ZILDO
GALLO*
Este ensaio reúne cinco artigos publicados
no zildo-gallo.blogspot.com e tem como objetivo contribuir com a discussão
sobre a crise paradigmática que envolve toda a humanidade num clima de
incertezas e medos. Velhos paradigmas precisam ser superados e eles lutam
encarniçadamente para esticar a sua sobrevivência, colocando em risco, com essa
teimosia, a própria sobrevivência da humanidade dentro de padrões civilizados.
Neste momento do planeta, a barbárie não é uma questão a ser desprezada, ela já
se coloca no horizonte como uma ameaça realizável num prazo muito curto. Acredito
que, nesta hora crucial, toda contribuição ao debate sobre o tema seja
relevante; aqui segue a minha modesta contribuição, que está dividida em quatro
artigos (capítulos): 1) As sombras que
assombram a humanidade, 2) O dia
das mulheres e do sagrado feminino, 3) De primeiro de maio a primeiro de maio o trabalho
continua acorrentado, 4) Saber cuidar a essência do humano e, 5) Uma
tragédia anunciada e uma nova ética para o nosso planeta.
1.
As sombras que
assombram a humanidade
A humanidade vive assombrada por
muitas sombras milenares que a acompanham desde os primórdios da civilização.
Neste artigo (ensaio) eu pretendo discursar sobre as três que considero mais
importantes, pois elas são três elementos basilares do patriarcado: a
exploração do trabalho alheio (escravatura, jornadas excessivas, baixas
remunerações, trabalho infantil, insalubre etc.); a violência contra a mulher,
nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, exploração sexual
etc.) e; a apropriação privada do território por poucos em detrimento da
maioria (propriedade privada do espaço de produção da existência).
Para entendermos esta questão e,
sobretudo, a necessidade de se superar as três sombras, temos que, de antemão,
compreender de que homens estamos falando. Que tipo de distorções levaram a
humanidade a produzir, penetrar e perder-se nesta escuridão milenar? Para
tanto, precisamos compreender três dimensões importantes que moldam o ser
humano, que transformam o primata em homem. Estamos falando do homo economicus, do homo sapiens e do homo
religiosus - o homem que
transforma a natureza, o homem sábio que pensa a si e a natureza e o homem que
transcende a sua própria natureza.
O homo
economicus é a dimensão mais
primitiva do ser humano e diz respeito à sua sobrevivência material. Imbuído da
razão, o homo sapiens consegue pensar a sua sobrevivência
material e, a partir deste pensar, elaborar estratégias diversificadas e
criativas para ela. O homo
religiosus deseja ir além da
sua sobrevivência material e transcender a sua própria natureza humana ou, quem
sabe, realizar-se efetivamente como homem, num patamar acima da sua
animalidade.
Na pré-história, do paleolítico ao
neolítico, os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação
central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. No paleolítico, o uso
das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência
mais tranquila com o meio. A seguir, no neolítico, a introdução da agricultura
sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais
pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e
nem a dominação das mulheres pelos homens. Nos primórdios das cidades a
situação se modifica, com o surgimento do trabalho escravo, do patriarcado, do
casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos e com o
assentamento da propriedade privada, os fragmentos do território dominados
pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade trevosa que comanda a
humanidade desde então.
Numa situação indefesa, com
conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é bastante compreensível o
surgimento da tríade obscura. Travou-se uma luta entre "fortes" e
"fracos" que perdura até hoje e a questão central da luta passou a ser
a sobrevivência das famílias dentro das cidades. Contudo, com o passar do
tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da
expansão crescente do conhecimento sobre a natureza, mas, ao mesmo tempo, ela
entrou num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não
proprietários, entre homens e mulheres e entre as nacionalidades tornou-se uma
constante, tornou-se a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que
nem tudo dava para todos, embalada no medo permanente da escassez.
No correr da história, os povos
também sonharam utopias, imaginaram mundos movidos pela abundância e onde
houvesse abundância haveria paz. Imaginavam que a "providência
divina", em algum momento os tiraria do sofrimento. Imaginavam uma
transcendência dessa condição humana, dessa que pensam ser a condição humana,
marcada pela dor e pela miséria. O desejo de transcender os limites da matéria,
o círculo vicioso do sofrimento sem fim, acabou conduzindo, muitas vezes para a
possibilidade de transcendê-lo numa vida post
mortem. Isso ensejou a expansão das grandes religiões, que
institucionalizaram a dimensão transcendental do ser humano. Para os cristãos,
por exemplo, o princípio da igualdade é plenamente possível na outra vida e
acreditou-se, durante muito tempo, que só aí ele seria possível. Somos todos
iguais, mas neste mundo é muito difícil materializar tal princípio; esta é uma
crença muito arraigada ainda. Modernamente, a Teologia da Libertação enfrentou
esta questão e colocou a igualdade como possibilidade no mundo material, mas
ela enfrenta resistências no seio da própria Igreja Católica, de onde ela
surgiu.
O ser humano, enquanto homo sapiens, imbuído da sua
razão, também imagina sociedades, mundos, onde os flagelos produzidos pela
ideia da escassez, que produz as diferenças entre os iguais, desapareça ou,
minimamente, diminua; aí entra a política como um instrumento de uma
transcendência no campo material. Então, a política é um campo aberto à utopia,
ao desejo de um mundo de iguais. Todavia, ocorre que a ideia da diferença se
cristalizou entre os homens a ponto de muitos, senão a grande maioria,
acreditarem-se efetivamente diferentes; são melhores nascidos, mais fortes,
mais puros, adeptos da verdadeira religião, habitam o país mais civilizado
etc., o que contribui para lançar água no moinho (moto contínuo) da separação e
das guerras.
Ocorre ainda outra situação
naturalmente adversa, porém mais sutil: por mais que a sociedade possa ser
igualitária, a vida na matéria é frágil, perecível e finita e também sujeita a
muitas intempéries e acidentes. Assim, o desejo latente por uma transcendência
para além da matéria atua nos homens como um elemento estabilizador da sua
personalidade, criando o espaço da espiritualidade, que está posto num local
atemporal, acima das religiões, no inconsciente coletivo da humanidade. Então,
o homo religiosus é um importante elemento constitutivo
da psique humana. Reprimir tal aspecto da existência (intolerância religiosa),
como muitas vezes aconteceu e como ainda acontece, basta observar o fundamentalismo
religioso contemporâneo, é um ato pernicioso ao desenvolvimento pleno das
potencialidades humanas.
Neste começo do século XXI, dos
pontos de vista da produtividade da economia e do conhecimento sobre a
natureza, é possível afirmar que a pobreza extrema, a fome, a carência de
moradias salubres, a falta de educação escolar entre outras questões mais
afeitas ao homo economicus,
já poderiam estar plenamente superadas. Em vez disso, o que temos? Ainda há
fome, doenças de veiculação hídrica, analfabetismo, favelas etc. e, sobretudo,
uma brutal e injustificável concentração de renda. A humanidade ainda se
encontra enredada no círculo vicioso do medo primitivo da escassez, que
continua engendrando diferenças sociais e alimentando a concepção do modo "natural"
de ser da humanidade, muitas vezes justificado por estúpidas concepções sociais
neodarwinianas, que separa os seres humanos em mais e menos aptos. Só muita
falta de visão, provocada pelas brumas da ideologia “liberal” dominante, eivada
de individualismo e utilitarismo, para conceber uma luta permanente por comida
num mundo repleto de desperdícios injustificados e de crescente obesidade
mórbida, não só a dos Estados Unidos, mas também a de países emergentes como o
Brasil, por exemplo.
Outra questão incompreensível no
estágio de desenvolvimento da economia no século XXI é a superexploração do
trabalho ainda persistente. O estágio atual do acúmulo tecnológico já
permitiria jornadas mais reduzidas e flexíveis de trabalho. Estaríamos já bem
próximos da sociedade do ócio imaginada por Paul Lafarge, mas esta está longe
de ser uma realidade. A exploração excessiva do trabalho humano ainda prevalece
e se faz acompanhar das baixas remunerações que não garantem uma vida digna aos
trabalhadores. Esta ainda é uma grande sombra que ainda assombra a humanidade,
principalmente nos países pobres, com destaque para os africanos.
A inferiorização da mulher no
século XXI ainda é muito presente e, em muitos países, ela chega à beira da
irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo
amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra
mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior
e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil
de exploração da mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o
corpo feminino transforma-se em valiosa mercadoria. Por exemplo, as revistas
eróticas são um grande negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o
inverso do que acontece com a remuneração das mulheres nas fábricas e nas
fazendas. O mercado conseguiu uma grande façanha: transformou a liberdade
sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século passado em
mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a sexualidade humana
continuam ainda hoje envoltas por uma grande sombra.
