domingo, 29 de março de 2015

Como começar a mudar o mundo a partir do Ocidente

Zildo Gallo


A partir do meu livro "Ethos, a Grande Morada Humana: Economia Ecologia e Ética" (2007), tomando como ponto de partida as questões inerentes ao Ocidente,  elaborei um conjunto de propostas que considero necessárias para que se comece uma trajetória positiva no sentido da construção de um mundo melhor. Seria uma espécie de "como podemos fazer a nossa parte". Não são propostas facilmente exequíveis, por conta do primitivo estágio civilizatório da humanidade ainda nos tempos atuais, mas são necessárias à própria sobrevivência da humanidade de forma digna. Não considerá-las neste momento, pode significar um passo rumo à barbárie.
Sobre a academia e a fragmentação da ciência - Em relação à fragmentação do conhecimento científico, tem-se observado uma mudança positiva, nos últimos anos, que já tem chegado ao meio acadêmico. A academia já tem, pelo menos parte dela, enfrentado a resistência ao conhecimento interdisciplinar. Trata-se de um exercício de humildade que o cientista precisa adotar, saindo do casulo da sua área de saber e se aproximando das demais. Contudo, há muito que avançar ainda; o ocidente ainda con­tinua muito impermeável à penetra­ção de saberes de outra origem; os conheci­mentos provindos do oriente servem para exemplificar. Mas, até em relação a estes, as resistências têm  diminuído, apesar da lentidão. A aceitação das medicinas chinesa e indiana são bons exemplos disso, por exemplo.
Sobre a ética planetária - A necessidade de se construir uma ética para o planeta Terra é de extrema impor­tância e sua relevância para a própria sobrevivência da humanidade é, cada vez mais, in­questionável. Os limites do estado-nação precisam ser superados. Doravante, é necessário modelar um novo projeto de civiliza­ção, baseado na paz e no cui­dado para todos os países. É preciso fundar um novo ethos para permitir uma nova convivência entre os ho­mens e destes com todos os demais seres do planeta. A nova ética deverá nascer da essência, da natureza mais profunda do ser humano. Ocorre que a essência do homem está muito mais no cuidado, na com­paixão, do que na razão e na vontade. Há que se resgatar a essência do humano. É preciso ir além da ciência, muito além. Trata-se de um projeto de caráter multicultural, envolvendo todas as tradições culturais de todos os povos, incluindo aí todas as religiões, indistintamente. Há a necessidade de aberturas de diálogos entre as culturas e religiões diferentes no sentido de se estabelecer um espaço de paz e tolerância entre elas.
Sobre a ética econômica - A aproximação entre ética e economia é cada vez mais necessária e será be­néfica para ambas. Muitos problemas éticos estão ligados a questões logísticas, que são objetos de estudo da ciência econômica, como o problema da fome, do saneamento básico e da exploração do trabalho infantil, entre vários outros. As soluções passam, muitas vezes, pela engenharia econômica, a engenharia econômica a ser­viço de um objetivo maior, ético: o bem-estar social. A responsabilidade pelo bem-estar social é de todos, não é só dos eco­nomistas, ela é nacional e transnacio­nal, porque os seres humanos que sofrem não podem ficar segregados nos seus territórios. É preciso encarar toda a humanidade como uma grande família. Onde quer que habitem, a preocupação com os que têm fome e padecem de doenças não pode cessar porque os aflitos estão do outro lado da fronteira. A ética econômica precisa ter este caráter universal.
Sobre uma filosofia para a natureza - O desenvolvimento da razão científica, que é o principal pro­duto da civilização ocidental, distanciou o homem da natureza e facilitou para que ele assumisse uma atitude arrogante e dominadora em relação a ela. Acontece que a racionalidade do ocidente é linear e fragmentada (cada ciência no seu quadrado), uma herança da Revolução Científica que teve início no século XVII, e os sistemas ecológicos são redes dinâmicas não lineares. Esta racionalidade não consegue captar a complexidade dos sis­temas vivos e o resultado disto pode ser visto nas tragédias ambientais que se espalham por todo o planeta. Quando se ana­lisa a modernidade científica e técnica, descobre-se por detrás dela o funciona­mento de uma determinada filosofia: o “realismo materialista”. A nova filosofia precisa ser uma alternativa ao realismo materialista; deve ser holística, ecológica e espiritual. Ela também precisa extrapolar o antropocentrismo, pois toda a natureza e os seus ecos­sistemas devem ser considerados. A ciência econômica, por exemplo, não pode cuidar só do bem-estar dos seres humanos, mas de todos os seres, indistintamente, que precisam de água com quali­dade adequada, de solos não contaminados, de ar limpo e alimentação.
