ainda para evitá-la ou, melhor, minimizá-la, melhor ainda, diminuir a sua dimensão. Trata-se de um risco construído pela humanidade na sua trajetória, aos poucos, mais precisamente há cerca de dois séculos. Caso olhemos para o tempo geológico, que é contado em milhões de anos, observamos o seu processo curtíssimo de formação. Os humanos e, indiretamente, todos os demais seres – os inocentes pagam pelos culpados – começam a colher as consequências de um modelo de economia que começou na Primeira Revolução Industrial, no final do século XVIII, com a invenção da máquina a vapor e com o uso intenso do carvão mineral.
Estamos falando de algo que está na pauta dos mais variados jornais e das revistas, das escolas, dos congressos científicos, dos governos, etc.: o aquecimento global (efeito estufa). Este fenômeno tem muitas causas: o desflorestamento, a emissão de metano nos lixões, a emissão de metano pela bovinocultura, mas a principal delas é o uso do combustível fóssil (carvão e petróleo), com suas emissões de gás carbônico na atmosfera. No rol de emissores de gás carbônico destacam-se a indústria e o transporte individual (automóveis). O fenômeno é bem simples: os gases do efeito estufa retém o calor na atmosfera, não permitindo que ele se dissipe rumo ao espaço.
A partir da Primeira Revolução Industrial, a economia entrou num ritmo de crescimento nunca visto até então. Os séculos XIX e XX presenciaram outra revolução econômica, essa de maior monta, a Segunda Revolução Industrial. Mais particularmente, todo o século XX presenciou a expansão do uso de uma nova fonte de energia, o Petróleo, principal agente do aquecimento global, mas as coisas não pararam por aí. A expansão da produção de mercadorias e o consequente crescimento econômico, que as revoluções industriais propiciaram, tornaram-se necessidades e objetivos de todas as nações, que os assimilaram como a tradução do que viria a ser o desenvolvimento econômico. Então, país não industrializado passou a significar país subdesenvolvido, trata-se de uma simplificação.
O desenvolvimento tecnológico que tem acompanhado as revoluções industriais possibilitou a produção de uma infinidade nunca antes imaginada de produtos, daquilo que os economistas chamam de bens de consumo. Então, nasceu o que hoje chamamos de sociedade de consumo e, com ela, o seu principal ator social, o consumidor com poder de compra, o cidadão consumidor; chegamos ao ponto de pensarmos o simples acesso ao consumo como se fosse o acesso definitivo à cidadania, o que se trata de um reducionismo imbecilizante, no mínimo. Por muito tempo pensamos que o sonho do consumo crescente, ilimitado, uma cornucópia sem limites vomitando produtos, seria possível e acessível a todos no planeta. Bastava apenas que cada país cumprisse o seu papel e entrasse no caminho da ordem e do progresso, da ordem capitalista e do progresso material.
Hoje, na primeira metade do século XXI, fica cada vez mais claro que esse sonho é de difícil concretização. Usando a linguagem dos ecologistas: a Terra, com a sua capacidade de suporte, seus limites, não sustenta um crescimento econômico infinito, pois ela é finita e funciona através de ciclos – estações do ano, ciclo hidrológico, nascimento-morte-nascimento etc. – e não, apenas, através de acúmulos, acúmulos e mais acúmulos. As consequências do modelo adotado já estão visíveis: grande acumulação e concentração de riquezas e desacumulação do meio ambiente.
Como desacumulação ambiental podemos observar: a água doce disponível para consumo humano e dos demais seres vivos está cada vez mais contaminada; a temperatura do planeta está aumentando e as suas consequências já se fazem sentir no derretimento das geleiras, nas secas e nas inundações, por exemplo; as terras agrícolas sofrem processos erosivos de grande monta e estão contaminadas por defensivos agrícolas; a biodiversidade da Terra está diminuindo dia-a-dia e, talvez, até desapareçam espécies animais e vegetais sem que a humanidade jamais as tenha conhecido; etc.