Diante do exposto, a questão
central que se coloca é a seguinte: o ser humano para se desenvolver, para
conseguir atingir o potencial inato imanente nas suas três dimensões
(econômica, racional e transcendental) necessita de liberdade. A dimensão
econômica serve como alicerce das outras duas. Contudo, conforme estudos de
Thomas Piketty (O capital no século XXI), a renda nunca esteve tão
concentrada como está agora e, consequentemente, a propriedade privada dos
meios de produção. A concentração da riqueza permanece, no correr dos séculos,
como uma grande sombra a obstar as luzes necessárias à expansão do espírito
humano. Uma sociedade com distribuição da riqueza mais justa pode garantir
maior acesso ao conhecimento e à cultura, liberando o ser racional especulador
e criativo de cada membro seu, libertando-a da ignorância que agora funciona
como um véu a encobrir as verdadeiras causas dos flagelos por ela vividos. Uma
sociedade liberta da faina incessante pela sobrevivência e que garante a
liberdade aos indivíduos de buscarem realizações além do mundo material pode
contribuir para a expansão da sua dimensão transcendental.
Assim, a liberdade para criar é
fundamental, pois a criação, com destaque para a criação artística, tem enorme
potencial transformador. A arte costuma falar com uma linguagem que extrapola a
razão e que coloca os seres humanos diante de outras possibilidades,
possibilidades não materiais, mas, ao contrário, sensíveis, que se colocam mais
nos campos intuitivo e afetivo e que podem tornar os homens mais sensíveis e
compassivos.
E, falando de homens mais
compassivos: a compaixão é a essência mais profunda do ser humano e ela se
apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do
espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do
outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro um igual e, ao mesmo
tempo, um diferente e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro
você mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da
alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave mãe
Terra. A partir daí o homem abandona o seu papel de conquistador, de guerreiro,
e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da criação.
PS.: o texto acima foi produzido originalmente para o Grupo
de Estudos de Ecologia Profunda do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Territorial e Meio Ambiente (mestrado e doutorado) da Universidade de
Araraquara, do qual eu participei entre os anos de 2011 e 2012. Na sequência,
tratarei de duas sombras que assombram a humanidade: a exploração do trabalho
humano e a violência contra a mulher,
2.
O dia das mulheres e do sagrado feminino
No dia
8 de março de cada ano, comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Trata-se de
um dia de homenagem à dimensão feminina do ser humano e também de uma efeméride
que deve ser consagrada à mais profunda reflexão. Há muito para refletir, pois
o estado da real condição das mulheres no nosso planeta, que carrega o nome de
uma deusa, Terra (Gaia para os gregos e Terra os latinos, a deusa que deu a luz
a todos os deuses, deusas e à vida que se esparramou pelas águas, terra e ar,
conforme ensina a mitologia greco-romana), não é nenhuma maravilha, mesmo...
A
situação já foi muito pior, mas ainda existem muitas situações
de descabida inferioridade e de violência inaceitável. A sociedade
patriarcal rompeu e conspurcou a sacralidade feminina e ela precisa
ser restabelecida. Trata-se de uma tarefa para toda a humanidade, em todos os
cantos do mundo, pois o patriarcado precisa ser superado para que se
restabeleça a igualdade primitiva que se perdeu com o avanço da civilização,
que se dá após o fim do neolítico, com o surgimento das cidades.
A
subjugação das mulheres e da energia feminina pelos homens é o verdadeiro
pecado original da civilização, mas os homens, com destaque para o Ocidente,
por mais incrível que pareça, mais particularmente após a expansão do
judaico-cristianismo, conseguiram imputá-lo às mulheres; lembram-se do mito de
Adão e Eva? Há que se pedir perdão a Eva e a todas as suas filhas. Assim,
reproduzo abaixo um artigo que escrevi em março de 2015, por considerá-lo muito
claro e oportuno, com o fito de colocar mais uma pedra no edifício do
arrependimento, que se transformará, quando enfim concluído, no monumento do
verdadeiro perdão. Só depois disso a humanidade rumará no sentido da sua
definitiva libertação, da sua transcendência. Ao artigo!
2.1. O Dia Internacional da Mulher e a necessidade de resgatar os valores
femininos
Na sociedade
estratificada do mundo civilizado, onde existem os muito ricos e os muito
pobres, encontramos também vários outros tipos de estratificação, onde se
repete a dicotomia entre "os de cima" e os "de baixo", que
acaba dividindo os grupos sociais entre "incluídos" e
"excluídos". Os de alta rendas estão em cima e os de baixa renda
estão em baixo; os brancos (caucasianos) estão em cima e os negros
(afrodescendentes) e índios estão em baixo; os heterossexuais estão colocados
acima e os homossexuais abaixo e, ainda; os seres humanos do sexo masculino
continuam no "andar de cima" e os do sexo feminino no "andar
debaixo". Além destas divisões encontramos outras: as ligadas às
religiões; às nacionalidades; ao nível de escolaridade etc. Etc. mesmo, pois os
seres humanos são mestres em produzir divisões, em criar grupinhos. É muita
divisão para uma única humanidade.
A primeira e grande
divisão da humanidade é a de caráter biológico, entre o sexo masculino e o sexo
feminino. Trata-se de uma divisão natural, diferente das outras citadas acima
que têm origens socioculturais. A bipolaridade que encontramos no universo
material, que se expressa, inclusive, no nível atômico, com a divisão entre
prótons (com carga positiva) e elétrons (com carga negativa), é encontrada na
biologia, com a divisão entre macho e fêmea. Sem a combinação entre prótons e
elétrons, que são antagônicos e também complementares não haveria a matéria
como a conhecemos e, muito menos, o universo com as suas galáxias e seus
sistemas solares. Sem a complementaridade entre masculino e feminino, a vida
poderia ser composta majoritariamente por vírus, por muitos seres unicelulares
e vários tipos de fungos. A vida superior, incluindo aí os seres humanos, não seria
possível. Não existe uma hierarquia, neste caso, ambos, masculino e feminino
são necessários, o que existe é uma condição de efetiva e necessária igualdade.
Diante do exposto até
aqui, afirmo: pensar em superioridade e inferioridade entre os gêneros é, no
mínimo, estupidez e, no máximo, alguma expressão impublicável (escolha a
expressão, à vontade). Todavia, em relação aos seres humanos uma diferença foi
criada; trata-se de uma criação sociocultural, apenas sociocultural.
Entretanto, muitos ainda acreditam que, do ponto de vista biológico, os homens
nasceram melhor aquinhoados. Muitos, raciocinando no limite inferior das suas
capacidades, não enxergando além da sua própria massa corpórea, acreditam que a
força física os diferenciam. No mundo de hoje, onde as máquinas há muito tempo
substituíram a força física nas tarefas mais pesadas, pensar assim é
minimamente ridículo, pois a força bruta, que foi valorizada em outros tempos,
hoje significa muito pouco, muito pouco mesmo. É muita ignorância e o nosso planeta
ainda está lotado de ignorância, infelizmente...
A partir da
introdução um tanto azeda que fiz acima para o meu artigo em homenagem ao Dia
Internacional da Mulher, sigo na construção do mesmo, pretendendo lançar luzes
sobre o porquê da brutal inferiorização e violência sofridas pelas mulheres
durante milênios da trajetória humana no planeta Terra. É possível entender
esta barbaridade, acreditem.
Entre 2011 e 2012,
participei de um grupo de estudos sobre ecologia profunda, na UNIARA
(Universidade de Araraquara), onde leciono no curso de pós-graduação em
Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado). Por conta
das nossas ricas discussões, escrevi um texto para análise do grupo, onde falo
sobre as três grandes sombras que acompanham a humanidade desde os primórdios
da civilização, três elementos basilares do patriarcado: 1) a exploração do
trabalho alheio (escravatura, jornadas abusivas, baixos salários, trabalho
infantil, insalubre etc.); 2) a violência contra a mulher, nas suas mais diferentes
manifestações (falta de liberdade, violência física, exploração sexual,
exploração econômica etc.); 3) a concentração da propriedade e da renda por
poucos em detrimento da maioria. Vou tratar aqui, com mais detalhe, o detalhe
possível num artigo relativamente pequeno, da sombra que ainda paira sobre o
mundo feminino.
Na pré-história
(paleolítico e neolítico), os homens modernos (homo sapiens) tinham como
preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das
primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais
tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos
humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois,
nas tribos, ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação
das mulheres pelos homens. Nos primórdios das cidades, com o enfraquecimento
das sociedades tribais, a situação se modificou. Surgiu o trabalho escravo, o
patriarcado e o casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis
femininos, e, aos poucos, firmou-se a propriedade privada, os fragmentos de
territórios apropriados e dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí
a trindade trevosa que comanda a humanidade desde então.
