Começava o
ano de 1968. Eu me matriculava no curso ginasial do Instituto de Educação
Estadual Presidente Kennedy (IEEPK), após ter concluído o curso primário no
Centro Educacional SESI 101 em Americana. Americana era, ainda é, um polo importante
da indústria têxtil nacional. Naquele tempo, para entrar no ginásio após a
conclusão do quarto ano primário, era necessário prestar um exame de admissão,
uma espécie de vestibular. Nem todos prestavam, muitos não prestavam. Lembro-me
que da minha turma poucos o fizeram. A maioria parou ali e como era de costume,
talvez mais por necessidade, iniciavam alguma forma de trabalho, algum
aprendizado profissional, e quando chegavam aos quatorze anos de idade poderiam
ter, com orgulho, o seu primeiro registro na carteira profissional. Começava assim
um afunilamento, um afunilamento muito precoce, produzido pelas condições
sociais.
O destino de
cada um já se traçava muito cedo. Lembro-me de ouvir muitas vezes, da boca de
várias pessoas: "para virar tear
(ser tecelão) não precisa ser doutor". Eles até que tinham razão, pois
virar os teares mecânicos da época, destino de muitos, exigia um aprendizado
mínimo. Dessa maneira, ir além do quarto ano não era para todos. Lembro-me do
pai de um garoto falando ao meu pai, no dia da formatura, que seu filho
precisava ajudá-lo no trabalho, não me lembro o tipo de trabalho, talvez de
pedreiro. Era assim, começava-se cedo na lide pela sobrevivência. Embora fosse
tão pobre quanto aquele garoto, eu queria ter o privilégio de ir além do quarto
ano, então prestei o exame de admissão e passei, nem todos os que prestavam
passavam. O letramento era um privilégio que começava bem cedo.
O ginásio era
muito diferente do primário. No primário tínhamos um único professor ou
professora e no ginásio tínhamos um para cada matéria, mas acostumávamos muito
rápido. Como eu tinha estudado no SESI, no primário eu não tive problemas com
material escolar, pois os cadernos e livros eram ofertados gratuitamente pela
instituição a todos os alunos, independente da sua condição social. No ginásio
não havia essa gratuidade. O que poderiam fazer os estudantes que não podiam
comprar os materiais, como no meu caso?
Nesse caso, havia
a caridade, uma coisa chamada "Caixa", que recebia contribuições
diversas e, com elas, fornecia materiais escolares e uniformes aos alunos
carentes, após uma análise socioeconômica feita por funcionários da escola. Não
eram muitos alunos os "da Caixa", pois a maioria dos muito pobres não
prestava o exame de admissão. Lembro-me que não era muito agradável ser da Caixa,
éramos crianças... Tínhamos que nos contentar com os cadernos tipo brochura,
que denunciavam a nossa situação, não havia outro jeito, enquanto os mais
aquinhoados exibiam os seus cadernos aramados do tipo multidisciplinas com suas
capas duras e estampadas. Os cadernos já nos diferenciavam.
No meu
primeiro ano de ginásio teve um fato que nos diferenciou ainda mais. O tênis
indicado para a educação física deveria ter a cor branca, mas os responsáveis
pela Caixa só conseguiram tênis azuis. Assim, num mar de calçados brancos
apareciam alguns azuis. Eram os "da Caixa". Isso marcou tanto que
cheguei a traçar um paralelo do tênis azul com a Estrela de Davi costurada nas
roupas dos judeus na Alemanha nazista. Era um carimbo: POBRE.
As classes
eram bem heterogêneas. Existiam alunos muito ricos, alunos de classe média, de
classe média baixa e os "da Caixa". Entretanto, de uma coisa não se
podia reclamar, da qualidade do ensino. Que pena que não era para a maioria. O
sistema era bom, todavia excludente. Os "da Caixa" desejavam e eu,
como um deles, também desejava completar quatorze anos de idade, arranjar um
emprego com carteira assinada, se possível, e migrar para o período noturno. Só
estudavam à noite os alunos que trabalhavam durante o dia. Para mim isso se deu
nos meus quinze anos. Foi uma libertação: estava numa classe onde as diferenças
sociais eram pequenas e podia comprar meu material escolar e meu tênis. A
biblioteca da escola era muito boa e eu a usava muito, mas já podia comprar
livros, isso era o máximo.
A qualidade
de ensino era muito boa e a escola era muito exigente. Quando um aluno era
reprovado duas vezes seguidas, ele era jubilado, o que não era nenhum júbilo,
na verdade ele era expulso e não podia mais estudar numa escola pública. Os
pais que tinham condições financeiras matriculavam os repetentes nas escolas
PPP (papai pagou passou), os que não tinham deixavam os seus filhos fora da
escola mesmo e pronto.
Tive muita
sorte com meu primeiro emprego e me mudei para o ginasial do noturno no IEEPK.