Sobre a sustentabilidade do desenvolvimento -  O desenvolvimento sustentável deve ser aquele que, além de atender às ne­cessi­dades do presente, também não compromete a possibilidade de as gerações futuras aten­derem as suas próprias necessidades. A humanidade precisa rapida­mente ser capaz de tornar sustentável o desenvolvimento econômico. O conceito de desenvolvimento sustentá­vel tem limites; não são limites absolutos, são limites impostos pelo estágio atual da ciên­cia, da tecnologia e da organização social e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos antrópicos negativos. Tanto a tecno­logia quanto a organização social devem ser geridas e aprimoradas a fim de pro­porcionar uma nova era de crescimento econômico que não produza de novo as destruições que o progresso material tem provocado até agora. O desen­volvimento sustentável não é um estado de harmonia permanente. Trata-se de um processo de mudança bem difícil, mas necessário, onde o uso dos recursos, a alocação dos investi­mentos produtivos, o desenvolvimento da tecnologia e as mudanças institucionais têm que estar em conformidade com as necessidades do presente e do futuro. Do ponto de vista econômico, há que se pensar no longo prazo, o que significa uma mudança radical, pois o mercado atua quase que exclusivamente no curto prazo. Assim, é necessária a reintrodução do planejamento no debate econômico, algo que foi deixado de lado com a expansão do neoliberalismo a partir dos anos 80 do século XX, indo além do mercado.
Sobre o consumismo - Nos dias de hoje, o consumidor com poder de compra, com renda, fica ator­doado diante do imenso leque de possibilidades de consumo posto à sua frente e não consegue compreender as suas repercussões sobre o meio ambiente do planeta. Assim, as propos­tas de mudança nos padrões de consumo são importantes na busca da utopia de uma “sociedade sustentável”. Os consumidores podem e devem politi­zar as práticas de con­sumo, cobrando dos produtores práticas sociais e am­bientais responsáveis. Então, há que se fazer um esforço para diminuir a ignorância do consumidor sobre as repercussões das suas escolhas, ou seja, torná-lo ciente do impacto delas. É necessária e urgente uma “alfabetização ecológica”. Ela ajudaria o consu­midor a compreender as consequências das escolhas. Ensinar o “saber ecológico” será o maior papel da educação neste século. A alfabetização ecológica precisa se tornar uma obrigação para políticos, empresários e profissionais de todas as áreas, e deve ser, também, uma preocupação central da educação em todos os seus níveis – fundamental, médio, universitário e profissionalizante.
Sobre uma democracia global - A necessidade de se construir uma democracia global é óbvia tanto para os diri­gentes dos países maiores quanto para os dirigentes de países pequenos. Ocorre que, num mundo globalizado, as ações de cada país podem repercutir em todo o planeta até por séculos adiante e a democracia, nos moldes atuais, continua ele­gendo seus dirigentes com base em eleições nacionais para mandatos de durações curtas. O mundo tornou-se global e de longo prazo e a democracia ainda é nacional e de curto prazo. Neste sentido, para se democratizar, a globalização deve deixar de ser identificada apenas com o comércio, como acontece nos dias de hoje. As relações de comércio continuarão moldando o futuro próximo do planeta Terra por um longo tempo. Entretanto, para que elas aconteçam dentro dos marcos civilizatórios, terão que ser acompanhadas por uma crescente solidariedade internacional, que contemple investimentos para superar a exclusão social e as catástrofes locais. Uma democracia global tem que combinar a demo­cracia nacional com a solidariedade internacional e histórica em relação às socie­dades de hoje e às gerações futuras.
Os pontos levantados acima caracterizam uma Nova Utopia. Cada vez mais há que se pensar em termos globais. este é o princípio número um. Todavia, a globalização pretendida deve ir muito além da mera globalização econômica dos dias atuais. É necessário que se universalizem valores humanos lastreados em princípios igualitários e de justiça: fim da pobreza;  das exclusões por credos religiosos, raça, opção sexual etc. e; fim das desigualdades entre homens e mulheres. Muitos direitos também devem ser globalizados: segurança alimentar; educação; saúde; habitação; transporte coletivo etc. Enfim, há a necessidade de se pensar uma sociedade nova, sem privilégios de nenhuma ordem. O estado de bem-estar social (Welfare State), existente em vários países da Europa, com destaque para os países nórdicos, precisa ser universalizado como ponto de partida para uma nova sociedade. As palavras de ordem da Revolução Francesa (Liberté, Egalité, Fraternité) precisam ser postas de novo na ordem do dia, pois, afinal, somos todos iguais, ou não somos? A liberdade deve ser para todos e se tem algo que limita a liberdade, este algo é a pobreza. A fraternidade, por sua vez, é um valor que precisa ser universalizado, que precisa adentrar nos corações e mentes de todos os seres humanos, pois ela é o ponto de partida para a igualdade. Não dá para pensá-las separadamente, como costumeiramente acontece.
Referência

GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.

terça-feira, 24 de março de 2015

A crise hídrica, o Sistema Cantareira e o desserviço da imprensa

Zildo Gallo


Choveu bem durante o mês de fevereiro e está chovendo bastante neste mês de março de 2015. No dia 23/03/2015 o portal G1, da Rede Globo, estampou a seguinte manchete: "Sistema Cantareira segue subindo e nível passa de 16,6% para 17,1%". Pelo título da matéria parece que estamos entrando no melhor dos mundos em relação à situação hídrica para a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e para a Região Metropolitana de Campinas (RMC). A imprensa escrita também segue o mesmo caminho. O jornal Correio Popular, de Campinas, no dia 23/03/2015, fez uma chamada na sua capa com o seguinte  teor: "Cantareira: nível sobe a 16,6% na 16a  alta seguida". Só faltou soltarem rojões, numa queima de fogos apoteótica.
As chuvas constantes nos dois meses são mais que bem-vindas, mas elas estão longe de recompor o volume das águas do Sistema Cantareira, colocando-o numa situação confortável. Apesar das elevações, a situação ainda é crítica. Há um ano, o nível estava em 14,6% do volume útil, que já era muito baixo, e ainda não contava com os dois volumes mortos, adicionados em maio e outubro de 2014. A chuva dos últimos meses conseguiu recuperar apenas a segunda cota do volume morto. Para cobrir a primeira cota do volume morto, o armazenamento de água do sistema precisa chegar a 29,2%, o que completaria o conjunto do volume morto e chegaria à situação de 0% do volume útil (desconsiderando o volume morto, que é uma espécie de "reserva técnica"). Após atingir os 29,2% e, a partir daí, ultrapassando-o, indo além do volume morto, da "reserva técnica", é que efetivamente se pode considerar que tudo caminha rumo a uma real melhora (ver gráfico).

CANTAREIRA: nível, em % (com a capacidade total sem o volume morto)
Prelo gráfico acima, é possível ver que, na verdade, quando se retira o volume morto, em 23/03/2015, que representa os 17,1% festejados pela imprensa, chega-se a uma situação de cerca de -20% (vinte por cento negativos), ou seja, o sistema está devendo, está no vermelho. Isto parece muito aquela melhora de um paciente terminal, pois é preciso lembrar que o período da estiagem está chegando. Tudo parece caminhar no sentido de que adentraremos o tempo seco numa situação pior que 2014.
Antes da crise, o Sistema Cantareira abastecia 8,8 milhões de pessoas na Grande São Paulo e  hoje produz água para 5,6 milhões. O sistema conseguiu recuperar apenas o equivalente à segunda cota do volume morto. O Cantareira cortou 56% na vazão em relação a fevereiro de 2014. A quantidade fornecida passou de 31,7 mil litros/segundo para 14 mil litros/segundo. Pela gravidade do quadro, o fornecimento deveria ser ainda menor, mas o Governo do Estado, sócio majoritário da SABESP, parece não querer correr riscos, é o que parece à primeira vista. Medidas mais sérias de racionamento deveriam ser tomadas. É óbvio que isso não é agradável, mas não devemos esperar por milagres, por uma não estiagem. Pode até acontecer, mas não tem nenhuma racionalidade nisso.
Está chovendo muito e é bom que chova muito. Será bom se no mês de abril as chuvas continuarem com toda força. Torçamos para isso. Contudo, temos que ser realistas. Muita gente, vendo as águas caírem, podem ter relaxado. Isso é normal, pois ninguém gosta de ficar num permanente mal-estar, mas a vigilância é necessária neste momento. Relaxemos na medida do possível, mas fiquemos alertas O papel da imprensa deveria ser o de alertar permanentemente a população sobre o quadro real e sobre os riscos futuros. Quando ela não faz isso adequadamente, ela produz um desserviço.
Durante muito tempo permanecerá a necessidade de um contingenciamento do consumo de forma mais rígida, enquanto as obras de engenharia para aumentar a capacidade de armazenamento do sistema estiverem em andamento. A SABESP e os serviços municipais de água e esgoto têm que correr contra o tempo. Trata-se de recuperar o tempo perdido. Há anos os técnicos alertavam sobre a necessidade de investimentos no setor e eles não foram levados a sério.
Alguns municípios da Região de Campinas (RMC), que está ligada ao Sistema Cantareira,  possuem represas e, assim, conseguem uma autonomia. É o caso de Nova Odessa, que conseguiu aumentar a capacidade de três barragens da cidade através do seu desassoreamento. Outros municípios da região pretendem fazer o mesmo. Municípios que não têm represas deveriam pensar em tê-las e construí-las leva tempo. É tempo de correr atrás do prejuízo, não dá para relaxar.
O Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) começará a elaborar projetos para o desassoreamento de represas municipais com o objetivo de aumentar a capacidade de armazenagem de água. Os sedimentos dos fundos das represas são compostos basicamente por areia e a areia é uma matéria prima importante da construção civil. A areia retirada poderia ser vendida, o que reduziria o custo da empreitada do desassoreamento. O PCJ está considerando essa possibilidade no seu planejamento. Será melhor para a região de Campinas precisar o menos possível da vazão do Sistema Cantareira, pois as obras necessárias para ampliar a sua capacidade de estocagem são de médio e longo prazos.
Agradeçamos pelas chuvas, mas não soltemos rojões. O racionamento está longe  de ser descartado. Uma diminuição drástica do consumo continuará sendo necessária por um longo período, principalmente na Grande São Paulo (RMSP), onde a situação é mais crítica.