Apesar de tudo,
precisamos ser indulgentes com a humanidade: numa situação indefesa, com
conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é compreensível o surgimento da
tríade obscura. Para sobreviver num ambiente hostil, os humanos precisaram
arrojar-se, tornar-se fortes e agressivos. A batalha pela sobrevivência
acontecia todos os dias. Os humanos tornaram-se hábeis caçadores e
desenvolveram armas úteis tanto para a caça como para a defesa. Tiveram que
aprender a conviver com os fenômenos naturais agressivos e sobrepujá-los. Com o
fortalecimento da família monogâmica e patriarcal, nos primórdios da
civilização, a questão central da luta humana passou a ser a sobrevivência das
famílias nas cidades. Nas tribos importava mais acentuadamente a sobrevivência
do coletivo dos seus membros, a sobrevivência da própria tribo. A civilização
acabou estreitando a ideia de coletividade, entendendo-a como um conjunto de
famílias, o que se trata de uma redução simplista, que serviu para justificar a
exploração do homem pelo homem. O teólogo e filósofo Leonardo Boff (2003) denominou
esse primeiro momento da trajetória da humanidade de paradigma
conquista.
Contudo, com o passar
do tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da
expansão crescente do conhecimento sobre a natureza e dos avanços da
tecnologia. Ela tinha tudo para deixar de lado essa competição insana, mas
acabou entrando num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não
proprietários, entre homens e mulheres e entre as diversas nacionalidades
tornou-se uma constante. A guerra, violenta ou subliminar, tornou-se a forma de
ser da civilização, embalada na ideia de que nem tudo dava para todos, embalada
no medo permanente de uma possível escassez. As mulheres foram as que mais
perderam nessa trajetória, pois elas praticamente se transformaram em
propriedade dos homens, alienando a sua liberdade e a sua criatividade. A
partir da civilização o mundo tornou-se essencialmente masculino e isso se
cristalizou, transformou-se num tipo de vício, um vício difícil de ser largado.
Hoje, no século XXI,
a inferiorização da mulher ainda é muito presente e, em muitos países, ela
chega à beira da irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais
absoluta, abrangendo amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais
sutil e se encontra mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do
trabalho feminino é maior e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta
questão. Outra forma sutil de exploração da mulher no ocidente encontra-se no
campo da sexualidade, onde o corpo feminino transformou-se em valiosa
mercadoria. Só um exemplo, tem muitos: as revistas eróticas são um grande
negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o inverso do que acontece
nas fábricas e nas fazendas. O mercado produziu uma grande façanha: transformou
a liberdade sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século
passado, em mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a
sexualidade humana continuam, ainda hoje, envoltas por uma grande sombra.
Hoje a humanidade
precisa e tem plenas condições de superar o paradigma conquista, em
função das imensas conquistas no campo da ciência e da produtividade da
economia. Entendo também que a necessidade de mudança paradigmática passa com
maior ênfase pela questão de gênero e que esta questão é, em última instância,
espiritual, pois se trata de uma mudança profunda na forma de ser dos
indivíduos e da sociedade. Acredito mesmo que a centralidade das questões
contemporâneas está nas disputas, que remontam a ancestralidade do homo
sapiens, entre os sexos masculino e feminino, no sentido de que prevalece
até os dias de hoje uma compreensão majoritariamente masculina da realidade.
Para facilitar a
compreensão do que quero dizer, lanço mão da milenar filosofia chinesa. Os
chineses enxergam o universo como uma relação, uma relação de duas forças
antípodas e, ao mesmo tempo, complementares. Basta observarmos a natureza, esta
é a sabedoria chinesa: para que exista o frio tem que haver o quente, para o
molhado há o seco, para o mole tem o duro, para o claro tem o escuro, para o
triste tem o alegre, para o bom tem o ruim etc. De forma bem simples, eles
dividem tudo e todos os fenômenos em dois grandes blocos: YIN e YANG (veja a
figura abaixo).
Na figura são
visíveis dois peixinhos do mesmo tamanho, harmoniosamente encostados um no
outro. Um é branco e representa o aspecto solar masculino e o outro é preto e
representa o aspecto lunar feminino. Um detalhe importante: O peixe branco tem
um olho preto e o preto tem um olho branco, significando que o masculino também
possui elementos do feminino e que o feminino também contém elementos do
masculino, sugerindo uma complementaridade perfeita, apesar de todo o
antagonismo. As características de Yin e Yang são opostas e complementares, como
se pode ver no quadro abaixo.
Pelo quadro vemos que
Yin, que representa o feminino, tem atributos opostos a Yang, que representa o
masculino. Na sua conturbada trajetória, com destaque para os tempos
pretéritos, a humanidade lançou mão com mais vigor dos atributos masculinos por
conta do paradigma conquista, focando mais a necessidade de
sobrevivência, e acabou obliterando os femininos, inclusive com a própria
inferiorização da mulher, guardiã das energias Yin. A humanidade tornou-se
majoritariamente Yang: agressiva, competitiva, racional, expansionista etc.
UNIVERSO BIPOLAR
|
|
YIN
|
YANG
|
FEMININO
|
MASCULINO
|
CONTRÁTIL
|
EXPANSIVO
|
CONSERVACIONISTA
|
EXIGENTE
|
RECEPTIVO
|
AGRESSIVO
|
COOPERATIVO
|
COMPETITIVO
|
INTUITIVO
|
RACIONAL
|
SINTÉTICO
|
ANALÍTICO
|
Nesta altura da
história da humanidade, com tranquilidade, podemos concluir que, em última
instância, as crises econômica, social e ambiental, vividas em todo o mundo,
decorrem do desbalanceamento das duas energias primordiais, com a balança
pendendo para o lado Yang, o que reforçou e ainda reforça o paradigma
conquista. A sobrevivência da humanidade enquanto tal, depende da transição
para um novo paradigma, o paradigma do cuidado. É preciso diminuir
a competição e aumentar a cooperação, é preciso diminuir a agressão e aumentar
a aceitação e assim por diante. E, o que é de muita importância, neste mundo
conduzido pela ciência: é preciso dar vazão às outras formas de percepção da
realidade, possibilitadas pela intuição, que é a contraparte feminina da
racionalidade masculina. O começo da caminhada para o paradigma do
cuidado é o resgate da dignidade feminina, uma tarefa ainda árdua para
a humanidade, todavia imprescindível.
Caminhar rumo ao
paradigma do cuidado significa que a humanidade precisa tornar-se mais afetiva
e compassiva, dois atributos femininos. E, por falar em homens mais
compassivos: a compaixão é a essência mais profunda do ser humano e ela se
apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do
espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do
outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro “um igual” e ao mesmo
tempo, “um diferente” e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro a
si mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da
alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave mãe
Terra. A partir daí o homem abandona o seu papel de conquistador, de guerreiro,
e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da criação.
Para terminar, em
homenagem ao Dia Internacional da Mulher, ofereço o poema de Victor Hugo, onde
ele capta as essências masculina e feminina. Lembrando, sempre é bom lembrar: a
mulher também guarda em sua alma a essência masculina e o homem a feminina.
Somos seres muito complexos e esta é a beleza.
O Homem e a Mulher
O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.
O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.
Viva as mulheres!
Viva os homens! Viva a igualdade!
3.
De
primeiro de maio a primeiro de maio o trabalho continua acorrentado
No primeiro de maio de cada ano comemora-se o Dia do
Trabalho no mundo todo. No Brasil, em 2017, a sua comemoração acontecia num
ambiente de muita tensão por conta do desmanche da legislação trabalhista,
propiciada pelo golpe de estado contra a Presidenta Dilma, que foi reeleita
pelo Partido dos Trabalhadores - PT, em 2014, contra a vontade da grande
imprensa e de grande parte do empresariado nacional, com destaque para o
capital financeiro.
Todavia, a situação da classe trabalhadora não
está difícil só no Brasil. O capitalismo mundial vive, neste momento, uma grave
crise e os trabalhadores estão sendo as grandes vítimas dela em todo o mundo.
Nada de novo, pois também foi assim nas outras crises, como a de 1929, por
exemplo. Depois dessa crise, a atual apresenta-se como a mais grave e o seu
desfecho parece distante e muito incerto. Não tem como fazer previsões seguras,
neste momento.
Neste momento grave da história da humanidade,
quando se assiste a um ataque frontal contra os assalariados e pobres do
planeta, quando a renda se concentra de forma nunca antes vista nas mãos de
poucas famílias, em detrimento da imensa maioria da população, faz-se
necessária uma compreensão da real situação do trabalho nos tempos de hoje,
partindo de uma volta ao passado distante, como sói razoável fazê-lo, para que
se possa alinhavar argumentos válidos para a instituição de um ponto de partida
que leve à saída da crise e à emancipação dos trabalhadores.
No sentido do exposto acima, em reproduzo aqui
o artigo (ensaio) "O homem humanizado e a sociedade: o papel do
trabalho", que escrevi em 21 de dezembro de 2014. Acredito que ele pode
lançar luzes tanto sobre a história do trabalho e dos trabalhadores desde a
antiguidade como para a situação presente de ambos. Ao artigo!
3.1.O homem humanizado e a sociedade: o
papel do trabalho
Falar do homem enquanto um ser humano parece redundante, mas não é, pois
o homo sapiens, enquanto espécie
animal, enquanto ser vivente, é um projeto em construção, um projeto
humanizante em permanente elaboração e reelaboração. Ele está posto como um vir
a ser, um devir, um transformar-se, um tornar-se novo, portanto, ele ainda não
é, ele será. Ele sempre está carecendo de se humanizar. Então, humanizar
trata-se de um processo e, de forma bem simples, humanizar significa tornar
humano. Indo um pouco mais além: para tornar humano é preciso despertar valores
humanos.