Naquela época havia uma injustiça absurda, os menores de idade recebiam meio
salário mínimo, a lei permitia, e faziam o trabalho de um adulto, era o vergonhoso
"salário de menor". Eu comecei recebendo um "salário de
maior", fato raro naqueles anos. As livrarias e as bancas de revistas
ganharam muito com isso. Tive mais sorte ainda por não iniciar a minha
trajetória profissional num chão de fábrica; as tecelagens eram extremamente
insalubres naqueles tempos. Comecei a trabalhar no administrativo de uma
empresa têxtil e isso ajudou nos meus estudos. Naquela época, a lide diária
dentro de uma tecelagem era muito cansativa e acabava desestimulando os
operários a estudarem no noturno, poucos tecelões o faziam.
Pior que ser
pobre no Kennedy, era ser pobre e negro. Havia muito preconceito racial entre
os alunos. Vários professores alertavam sobre a questão, mas isso apenas
mascarava a realidade. A escola podia pouco frente aos preconceitos aprendidos
nos recônditos dos lares. Lembro-me que eram poucos negros, poucos mesmo. Na
minha classe, no período diurno, havia um, o Custódio, éramos amigos. Ele
acabou abandonando o ginásio, não resistiu, muitos não resistiam. Muitos anos
depois eu o reencontrei num bairro periférico da cidade, enquanto exercia a
minha militância de esquerda no auge da minha juventude. Também havia uma
menina negra, lembro-me que era um pouco gordinha, ela não era da minha classe,
não sei o seu nome, pois a conhecíamos como "Branca de Neve", apelido
maldosamente dado pelas meninas e meninos brancos, que eram a imensa maioria. Americana
tinha uma população negra de bom tamanho, mas, pelo que eu observava, poucos
estudavam. Não sei como ela conseguiu concluir os estudos, mas conseguiu, uma
heroína...
Hoje, do alto
dos meus 59 anos, olhando lá para os idos dos anos sessenta e início dos
setenta do século passado, consigo observar que muitas coisas mudaram. Ouço
muito falarem que naqueles tempos a qualidade de ensino era bem melhor e não
discordo, mas retruco: era para poucos. Pensando no ensino básico hoje, vejo
como mudanças positivas a ampliação do ensino fundamental para oito anos, o
fornecimento de livro didático, a alimentação escolar instituída, entre outras
melhorias. O que se tem para lamentar: 1) o aparelho de estado (União, estados
e municípios) não cumpre o seu papel de garantir educação de qualidade nas
escolas públicas; 2) isso estimula o avanço do ensino privado para poucos,
aumentando o apartheid social; 3) os professores eram melhor remunerados
naquela época e, por conta disso, mais preparados. Para mim a coisa é muito
simples: o Estado tem que fornecer uma educação pública de boa qualidade e
aqueles que desejarem uma diferenciação ou uma educação com direção mais
específica, como a de caráter religioso, por exemplo, que coloquem seus filhos
nas escolas privadas. O que não pode haver é a exclusão, o apartheid, por
diferenças no nível de ensino, só isso, bem simples.
Concluindo: sempre
é possível ter saudade, a saudade é inerente ao ser humano, embora seja uma
palavra da língua portuguesa de difícil tradução; excetuando o ensino primário,
que era para todos, o restante era bem restrito e aí a origem social exercia o
seu papel, mas a qualidade de ensino era muito boa, não restam dúvidas, e
muitas amizades aconteceram nessa trajetória e do que mais nos lembramos com
carinho é das relações, das boas relações, somos seres que se relacionam, estou
aprendendo sobre isto.
PS. Com este
artigo pretendo iniciar uma série para comparar um pouco a vida nos anos
sessenta, setenta e até um pouco dos oitenta com os dias de hoje, no sentido de
relembrar para uns e de informar para outros. O mundo e o Brasil mudaram muito
e continuam mudando e, assim, acho interessante e até mesmo produtivo escrever
a respeito. O mote da minha escrita será a minha trajetória. Rever-me-ei e
reverei os tempos idos.
Muito bom.... Parabéns pelo artigo Prof Zildo. o tema realmente merece reflexão!!!
ResponderExcluirmuito legal
ResponderExcluirveja essa coletânea Zildo https://www.facebook.com/groups/427564973955663/?fref=ts
ResponderExcluirOla Zildo
ResponderExcluirO império do "Bem ocidental" trouxe o dinheiro do FMI para destruir a natureza e a nossa cultura. Lembra do Tião Carreiro e Pardinho: -" ...a coisa ta feia, a coisa ta preta, quem não é filho de Deus, está na unha do capeta." Esta frase sintetiza bem o que é o "tar do progresso". "Os home" tomaram dinheiro emprestado e nunca pagaram e o juro ficou por nossa conta. Com a consciência das Elites foram destruídos os mananciais d'água, as famílias, nossa cultura caipira e a instrução dos bons costumes cristãos. "Eles" destruíram o ensino para criar um povo "xucro, faminto e feio" (veja Darcy Ribeiro em O ÓBVIO). A destruição foi planejada e executada para acontecer deste jeito que estamos vendo. A final as indústrias de armamento precisam vender...
Professor Zildo, parabéns pelo texto, que nos remete a uma grande reflexão! Muito obrigada! Abraços - Janete Campoi
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