Além de todas as mazelas rapidamente expostas acima, há uma questão moral, porque não dizer ética: a quem serviu todo esse progresso? Serviu a toda a humanidade? Caso observemos bem de perto, nem precisa de tanta proximidade, percebemos que todo esse avanço da produção de bens materiais beneficiou uma parte menor da humanidade, deixando a África, muitos países asiáticos e a maioria dos países da América Latina de fora. Os países ricos “beneficiam-se” com o consumo desenfreado enquanto os países pobres veem o esgotamento dos seus recursos naturais e recebem, por tabela, os efeitos do aquecimento global, resultante da queima excessiva de combustíveis fósseis nos primeiros, em grande parte extraídos nos segundos.
Explicando o beneficiam-se entre aspas do parágrafo acima: nem sempre consumir muito significa bem-estar, isto depende em larga medida do que e do quanto se consome; consumir alimentos com excesso de defensivos agrícolas, excessivamente processados (industrializados), com gorduras trans, muito açúcar e muito sal, por exemplo, muitas vezes ingeridos nos fast foods espalhados pelos mais diversos centros urbanos do planeta, não é a melhor forma de se alimentar, com certeza. Os casos crescentes de obesidade mórbida em muitos países estão aí para confirmar esta assertiva. Os gastos absurdamente altos que os municípios precisam destinar ao tratamento dos resíduos sólidos (lixo) também estão entre as muitas contrapartidas negativas do consumo exagerado.
Esta breve explanação não tem maiores pretensões do que a de lançar sementes de preocupação nos corações e mentes dos leitores, apenas isto. Nunca na história da humanidade foi tão oportuno e necessário debruçar-se atentamente sobre o destino dos homens e de todos os seres do planeta como agora. É uma oportunidade ímpar, onde somos chamados a nos revermos e a revisitarmos as nossas relações com os nossos iguais e com todos os seres a nossa volta. É o ponto de partida para podermos modificar os nossos comportamentos econômicos, sociais e ecológicos à luz de uma nova ética, que deverá alicerçar-se no cuidado, no cuidado conosco, com nossos semelhantes, com a natureza, enfim, com toda a Terra, que é, ao mesmo tempo, nossa mãe e nossa morada.
Todo o exposto acima alerta-nos para a necessidade de se construir uma nova ética para balizar o comportamento de todos os seres humanos do planeta. É necessária a elaboração de um conjunto de regras mínimas e comuns a toda humanidade, independente das nacionalidades, religiões, raças etc., para doravante se buscar a minimização dos impactos antrópicos sobre a natureza. Assim, é necessária uma compreensão mínima sobre o significado da ética.
A palavra ética vem da palavra grega ethos, que significa morada. Todavia, não se tratava e, também hoje, não deve ser compreendida como a casa material, mas como a casa existencial. A casa existencial significava para os gregos a teia de relações entre o meio físico e os membros da comunidade. Para os dias de hoje, recuperando a concepção grega, a morada não deve ser apenas a casa onde as pessoas habitam, deve ser também a cidade, o país e o planeta Terra, a casa de todos.
A necessidade de se construir uma ética para a Terra é impor­tante e sua relevância para a própria sobrevivência da humanidade é inquestionável, pois a busca desenfreada por riqueza e poder e a luta sangrenta pela partilha das riquezas naturais têm impedido a convivência harmoniosa entre todos os homens e destes com os demais seres. Guerras e destruição ambiental são os resultados mais visíveis da desarmonia instalada. Há que se fundar um novo ethos para se criar uma relação nova entre os homens e destes com todos os demais seres. A nova ética deverá nascer da natu­reza mais profunda do ser humano. A essência do homem está mais no cuidado, na compaixão, do que na razão e na vontade. Há que se resgatar a essên­cia do humano.