SEMPRE ALERTA!

quinta-feira, 19 de março de 2015

Cruz e Sousa: a tragédia da negritude

Zildo Gallo


Hoje, 19 de março de 2015, faz 117 anos que faleceu o poeta Cruz e Sousa (1861 - 1898). Morreu jovem, por conta de uma tuberculose que se arrastava, com apenas 36 anos de uma vida vivida difícil e dolorida. Apesar da sua sólida formação intelectual, padeceu pelas mesmas dores dos seus irmãos negros. Num país de analfabetos, teve seu talento rejeitado pelos homens brancos que administravam o Brasil do final do século XIX. É bem provável que se fosse menos instruído talvez tivesse penado menos. A sua rejeição pelos políticos locais para assumir o cargo de promotor público no município de Laguna (SC) marcou a ferro a sua existência, que, do ponto de vista material, vai ser muito precária. No município do Rio de Janeiro, teve que se contentar com o trabalho de arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil. Era um trabalho muito aquém da sua genialidade e mal remunerado, que não dava conta da sobrevivência da sua família.
Apesar de todos os dissabores que viveu, ele teve algum reconhecimento no seu tempo, por conta da sua coragem intelectual e artística. Foi um dos precursores da literatura simbolista no Brasil e seus poemas ficaram conhecidos pela intensa musicalidade, pelo sensualismo, muitas vezes pelo desespero e por uma certa obsessão pela cor branca, que poderia até parecer com uma necessidade de lavar a negritude da sua alma. Entretanto, acho que isso soa como uma simplificação, como uma análise psicológica de superfície.
Praticamente metade da população brasileira é composta por não brancos, mas foram poucos os escritores negros, mulatos ou indígenas. O nosso "Cisne Negro", como era conhecido no seu tempo, é considerado o maior poeta negro do País. Por que o maior poeta negro e não o maior poeta? A poesia tem raça? Cruz e Sousa viveu pouco e no seu pouco tempo de vida criou uma bela obra. Pelo pouco tempo de vida a sua obra foi pequena no aspecto quantitativo, mas foi gigantesca no aspecto da qualidade. Por que não o nosso maior poeta? Caso fosse um francês, como o simbolista Baudelaire, o seu valor seria outro, seguramente.
A tragédia de Cruz e Sousa, encenada nos estertores (bem ao gosto do poeta) do século XIX, continua sendo encenada em pleno século XXI. A abolição da escravatura parece um processo sem fim. Na verdade, quando a escravidão deixou de ser uma instituição legal, um racismo cruel e avassalador assenhorou-se da população branca e serviu como elemento essencial da exclusão social.
Quando foram libertos, os negros foram lançados ao "Deus-dará", foram entregues a sua própria sorte. Eles, que a séculos viviam tutelados, tiveram que, num curto período de tempo, aprender a caminhar com as próprias pernas. Eles deveriam ter sido ajudados nesse processo pelo estado brasileiro, o que, de fato, não aconteceu. Um exemplo: como a maioria dos escravos trabalhava na agricultura, eles poderiam ter sido assentados em lotes de reforma agrária, onde plantariam e criariam animais. A história deles e a própria história da agricultura brasileira teria seguido outra trajetória. O Brasil continuou monocultor e a população afrodescendente mergulhou na miséria. No Rio de Janeiro ela ocupou os cortiços e, quando foi expulsa pelas campanhas higienistas contra a febre amarela, ocupou os morros, que se transformaram em favelas.
No século XXI, passado mais de um século da abolição da escravatura, o IBGE, pelo Censo de 2010, confirmou que a pobreza no Brasil continua afrodescendente. Segundo o Instituto, 11,5 milhões de pardos ou pretos se declararam pobres, contra 4,2 milhões de brancos que assim se declararam. O número de pretos e pardos pobres é equivalente a 2,7 vezes o número de brancos.
No Censo de 2010, pela primeira vez, desde 1872, quando ocorreu o primeiro Censo populacional no Brasil, 50,7% da população se autodeclarou preta (7,6%) ou parda (43,1%), declarou-se afrodescendente. O percentual de brancos na população caiu abaixo da metade e hoje é de 47,7%. Os negros e pardos são a maioria e são os mais excluídos. Trata-se de uma exclusão histórica, que precisa ser revertida.