O ser humano está em permanente elaboração. A palavra elaboração vem de
labor, que é trabalho em latim. Daí extraímos três possíveis situações: 1) o
homem é um ser que trabalha; 2) que constrói pelo trabalho e; 3) que se
constrói pelo seu trabalho. Todas as três possibilidades são reais e, ao mesmo
tempo, complementares. Desta forma, é mais que lícito afirmar que o fazer
humano é que constrói o ser humano enquanto tal. Simplificando, se possível: o
homem é um ser que transforma (modifica) a natureza externa, que enxerga a sua
própria natureza (que se vê na sua natureza interna) e que transforma a sua
própria natureza. Resumindo: à medida que ele transforma o mundo ele também se
transforma, dá outra forma ao seu mundo interior. Lá pelos idos do século XIX,
Friedrich Engels (1990) falava do sobre "o papel do trabalho na
transformação do macaco em homem", suspeito que ele tinha razão.
Por sua vez, a palavra trabalho vem da palavra latina tripalium,
que era um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes munidos de pontas de ferro,
com o qual os agricultores batiam o trigo para separá-lo da espiga. A maioria
dos dicionários, contudo, registra o tripálio apenas como instrumento de
tortura, o que teria sido originalmente, ou, talvez, se tornado depois, não se
sabe ao certo. O tripálio (do latim tri: três e palus:
pau, literalmente, "três paus") é um instrumento romano de
tortura, um tripé formado por três estacas cravadas no chão na forma de
uma pirâmide no qual eram supliciados os escravos. Daí derivou-se o verbo
do latim vulgar tripaliare que significava, a princípio,
torturar alguém no tripálio. É comumente aceito entre os linguistas que esses
termos deram origem, no português, às palavras "trabalho" e
"trabalhar", ainda que no seu sentido original o
"trabalhador" fosse um carrasco, e não aquele que labora, que elabora
e que se elabora, como entendemos hoje em dia.
Parece estranho a palavra trabalho derivar de um instrumento de tortura.
Entretanto, se olharmos para a história do trabalho, veremos que faz todo
sentido. As palavras não se formam do mero acaso. Então, olhemos para a
história do trabalho.
Na pré-história, do paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo
sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente
hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma
convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura
sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais
pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e
nem a dominação das mulheres pelos homens. Mas essa situação não dura, pois nos
primórdios das primeiras cidades ela se modifica, com o surgimento do trabalho
escravo, do patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação
dos papéis femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos
do território dominados pelos patriarcas. Sugiro aqui a leitura de uma obra
clássica de Friedrich Engels (2006): A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado.
A civilização nasce com vários aspectos sombrios e uma dessas sombras é
a apropriação do trabalho alheio de forma arbitrária e violenta, através do
trabalho escravo. O escravo é um indivíduo destituído da sua liberdade e que
vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e
negociável, como uma mercadoria. Na verdade, stricto sensu, é uma
mercadoria como qualquer outra mercadoria.
No correr dos séculos, a exploração do trabalho sofreu várias mudanças,
mas ainda permanecem situações muito obscuras, como se verá na sequência. Na
idade média europeia, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho servil,
principalmente na agropecuária. Os trabalhadores já não eram uma mercadoria
negociável, mas não podiam sair das terras de seus senhores e estavam sujeitos
a normas draconianas impostas por esses senhores feudais, que tudo podiam, já
que eram a lei, a polícia e o juiz. Além disso, grande parte da produção
camponesa era consumida pela aristocracia agrária e pelos seus soldados,
deixando os trabalhadores da terra em constante situação de pobreza e, muitas
vezes, de fome.
Todavia, nem toda relação de trabalho era opressiva na idade média
europeia, pois havia um tipo de trabalho livre, que era o trabalho artesanal. O
artesão era dono da sua oficina e das suas ferramentas e vendia a sua produção
que, naquela época, era feita, na sua maioria, sob encomenda. Alfaiates,
pintores, escultores, marceneiros, construtores, entre outros, exerciam o seu
trabalho de forma livre. Tratava-se de um trabalho criativo, com começo, meio e
fim e, por conta disso, prazeroso e, ainda por cima, melhor remunerado que o
trabalho camponês.
A expansão da manufatura na Europa com maior ênfase a partir do século
XV, já criando um princípio de estrutura fabril, começou a diminuir a
importância do trabalho artesanal, aumentando o assalariamento na produção de
mercadorias manufaturadas. Abrindo parêntesis: é importante lembrar aqui que a
partir do século XV, o trabalho escravo foi recriado nas colônias Europeias,
com destaque para as Américas. Entretanto, a destruição da produção artesanal
ocorrerá definitivamente com a Primeira Revolução Industrial, que tem seu
início no final do século XVIII na Inglaterra. A partir daí as oficinas dos
artesãos serão fechadas e eles se tornarão assalariados. Nessa época também
ocorrerá um êxodo rural de grande monta e levas e mais levas de camponeses
serão lançados no mercado de trabalho da indústria nascente e crescente.
Trata-se de um período de extrema exploração do trabalhador: salários baixos,
jornadas de trabalho extensas, trabalho infantil e feminino abusivos, situações
de grande insalubridade nos locais de trabalho, entre outras formas de
degradação e o que é mais importante, o trabalho deixou de ser criativo,
tornando-se repetitivo e monótono. A melhor definição para essa forma de
trabalho é "trabalho alienado".
Uma forma de remediar os efeitos nefastos do trabalho alienado,
levantada já no século XIX por pensadores sociais como Karl Marx e Paul Lafargue,
e que adquiriu um certo consenso no meio dos cientistas sociais que vieram a
seguir, é a redução da jornada de trabalho. Com isso as pessoas poderiam fazer
coisas criativas, inteligentes e agradáveis no seu tempo livre. E, de fato, do
século XIX até os dias de hoje, as jornadas de trabalho diminuíram muito, com
destaque para os países europeus. Recentemente, o sociólogo Domenico De Masi (2000) retomou a
discussão sobre a importância do tempo livre no seu livro "O ócio
criativo".
Com o correr da história e com as lutas de resistência dos operários,
que se organizaram em sindicatos e partidos políticos, a exploração foi
diminuindo e as condições de trabalho foram paulatinamente melhoradas. Os
salários subiram, as jornadas foram reduzidas e muitos benefícios foram
introduzidos nas relações entre capital e trabalho, tais como férias
remuneradas, aposentadoria, entre outras, melhorando as condições de vida da
maioria da população, que é assalariada, e diminuindo a pobreza nos países industrializados.
À Primeira Revolução Industrial seguiu a Segunda Revolução, na segunda
metade do século XIX, que completou a industrialização na Europa e se estendeu
aos Estados Unidos e Japão. No século XX a industrialização se estende a países
como Brasil, Argentina, entre outros, trata-se de um desenvolvimento tardio. O
que é interessante de se notar é que, tanto na Segunda Revolução quanto na
industrialização tardia, muitos benefícios serão incorporados, tornando o
trabalho menos árduo que na Primeira Revolução, são avanços efetivos, há que se
considerar.
Entretanto, no que diz respeito à criatividade no trabalho, a
situação pouco mudou, já que o trabalho industrial continuou repetitivo e
monótono, por conta do excessivo parcelamento das atividades nas linhas de
montagem (lembram-se do Charlie Chaplin em Tempos Modernos?).
Todavia, em contrapartida, a moderna divisão do trabalho produz um resultado
benéfico à sociedade, que é o barateamento das mercadorias, que foi preconizado
por Adam Smith (1985), o pai da economia política, na sua magnífica obra, Riqueza
das Nações.
Parecia que tudo estava caminhando bem, mas no final do século XX,
principalmente por conta do crescimento da indústria na Ásia, com destaque para
a China, Singapura, Vietnã etc., que se dá de forma precária (jornadas
excessivas, baixos salários, condições insalubres etc.), a situação do trabalho
e dos trabalhadores sofreu um revés em todo mundo, incluindo aí a Europa e os
Estados Unidos. A concorrência internacional fez aumentar o desemprego fora dos
países asiáticos e as condições de trabalho também pioraram, principalmente por
conta das terceirizações, chegando a registrar, inclusive, muitas ocorrências
de trabalho similar ao escravo, como no caso da indústria de roupas feitas no
Estado de São Paulo. Em muitos casos a situação retrocedeu ao que era nos
séculos XVIII e XIX e até pioraram, como no caso do trabalho escravo.
Do exposto até aqui surgem algumas questões: 1) será que a exploração do
homem pelo homem e das nações por outras nações é o único modus
operandi possível para a civilização?; 2) será que a produção de bens
de consumo precisa dar-se de forma tão alienada, alijando em demasia os
trabalhadores dos processos criativos, para que tais bens sejam acessíveis à
maioria das pessoas?; 3) será que a necessidade permanente de acúmulo de
riquezas pelos países, o desejado e buscado "desenvolvimento
econômico" tem que se dar de forma tão competitiva e predatória, onde tudo
vale, num tipo de guerra permanente entre todos?