O ser humano é um animal que, pela sua natureza, produz cultura. Ele cria normas e instituições a partir de estímulos do meio ambiente e das relações com os semelhantes e, as­sim, acaba modelando a sua própria natureza. Ele tam­bém é um animal que con­segue sobreviver em diversos ecossistemas, adaptando-se a eles e moldando-os de acordo com as suas necessidades. Toda sociedade, a partir da sua cultura, desen­volve uma ideia particu­lar do que é a natureza. Então, o conceito de natu­reza não é natural, ele é criado e ins­tituído pelos homens. É um dos pilares que sustentam as relações sociais e a produ­ção material e espiritual dos povos. Para a sociedade atual, destacando-se a oci­dental, a natu­reza, por definição, contrapõe-se à cultura. A cultura é considerada como algo supe­rior e que, por isso, pode controlar a natureza.
A partir da Revolução Científica e da Revolução Industrial, o homem colocou-se acima da natu­reza, acima dos demais seres que nela convivem. Trata-se de um pro­cesso de sepa­ração, de um processo que coloca a natureza à sua plena disposi­ção. Todos já ouviram a expressão “o homem é um animal social”, distinguindo-o dos outros animais. Ocorre que a vida social não é privilégio da humanidade. A sociabilidade acontece de forma ampla no mundo animal. Esta atitude arrogante produz um fosso entre a humanidade e a natureza. Ela tornou-se estranha ao homem, que se acredita dela separado. Na sua mente ela deixou de ser a sua morada, pois a sua casa passou a ser apenas a natureza por ele modifi­cada, a natureza “construída”.
Nos últimos séculos a justificativa dada para o avanço da ciência e da indústria tem sido a elevação do nível de consumo. O consumo é essencial para a vida humana; não é esta a questão. O problema não é o consumo em si, mas os seus padrões e efeitos sobre o meio ambiente é que são questioná­veis. O atendi­mento de várias possibilidades de consumo deve acontecer para melhorar as condições de vida das populações excluídas, não se questiona isto, de forma alguma.
O consumo moderno, contudo, seguiu cami­nhos tortuosos e virou consumismo, penetrando no inconsciente coletivo da população, onde se confundiu com o desejo de liberdade. Ser livre é poder apropriar-se da natureza, transformá-la em bens de consumo e consumi-la. Quanto maior o consumo maior a liberdade. Em rela­ção à natureza consolida-se, com a aceitação deste conceito de liber­dade, uma ética utilitarista. A natureza está aí para ser usada e abusada.
A abundância de bens de consumo produzidos pela indús­tria é vista como um símbolo do sucesso das economias modernas. En­tretanto, de algumas décadas para cá, esta abundância começou a ser vista com olhares negativos, já que o consumismo passou a ser considerado um problema social.
O consumo exacerbado não é mais uma opção aberta, com amplas possibilidades para toda a Terra. A aceitação da ideia de um “desenvol­vimento sustentável” indica que se fixou um limite superior para o progresso. Esta aceitação coloca um novo e saudável desafio: como eliminar a miséria, sem desrespeitar a capacidade de suporte do planeta?
Po­demos querer empurrar o crescimento além dos limites, mas devemos ter cons­ciência do fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmese da natureza. A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a própria medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante) eram imediatamente fulminados por Nêmese. Há muito a humanidade vem exercendo a sua arrogância e a deusa já começou a manifestar a sua ira. O desarranjo do clima pode ser só o começo. Não devemos pagar para ver, mas muitos ainda acham que sim.

Referências

BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
_______. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes 1999.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. São Paulo: Editora Sextante, 2000.
ENGELS. Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Rio de Janeiro: Global Editora, 1990.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro Editora, 2006.
LAFARGE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre a sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural, 1985.



* Zildo Gallo, economista pela PUC-Campinas, mestre e doutor em geociências pela UNICAMP, professor do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (mestrado e doutorado) na Universidade de Araraquara – UNIARA.


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