A melhor forma de inclusão dá-se pela educação, mas só ela não basta. Não basta facilitar o acesso à escola, com destaque para o ensino superior. Sempre é bom lembrar da história do nosso poeta. Ele possuía formação intelectual maior que a maioria dos brancos brasileiros e teve o emprego de promotor público rejeitado pelos políticos brancos do município de Laguna (SC) que, com certeza, eram muito ignorantes quando comparados a ele. O acesso ao ensino é condição sine qua non da inclusão social, mas ela tem que vir acompanhada de um combate diário contra o preconceito. O fim do preconceito significará a redenção do nosso poeta maior, no meu juízo: Cruz e Sousa.
Vejam a beleza de um poema seu.
O ASSINALADO
Tu és o louco da imortal loucura;
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma desventura extrema;
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.
Tu és o poeta, o grande assinalado;
Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco.
Na natureza prodigiosa e rica,
Toda a audácia dos nervos justifica,
Os teus espasmos imortais de louco.
Referência
RIGHI, Volnei José. O poeta emparedado: tragédia social em Cruz e Sousa. Dissertação de Mestrado. Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília - UNB, 2006, 150p

No quadro abaixo segue uma rápida biografia do poeta.
CRUZ E SOUSA: pequena biografia
João da Cruz e Souza, era filho de escravos alforriados (Guilherme da Cruz e Carolina Eva da Conceição), nasceu em 24 de novembro de 1861, em Florianópolis (SC), e faleceu em 19 de março de 1898. Teve uma boa educação proporcionada pelos patrões de seus pais, estudando no Ateneu Provincial Catarinense. O seu sobrenome, Sousa, vem do seu mecenas, o Marechal Guilherme Xavier de Sousa. Dona Clarinda, a esposa do marechal, cuidou da educação do menino João com desvelo e ele respondeu à altura, aprendendo francês, latim, grego, matemática e ciências naturais. Era um menino prodígio, mas era negro, uma marca que o acompanhará por toda a sua curta existência.
Com vinte anos de idade, em 1881, foi um dos fundadores do jornal Colombo. Em 1884, foi indicado pelo presidente da província para a promotoria pública de Laguna (SC), mas foi impugnado por políticos locais por ser negro. Em 1885 lançou o seu primeiro livro, Tropos e Fantasias em parceria com Virgílio Várzea. Cinco anos mais tarde mudou-se para o Rio de janeiro, onde trabalhou como arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil. Naquela época, o Brasil era um país de analfabetos e um individuo versado em línguas e ciências como ele, caso fosse branco, teria outro tipo de emprego, seguramente. Contudo, enquanto trabalhava na ferrovia, naquele trabalho nada criativo para o tamanho do seu gênio, Cruz e Sousa colaborava com o jornal Folha Popular.
Em fevereiro de 1893, publicou Missal (poemas em prosa) e em agosto do mesmo ano, Broquéis (poesias), introduzindo o movimento simbolista no Brasil, que se estenderá até o ano de 1922, quando adveio o movimento modernista. Casou-se, em novembro de 1893, com Gavita Gonçalves, negra como ele. Corria o mês de março de 1896, quando Gavita dá sinais de loucura e, diante da doença da mulher, que durou seis meses, Cruz e Sousa resolveu falar da sua loucura de uma forma diferente, com poesia. Também foi ele quem cuidou da esposa enferma na sua própria residência.
Pouco tempo depois, em 19 de março de 1898, com apenas 36 anos, o poeta morreu por conta do agravamento no seu quadro de tuberculose. No mesmo ano nasceu seu filho póstumo, João da Cruz e Sousa Junior, em 30 de agosto, que morreria em 1915, aos 17 anos. Seus outros três filhos morreram antes de 1901, ano em que morreu sua esposa Gavita. Em 1900, seu amigo Nestor Vitor organizou e publicou a coletânea denominada Faróis. A sua tragédia pessoal estendeu-se a toda a sua família.