Laudas e mais laudas já foram escritas sobre estas questões e muitas
outras ainda serão produzidas e não serão em demasia, pois parece até possível
que toda essa enorme e desenfreada competição dê cabo da civilização. A crise
ambiental, com destaque para o aquecimento global, já está dando o seu alerta.
Não são apenas as pessoas que são passíveis de exploração, a natureza também
tem sido explorada além da sua capacidade de suporte. Então, completo aqui a
primeira questão acima levantada: será que a exploração abusiva da natureza
também faz parte do modus operandi da civilização?
É mais que evidente que parar ou diminuir o ritmo dessa grande máquina
(civilização), que foi posta em movimento com o surgimento das primeiras
cidades, é um trabalho hercúleo - olha o trabalho aí de novo!
Quiçá seja possível redirecionar a máquina da civilização positivamente, sem
que ela se desmonte, jogando a humanidade num estado de barbárie. Será possível
fazê-lo? Esta é uma questão a ser respondida com a devida urgência. Todavia,
não se trata de uma tarefa para um herói em particular, mas de uma árdua tarefa
para toda humanidade, o que a torna muito difícil, entretanto imprescindível.
Por onde começar? A resposta a esta questão é difícil e, talvez, por
conta disso, a melhor forma de iniciar seja retrabalhando o significado do
trabalho. Outros valores também necessitam de ressignificação, mas como o
trabalho é um elemento fundante da humanidade, talvez seja o mais importante, é
de bom alvitre começar por ele. Durante a maior parte da história da civilização
o trabalho esteve associado ao sofrimento, como já foi visto, e, por conta
disso, foi estigmatizado. Há que se resgatar a dignidade do trabalho e, para
tanto, precisamos compreendê-lo na sua profundidade, atingindo a sua essência.
Comecemos por lembrar que o homem é um ser social e que, neste sentido,
o trabalho é um elemento essencial à socialização. A forma como cada ser humano
trabalha determina a sua forma de ser e o seu conjunto de relações. Ele começa
a trabalhar para cuidar de si e dos membros do seu grupo, com destaque para as
crianças, que necessitam de proteção plena e não têm como produzir a sua
própria existência. Então, desde o seu início, o trabalho surge também como um
serviço prestado ao outro. Estou falando aqui do trabalho essencialmente
humano, que significa utilizar-se da natureza e modificá-la a seu serviço,
criando com isso um processo que não se repete apenas, mas que aumenta a sua
dimensão e que se aperfeiçoa, criando isso que conhecemos como cultura.
A humanidade precisa fazer mea culpa e ressignificar
positivamente o trabalho. Ela precisa abolir todas as formas de aviltamento das
relações trabalhistas existentes e elas ainda são muitas. O trabalho meramente
repetitivo precisa diminuir e quando isso não for de todo possível, deverá ter
seus efeitos negativos minimizados, a redução das jornadas pode ajudar neste
sentido, liberando tempo para que as pessoas exerçam a sua criatividade de
alguma forma.
Cabe reforçar aqui a ideia de que trabalhar significa uma relação de
cuidado (ver meu artigo, que será reproduzido abaixo) e que o cuidado determina
o modo de ser humano. Os humanos são cuidados quando crianças, passam a cuidar
quando ficam adultos e recebem cuidados na sua velhice. Tudo isso implica em
afetividade e o afeto, neste sentido, é a essência mais profunda do ser humano.
O trabalho escravo, ainda sobrevivente, e as demais degradações laborais, como
a exploração das crianças e das mulheres, entre outras, vão no sentido
contrário à essência humana.
Começar pela ressignificação do trabalho no imaginário coletivo da
humanidade talvez seja o primeiro passo a ser dado. A partir daí outros passos
serão dados, criando um movimento sustentado positivamente, resgatando os valores
humanos, que sempre se formam a partir do cuidado e do afeto. Depois disso,
o trabalho ressignificado (re)assumirá o seu real papel na história da
humanidade que é o de serviço (não se trata do trabalho servil inferiorizado,
mas do trabalho com características cooperativas), ajudando-a a seguir na sua
trajetória humanizante. Trabalho e serviço passarão a ser, de fato, sinônimos.
Só mais uma última consideração: a urgência é necessária. Ao meu
artigo (ensaio) sobre o cuidado.
4.
Saber
cuidar a essência do humano
Cuidado
é o tema principal do livro Saber Cuidar:
Ética do Humano – Compaixão pela Terra, de Leonardo Boff (1999), onde ele
resgata a fábula-mito do Cuidado ou Fábula de Higino. Caio Júlio Higino, em latim Gaius Julius Higinus, foi um escritor da Roma Antiga
(primeiro século a.C.). Sua principal obra
chama-se Fábulas ou Genealogias.
Trata-se da recompilação de 300 lendas, histórias e mitos da tradição
greco-latina. Eis a fábula:
Certa vez, depois de atravessar um rio, o deus Cuidado viu uma
porção de barro. Então, teve uma inspiração. Tomou um pouco de barro e deu-lhe
uma forma. Enquanto contemplava a sua obra, apareceu Júpiter, o senhor de todos
os deuses. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele, o que Júpiter fez com
satisfação. Todavia, quando Cuidado quis dar um nome a sua criatura, Júpiter o
proibiu, exigindo que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado
discutiam, surgiu a deusa Terra. Ela quis também dar o seu nome à criatura,
pois fora feita de barro, que era material do seu próprio corpo, provocando com
isso uma discussão generalizada. Como não chegavam a um acordo, chamaram
Saturno para que funcionasse como árbitro da questão. Procurando ser justo,
Saturno tomou a sua decisão: "Você, Júpiter, deu-lhe o espírito e, por
isso, recebê-lo-á de volta quando a criatura morrer. Você, Terra, deu-lhe o
corpo e recebê-lo-á de volta quando da sua morte. Cuidado, como você foi quem
moldou tal criatura, ela deverá ficar sob seus cuidados enquanto viver. E,
já que vocês não chegam a um acordo sobre o seu nome, decido eu: esta criatura
será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra
fértil”.
O ser humano nasceu, assim como todos os seres, do corpo da
Terra. Conforme a lenda, nasceu de uma terra fértil, do húmus da terra, que foi
trabalhada com esmero e muito cuidado pelo deus Cuidado. A palavra humilde
também deriva de húmus e, desta forma, ser humilde significaria reconhecer-se
filho da Terra, da sua fertilidade, assim como todos as demais criaturas que
também são filhas da mesma mãe, que também se formaram a partir do mesmo corpo,
do mesmo barro.
A partir da fábula-mito do cuidado, podemos elaborar uma linha
de raciocínio que pode levar-nos a entender o propósito maior da existência, o
do cuidado necessário com o ser humano, que deve refletir-se no cuidado com a
própria Terra, que é ao mesmo tempo nossa mãe e nossa casa, cuja maternidade e
abrigo dividimos com todos os seres vivos, nossos irmãos. Reconhecer-se filho
da mesma mãe significa compreender e respeitar a teia da vida que foi sendo
construída lentamente, durante milhões e milhões de anos no nosso planeta.
O mito do cuidado é mais que pertinente nos dias de hoje, pois
faz com que nos relembremos da nossa íntima ligação com a Terra, o nosso
planeta, instando-nos a que humildemente nos religuemos a ela, pois, neste
momento, ela também necessita dos nossos cuidados. Trata-se, metaforicamente,
da necessidade de uma volta para casa. Ele também pode servir como uma metáfora
de caráter educativo, pois serve para despertar naquele que lê uma reflexão
sobre a necessidade de cuidar dos seres humanos que sofrem e também de
transformar o cuidado recebido pelo deus Cuidado, sob as ordens de Saturno, no
cuidado com todos os outros seres viventes, com a própria Terra, por extensão.
O
cuidado surge quando a situação de existir de alguém tem importância para outro
alguém também existente, trata-se de uma relação, de um conjunto de relações.
Alguém sai de si mesmo e conecta-se a outros, que, reciprocamente, também fazem
o mesmo movimento. Por outro lado, a palavra cuidado significa preocupação,
inquietação, sentido de responsabilidade, pois aquele que cuida sente-se
envolvido e afetivamente ligado ao outro. Então, o cuidado é algo que se liga
àquilo que é a essência primitiva, a essência primeira, do ser humano, que não
é a razão, mas o afeto. O afeto antecede a razão; ele se encontra naquela
situação de proteção que cada ser humano recebe nos primeiros dias da sua vida,
naqueles momentos em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao
mundo que o cerca, naquele momento em que está totalmente dependente e indefeso
em relação ao outro.
O
cuidado é o modo de ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano e ele é
cuidado e se cuida em grupo, sendo dessa maneira um ser social. Caso não receba
cuidados, desde o nascimento até a morte, ele se desestrutura, definha e morre.
Ele recebe cuidados para aprender a cuidar. Ele deve aprender a cuidar de si
mesmo depois da sua infância, que é bem longa se comparada com a de outros
animais, para em seguida aprender a cuidar dos outros humanos e dos demais
seres vivos do planeta, pois tudo que vive precisa de cuidados para viver. Esta
é a regra do jogo neste mundo.
Conforme
a fábula de Higino, o cuidado é fundamental para a existência e, neste sentido,
antecede o espírito soprado por Júpiter e o corpo esculpido por Cuidado com o
húmus fornecido pela deusa Terra. O Cuidado é a essência divina, é um a priori,
ele preexiste. É aquele Eros, o puro amor, aquele deus grego da antiga
cosmogonia, que surge no início dos tempos para estimular a união dos seres.
Sem
cuidados a vida e os humanos não existiriam. Então, há que se ter cuidado com
tudo. É preciso ter compaixão com todos os seres que sofrem, humanos e não
humanos, obedecendo mais o coração, seguindo mais a lógica da cordialidade do
que a da competição e do uso utilitário das coisas. Há que se ter cuidado com a
Terra e com a sociedade, particularmente com os excluídos, com todos, enfim.
Neste
momento, em desespero, tanto a Terra quanto a humanidade clamam por cuidados
essenciais. A degradação ambiental, a pobreza de milhões de pessoas e as
violências de todos os tipos precisam ser enfrentadas. Enfim, a grande crise
pela qual passa o planeta Terra, só pode ser enfrentada com mais cuidado, o que
resulta num clamor por um novo ordenamento ético para a humanidade e para o
nosso planeta.
Contudo,
as crises criam novas oportunidades e, neste momento, elas possibilitam
mergulhos na instância onde, segundo Leonardo Boff (2003), os valores são
continuamente formados. Segundo ele, a nova ética planetária “deve brotar da base última da existência
humana”. Ela não está na razão, como deseja o Ocidente. A razão não é a
essência da existência e por isso não pode explicar e nem abranger tudo. A
essência do existir está em “algo mais
elementar e ancestral: a afetividade”. Então, contrariando Descartes, que é
o pilar do saber ocidental, a experiência basilar não é o seu “penso, logo existo”, mas, segundo Boff,
é o “sinto, logo existo”.
Assim,
para Boff (2003), na raiz de todas as coisas não está a razão (logos), mas a paixão (pathos). “Pela paixão captamos o valor das coisas (...) Só quando nos
apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos movemos e somos”.
Neste ponto, Boff observa o surgimento de uma dramática dialética entre razão e
paixão, já que ele em absoluto não menospreza o papel da razão:
Se
a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética utilitária.
Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedonista,
do puro gozo das coisas. Mas, se vigorar a justa medida, e a paixão se servir
da razão para um autodesenvolvimento regrado, então emergem as duas forças que
sustentam uma ética promissora: a ternura e o vigor.
Leonardo Boff (2003)
considera que dessas premissas pode surgir uma ética que será capaz de incluir
toda a humanidade. Essa nova ética deverá estruturar-se em torno de valores fundamentais
ligados à vida, ao seu cuidado, ao fazer humano, às relações cooperativas e à
cultura da não violência e da paz. “É um ethos que ama, que cuida, se responsabiliza,
se solidariza e se compadece”.
5. Uma tragédia anunciada e uma nova
ética para o planeta
A partir da década de 1970, muitos alertas foram dados sobre a situação
de risco que paira sobre o planeta Terra. Uma catástrofe de grande porte está
se aproximando e, como a sua causa não vem do espaço ou dos subterrâneos do
planeta, talvez haja tempo ainda para evitá-la ou, melhor, minimizá-la, melhor
ainda, diminuir a sua dimensão. Trata-se de um risco construído pela humanidade
na sua trajetória, aos poucos, mais precisamente há cerca de dois séculos. Caso
olhemos para o tempo geológico, que é contado em milhões de anos, observamos o
seu processo curtíssimo de formação. Os humanos e, indiretamente, todos os
demais seres – os inocentes pagam pelos culpados – começam a colher as
consequências de um modelo de economia que começou na Primeira Revolução Industrial,
no final do século XVIII, com a invenção da máquina a vapor e com o uso intenso
do carvão mineral.
Estamos falando de algo que está na pauta dos mais variados jornais e
das revistas, das escolas, dos congressos científicos, dos governos, etc.: o
aquecimento global (efeito estufa). Este fenômeno tem muitas causas: o
desflorestamento, a emissão de metano nos lixões, a emissão de metano pela
bovinocultura, mas a principal delas é o uso do combustível fóssil (carvão e
petróleo), com suas emissões de gás carbônico na atmosfera. No rol de emissores
de gás carbônico destacam-se a indústria e o transporte individual
(automóveis). O fenômeno é bem simples: os gases do efeito estufa retém o calor
na atmosfera, não permitindo que ele se dissipe rumo ao espaço.
A partir da Primeira Revolução Industrial, a economia entrou num ritmo
de crescimento nunca visto até então. Os séculos XIX e XX presenciaram outra
revolução econômica, essa de maior monta, a Segunda Revolução Industrial. Mais
particularmente, todo o século XX presenciou a expansão do uso de uma nova
fonte de energia, o Petróleo, principal agente do aquecimento global, mas as
coisas não pararam por aí. A expansão da produção de mercadorias e o
consequente crescimento econômico, que as revoluções industriais propiciaram,
tornaram-se necessidades e objetivos de todas as nações, que os assimilaram
como a tradução do que viria a ser o desenvolvimento econômico. Então, país não
industrializado passou a significar país subdesenvolvido, trata-se de uma
simplificação.
O desenvolvimento tecnológico que tem acompanhado as revoluções
industriais possibilitou a produção de uma infinidade nunca antes imaginada de
produtos, daquilo que os economistas chamam de bens de consumo. Então, nasceu o
que hoje chamamos de sociedade de consumo e, com ela, o seu principal ator
social, o consumidor com poder de compra, o cidadão consumidor; chegamos ao
ponto de pensarmos o simples acesso ao consumo como se fosse o acesso
definitivo à cidadania, o que se trata de um reducionismo imbecilizante, no
mínimo. Por muito tempo pensamos que o sonho do consumo crescente, ilimitado,
uma cornucópia sem limites vomitando produtos, seria possível e acessível a
todos no planeta. Bastava apenas que cada país cumprisse o seu papel e entrasse
no caminho da ordem e do progresso, da ordem capitalista e do progresso
material.
Hoje, na primeira metade do século XXI, fica cada vez mais claro que
esse sonho é de difícil concretização. Usando a linguagem dos ecologistas: a
Terra, com a sua capacidade de suporte, seus limites, não sustenta um
crescimento econômico infinito, pois ela é finita e funciona através de ciclos
– estações do ano, ciclo hidrológico, nascimento-morte-nascimento etc. – e não,
apenas, através de acúmulos, acúmulos e mais acúmulos. As consequências do
modelo adotado já estão visíveis: grande acumulação e concentração de riquezas
e desacumulação do meio ambiente.
Como desacumulação ambiental podemos observar: a água doce disponível
para consumo humano e dos demais seres vivos está cada vez mais contaminada; a
temperatura do planeta está aumentando e as suas consequências já se fazem
sentir no derretimento das geleiras, nas secas e nas inundações, por exemplo;
as terras agrícolas sofrem processos erosivos de grande monta e estão
contaminadas por defensivos agrícolas; a biodiversidade da Terra está
diminuindo dia-a-dia e, talvez, até desapareçam espécies animais e vegetais sem
que a humanidade jamais as tenha conhecido; etc.
Além de todas as mazelas rapidamente expostas acima, há uma questão
moral, porque não dizer ética: a quem serviu todo esse progresso? Serviu a toda
a humanidade? Caso observemos bem de perto, nem precisa de tanta proximidade,
percebemos que todo esse avanço da produção de bens materiais beneficiou uma
parte menor da humanidade, deixando a África, muitos países asiáticos e a
maioria dos países da América Latina de fora. Os países ricos “beneficiam-se”
com o consumo desenfreado enquanto os países pobres veem o esgotamento dos seus
recursos naturais e recebem, por tabela, os efeitos do aquecimento global,
resultante da queima excessiva de combustíveis fósseis nos primeiros, em grande
parte extraídos nos segundos.
Explicando o beneficiam-se entre aspas do parágrafo
acima: nem sempre consumir muito significa bem-estar, isto depende em larga
medida do que e do quanto se consome; consumir alimentos com excesso de
defensivos agrícolas, excessivamente processados (industrializados), com
gorduras trans, muito açúcar e muito sal, por exemplo, muitas vezes ingeridos
nos fast foods espalhados pelos mais diversos centros urbanos
do planeta, não é a melhor forma de se alimentar, com certeza. Os casos
crescentes de obesidade mórbida em muitos países estão aí para confirmar esta
assertiva. Os gastos absurdamente altos que os municípios precisam destinar ao
tratamento dos resíduos sólidos (lixo) também estão entre as muitas
contrapartidas negativas do consumo exagerado.
Esta breve explanação não tem maiores pretensões do que a de lançar
sementes de preocupação nos corações e mentes dos leitores, apenas isto. Nunca
na história da humanidade foi tão oportuno e necessário debruçar-se atentamente
sobre o destino dos homens e de todos os seres do planeta como agora. É uma
oportunidade ímpar, onde somos chamados a nos revermos e a revisitarmos as
nossas relações com os nossos iguais e com todos os seres a nossa volta. É o
ponto de partida para podermos modificar os nossos comportamentos econômicos,
sociais e ecológicos à luz de uma nova ética, que deverá alicerçar-se no
cuidado, no cuidado conosco, com nossos semelhantes, com a natureza, enfim, com
toda a Terra, que é, ao mesmo tempo, nossa mãe e nossa morada.
Todo o exposto acima alerta-nos para a necessidade de se construir uma
nova ética para balizar o comportamento de todos os seres humanos do planeta. É
necessária a elaboração de um conjunto de regras mínimas e comuns a toda
humanidade, independente das nacionalidades, religiões, raças etc., para
doravante se buscar a minimização dos impactos antrópicos sobre a natureza.
Assim, é necessária uma compreensão mínima sobre o significado da ética.
A palavra ética vem da palavra grega ethos, que significa
morada. Todavia, não se tratava e, também hoje, não deve ser compreendida como
a casa material, mas como a casa existencial. A casa existencial significava
para os gregos a teia de relações entre o meio físico e os membros da
comunidade. Para os dias de hoje, recuperando a concepção grega, a morada não
deve ser apenas a casa onde as pessoas habitam, deve ser também a cidade, o
país e o planeta Terra, a casa de todos.
A necessidade de se construir uma ética para a Terra é importante e sua
relevância para a própria sobrevivência da humanidade é inquestionável, pois a
busca desenfreada por riqueza e poder e a luta sangrenta pela partilha das
riquezas naturais têm impedido a convivência harmoniosa entre todos os homens e
destes com os demais seres. Guerras e destruição ambiental são os resultados
mais visíveis da desarmonia instalada. Há que se fundar um novo ethos para
se criar uma relação nova entre os homens e destes com todos os demais seres. A
nova ética deverá nascer da natureza mais profunda do ser humano. A essência
do homem está mais no cuidado, na compaixão, do que na razão e na vontade. Há
que se resgatar a essência do humano.
O ser humano é um animal que, pela sua natureza, produz cultura. Ele
cria normas e instituições a partir de estímulos do meio ambiente e das
relações com os semelhantes e, assim, acaba modelando a sua própria natureza.
Ele também é um animal que consegue sobreviver em diversos ecossistemas,
adaptando-se a eles e moldando-os de acordo com as suas necessidades. Toda
sociedade, a partir da sua cultura, desenvolve uma ideia particular do que é
a natureza. Então, o conceito de natureza não é natural, ele é
criado e instituído pelos homens. É um dos pilares que sustentam as relações
sociais e a produção material e espiritual dos povos. Para a sociedade atual,
destacando-se a ocidental, a natureza, por definição, contrapõe-se à cultura.
A cultura é considerada como algo superior e que, por isso, pode controlar a
natureza.
A partir da Revolução Científica e da Revolução Industrial, o homem
colocou-se acima da natureza, acima dos demais seres que nela convivem.
Trata-se de um processo de separação, de um processo que coloca a natureza a
sua plena disposição. Todos já ouviram a expressão “o homem é um animal
social”, distinguindo-o dos outros animais. Ocorre que a vida social não é
privilégio da humanidade. A sociabilidade acontece de forma ampla no mundo
animal. Esta atitude arrogante produz um fosso entre a humanidade e a natureza.
Ela tornou-se estranha ao homem, que se acredita dela separado. Na sua mente
ela deixou de ser a sua morada, pois a sua casa passou a ser apenas a natureza
por ele modificada, a natureza “construída”.
Nos últimos séculos a justificativa dada para o avanço da ciência e da
indústria tem sido a elevação do nível de consumo. O consumo é essencial para a
vida humana; não é esta a questão. O problema não é o consumo em si, mas os
seus padrões e efeitos sobre o meio ambiente é que são questionáveis. O atendimento
de várias possibilidades de consumo deve acontecer para melhorar as condições
de vida das populações excluídas, não se questiona isto, de forma alguma.
O consumo moderno, contudo, seguiu caminhos tortuosos e virou
consumismo, penetrando no inconsciente coletivo da população, onde se confundiu
com o desejo de liberdade. Ser livre é poder apropriar-se da natureza,
transformá-la em bens de consumo e consumi-la. Quanto maior o consumo maior a
liberdade. Em relação à natureza consolida-se, com a aceitação deste conceito
de liberdade, uma ética utilitarista. A natureza está aí para ser usada e
abusada.
A abundância de bens de consumo produzidos pela indústria é vista como
um símbolo do sucesso das economias modernas. Entretanto, de algumas décadas
para cá, esta abundância começou a ser vista com olhares negativos, já que o
consumismo passou a ser considerado um problema social.
O consumo exacerbado não é mais uma opção aberta, com amplas
possibilidades para toda a Terra. A aceitação da ideia de um “desenvolvimento
sustentável” indica que se fixou um limite superior para o progresso. Esta
aceitação coloca um novo e saudável desafio: como eliminar a miséria, sem
desrespeitar a capacidade de suporte do planeta?
Podemos querer empurrar o crescimento além dos limites, mas devemos ter
consciência do fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a
nêmese da natureza. A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava
a justa medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a
própria medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante)
eram imediatamente fulminados por Nêmese. Há muito a humanidade vem exercendo a
sua arrogância e a deusa já começou a manifestar a sua ira. O desarranjo do
clima pode ser só o começo. Não devemos pagar para ver, mas muitos ainda acham
que sim.
A partir da década de 1970, muitos alertas foram dados sobre a situação
de risco que paira sobre o planeta Terra. Uma catástrofe de grande porte está
se aproximando e, como a sua causa não vem do espaço ou dos subterrâneos do
planeta, talvez haja tempo ainda para evitá-la ou, melhor, minimizá-la, melhor
ainda, diminuir a sua dimensão. Trata-se de um risco construído pela humanidade
na sua trajetória, aos poucos, mais precisamente há cerca de dois séculos. Caso
olhemos para o tempo geológico, que é contado em milhões de anos, observamos o
seu processo curtíssimo de formação. Os humanos e, indiretamente, todos os
demais seres – os inocentes pagam pelos culpados – começam a colher as
consequências de um modelo de economia que começou na Primeira Revolução
Industrial, no final do século XVIII, com a invenção da máquina a vapor e com o
uso intenso do carvão mineral.
Estamos falando de algo que está na pauta dos mais variados jornais e
das revistas, das escolas, dos congressos científicos, dos governos, etc.: o
aquecimento global (efeito estufa). Este fenômeno tem muitas causas: o
desflorestamento, a emissão de metano nos lixões, a emissão de metano pela
bovinocultura, mas a principal delas é o uso do combustível fóssil (carvão e
petróleo), com suas emissões de gás carbônico na atmosfera. No rol de emissores
de gás carbônico destacam-se a indústria e o transporte individual
(automóveis). O fenômeno é bem simples: os gases do efeito estufa retém o calor
na atmosfera, não permitindo que ele se dissipe rumo ao espaço.
A partir da Primeira Revolução Industrial, a economia entrou num ritmo
de crescimento nunca visto até então. Os séculos XIX e XX presenciaram outra
revolução econômica, essa de maior monta, a Segunda Revolução Industrial. Mais
particularmente, todo o século XX presenciou a expansão do uso de uma nova
fonte de energia, o Petróleo, principal agente do aquecimento global, mas as
coisas não pararam por aí. A expansão da produção de mercadorias e o
consequente crescimento econômico, que as revoluções industriais propiciaram,
tornaram-se necessidades e objetivos de todas as nações, que os assimilaram
como a tradução do que viria a ser o desenvolvimento econômico. Então, país não
industrializado passou a significar país subdesenvolvido, trata-se de uma
simplificação.
O desenvolvimento tecnológico que tem acompanhado as revoluções
industriais possibilitou a produção de uma infinidade nunca antes imaginada de
produtos, daquilo que os economistas chamam de bens de consumo. Então, nasceu o
que hoje chamamos de sociedade de consumo e, com ela, o seu principal ator
social, o consumidor com poder de compra, o cidadão consumidor; chegamos ao
ponto de pensarmos o simples acesso ao consumo como se fosse o acesso
definitivo à cidadania, o que se trata de um reducionismo imbecilizante, no
mínimo. Por muito tempo pensamos que o sonho do consumo crescente, ilimitado,
uma cornucópia sem limites vomitando produtos, seria possível e acessível a
todos no planeta. Bastava apenas que cada país cumprisse o seu papel e entrasse
no caminho da ordem e do progresso, da ordem capitalista e do progresso
material.
Hoje, na primeira metade do século XXI, fica cada vez mais claro que
esse sonho é de difícil concretização. Usando a linguagem dos ecologistas: a
Terra, com a sua capacidade de suporte, seus limites, não sustenta um
crescimento econômico infinito, pois ela é finita e funciona através de ciclos
– estações do ano, ciclo hidrológico, nascimento-morte-nascimento etc. – e não,
apenas, através de acúmulos, acúmulos e mais acúmulos. As consequências do
modelo adotado já estão visíveis: grande acumulação e concentração de riquezas
e desacumulação do meio ambiente.
Como desacumulação ambiental podemos observar: a água doce disponível
para consumo humano e dos demais seres vivos está cada vez mais contaminada; a
temperatura do planeta está aumentando e as suas consequências já se fazem
sentir no derretimento das geleiras, nas secas e nas inundações, por exemplo;
as terras agrícolas sofrem processos erosivos de grande monta e estão
contaminadas por defensivos agrícolas; a biodiversidade da Terra está
diminuindo dia-a-dia e, talvez, até desapareçam espécies animais e vegetais sem
que a humanidade jamais as tenha conhecido; etc.
Além de todas as mazelas rapidamente expostas acima, há uma questão
moral, porque não dizer ética: a quem serviu todo esse progresso? Serviu a toda
a humanidade? Caso observemos bem de perto, nem precisa de tanta proximidade,
percebemos que todo esse avanço da produção de bens materiais beneficiou uma
parte menor da humanidade, deixando a África, muitos países asiáticos e a
maioria dos países da América Latina de fora. Os países ricos “beneficiam-se”
com o consumo desenfreado enquanto os países pobres veem o esgotamento dos seus
recursos naturais e recebem, por tabela, os efeitos do aquecimento global,
resultante da queima excessiva de combustíveis fósseis nos primeiros, em grande
parte extraídos nos segundos.
Explicando o beneficiam-se entre aspas do parágrafo
acima: nem sempre consumir muito significa bem-estar, isto depende em larga
medida do que e do quanto se consome; consumir alimentos com excesso de
defensivos agrícolas, excessivamente processados (industrializados), com gorduras
trans, muito açúcar e muito sal, por
exemplo, muitas vezes ingeridos nos fast foods espalhados
pelos mais diversos centros urbanos do planeta, não é a melhor forma de se
alimentar, com certeza. Os casos crescentes de obesidade mórbida em muitos
países estão aí para confirmar esta assertiva. Os gastos absurdamente altos que
os municípios precisam destinar ao tratamento dos resíduos sólidos (lixo)
também estão entre as muitas contrapartidas negativas do consumo exagerado.
Esta breve explanação não tem maiores pretensões do que a de lançar
sementes de preocupação nos corações e mentes dos leitores, apenas isto. Nunca
na história da humanidade foi tão oportuno e necessário debruçar-se atentamente
sobre o destino dos homens e de todos os seres do planeta como agora. É uma
oportunidade ímpar, onde somos chamados a nos revermos e a revisitarmos as
nossas relações com os nossos iguais e com todos os seres a nossa volta. É o
ponto de partida para podermos modificar os nossos comportamentos econômicos,
sociais e ecológicos à luz de uma nova ética, que deverá alicerçar-se no
cuidado, no cuidado conosco, com nossos semelhantes, com a natureza, enfim, com
toda a Terra, que é, ao mesmo tempo, nossa mãe e nossa morada.
Todo o exposto acima alerta-nos para a necessidade de se construir uma
nova ética para balizar o comportamento de todos os seres humanos do planeta. É
necessária a elaboração de um conjunto de regras mínimas e comuns a toda
humanidade, independente das nacionalidades, religiões, raças etc., para
doravante se buscar a minimização dos impactos antrópicos sobre a natureza.
Assim, é necessária uma compreensão mínima sobre o significado da ética.
A palavra ética vem da palavra grega ethos, que significa
morada. Todavia, não se tratava e, também hoje, não deve ser compreendida como
a casa material, mas como a casa existencial. A casa existencial significava
para os gregos a teia de relações entre o meio físico e os membros da
comunidade. Para os dias de hoje, recuperando a concepção grega, a morada não
deve ser apenas a casa onde as pessoas habitam, deve ser também a cidade, o
país e o planeta Terra, a casa de todos.
A necessidade de se construir uma ética para a Terra é importante e sua
relevância para a própria sobrevivência da humanidade é inquestionável, pois a
busca desenfreada por riqueza e poder e a luta sangrenta pela partilha das
riquezas naturais têm impedido a convivência harmoniosa entre todos os homens e
destes com os demais seres. Guerras e destruição ambiental são os resultados
mais visíveis da desarmonia instalada. Há que se fundar um novo ethos para
se criar uma relação nova entre os homens e destes com todos os demais seres. A
nova ética deverá nascer da natureza mais profunda do ser humano. A essência
do homem está mais no cuidado, na compaixão, do que na razão e na vontade. Há
que se resgatar a essência do humano.
O ser humano é um animal que, pela sua natureza, produz cultura. Ele
cria normas e instituições a partir de estímulos do meio ambiente e das
relações com os semelhantes e, assim, acaba modelando a sua própria natureza.
Ele também é um animal que consegue sobreviver em diversos ecossistemas,
adaptando-se a eles e moldando-os de acordo com as suas necessidades. Toda
sociedade, a partir da sua cultura, desenvolve uma ideia particular do que é
a natureza. Então, o conceito de natureza não é natural, ele é
criado e instituído pelos homens. É um dos pilares que sustentam as relações
sociais e a produção material e espiritual dos povos. Para a sociedade atual,
destacando-se a ocidental, a natureza, por definição, contrapõe-se à cultura.
A cultura é considerada como algo superior e que, por isso, pode controlar a
natureza.
A partir da Revolução Científica e da Revolução Industrial, o homem
colocou-se acima da natureza, acima dos demais seres que nela convivem.
Trata-se de um processo de separação, de um processo que coloca a natureza à
sua plena disposição. Todos já ouviram a expressão “o homem é um animal
social”, distinguindo-o dos outros animais. Ocorre que a vida social não é privilégio
da humanidade. A sociabilidade acontece de forma ampla no mundo animal. Esta
atitude arrogante produz um fosso entre a humanidade e a natureza. Ela
tornou-se estranha ao homem, que se acredita dela separado. Na sua mente ela
deixou de ser a sua morada, pois a sua casa passou a ser apenas a natureza por
ele modificada, a natureza “construída”.
Nos últimos séculos a justificativa dada para o avanço da ciência e da
indústria tem sido a elevação do nível de consumo. O consumo é essencial para a
vida humana; não é esta a questão. O problema não é o consumo em si, mas os
seus padrões e efeitos sobre o meio ambiente é que são questionáveis. O atendimento
de várias possibilidades de consumo deve acontecer para melhorar as condições
de vida das populações excluídas, não se questiona isto, de forma alguma.
O consumo moderno, contudo, seguiu caminhos tortuosos e virou
consumismo, penetrando no inconsciente coletivo da população, onde se confundiu
com o desejo de liberdade. Ser livre é poder apropriar-se da natureza,
transformá-la em bens de consumo e consumi-la. Quanto maior o consumo maior a
liberdade. Em relação à natureza consolida-se, com a aceitação deste conceito
de liberdade, uma ética utilitarista. A natureza está aí para ser usada e
abusada.
A abundância de bens de consumo produzidos pela indústria é vista como
um símbolo do sucesso das economias modernas. Entretanto, de algumas décadas
para cá, esta abundância começou a ser vista com olhares negativos, já que o
consumismo passou a ser considerado um problema social.
O consumo exacerbado não é mais uma opção aberta, com amplas
possibilidades para toda a Terra. A aceitação da ideia de um “desenvolvimento
sustentável” indica que se fixou um limite superior para o progresso. Esta
aceitação coloca um novo e saudável desafio: como eliminar a miséria, sem
desrespeitar a capacidade de suporte do planeta?
Podemos querer empurrar o crescimento além dos limites, mas devemos ter
consciência do fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmese
da natureza. A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava a
justa medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a
própria medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante)
eram imediatamente fulminados por Nêmese. Há muito a humanidade vem exercendo a
sua arrogância e a deusa já começou a manifestar a sua ira. O desarranjo do
clima pode ser só o começo. Não devemos pagar para ver, mas muitos ainda acham
que sim.
Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
_______. Saber
cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes 1999.
DE MASI, Domenico. O ócio criativo. São Paulo: Editora
Sextante, 2000.
ENGELS. Friedrich. O papel do trabalho na transformação do
macaco em homem. Rio de Janeiro: Global Editora, 1990.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo:
Centauro Editora, 2006.
LAFARGE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014.
SMITH,
Adam. A riqueza das nações: investigação sobre a sua natureza e suas
causas. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
* Zildo Gallo, economista pela
PUC-Campinas, mestre e doutor em geociências pela UNICAMP, professor do Curso
de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (mestrado e
doutorado) na Universidade de Araraquara – UNIARA.
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