PS.: Vale a pena ver o filme de Silvio Back, Cruz e Sousa - o Poeta do Desterro (ver trecho em: https://www.youtube.com/watch?v=QM9z7e6y8Ho). Veja também um bom documentário: (https://www.youtube.com/watch?v=z72-Gf6ch4c).

terça-feira, 17 de março de 2015

Sobre a palavra falada/cantada

Zildo Gallo




Um aedo era, na Grécia antiga, um artista que cantava as epopeias acompanhando-se de um instrumento musical. O mais célebre dos aedos é Homero que produziu duas obras insuperáveis da literatura mundial: Odisseia e Ilíada. Os aedos costumavam contar/cantar as suas histórias perante uma assembleia que participava de um banquete. A comensalidade também é muito antiga e sempre combinou muito bem com a poesia. O aedo era um poeta-cantador que percorria a Grécia cantando um repertório composto de lendas e tradições populares ao som de liras e cítaras.
Estes cantadores/contadores de histórias não são uma exclusividade da Grécia, eles existiram em muitas culturas. Os povos celtas tinham os seus bardos, que cumpriam a mesma função dos aedos, por exemplo. Todos os povos contam histórias, que passam de uma geração para outra. Essa é a origem primitiva da literatura. O verso cantado era um recurso mnemônico (de memória), muito importante em tempos de inexistência da escrita ou de muito poucas pessoas com acesso a ela. Poesia e música juntaram-se há muito tempo, harmoniosamente, para registrar a trajetória da humanidade, a sua luta, suas alegrias e dores e seus sonhos.
Não precisamos ir à Europa e voltarmos alguns milênios no tempo para entendermos o significado dessas manifestações. As tribos indígenas brasileiras, que ainda preservam as suas tradições, têm os seus cânticos onde os mais velhos passam aos mais jovens a história e a cultura do seu povo. Mas não são apenas os indígenas. O Brasil rural também tinha uma tradição oral onde muitas lendas e causos eram narrados à beira de fogueiras e fogões à lenha pelos aedos caboclos, trata-se daquilo que chamamos de folclore.
O Brasil rural. a partir dos anos 50 do século passado, começou um processo de definhamento e hoje, na segunda dezena do século XXI, a população rural significa apenas cerca de 15% da população total. No meio urbano a tradição oral definhou e praticamente sumiu. Hoje, a cidade é o lugar da linguagem escrita e dos meios de comunicação de massa. As narrativas vão se perdendo com o passar do tempo e, ironicamente, a melhor forma de recuperar, e preservar as nossas antigas histórias é pela escrita, pelo trabalho abnegado de alguns pesquisadores e artistas.
Quando um povo perde a sua memória ele perde a sua essência. A memória é o arquivo vivo da forma de ser de cada grupo social, sem ela o grupo perde o sentido e se deteriora. No Brasil temos exemplos aos montes, basta que olhemos para as muitas tribos indígenas que se "aculturaram" e abandonaram as suas tradições, simplesmente deixaram de ser o que eram, perderam a sua essência, as suas almas.
No nosso meio urbano é muito comum as crianças saberem sobre os gnomos, as fadas e duendes e saberem muito pouco ou nada sobre os nossos seres da floresta, como o Saci-Pererê, o Curupira, entre muitos outros. No antigo rural existiam histórias de saci aos borbotões. Nas cidades elas sobrevivem nos livros de Monteiro Lobato e nos quadrinhos de Ziraldo, na linguagem escrita. Perdeu-se a riqueza da variedade, infelizmente...
Preocupado com esta questão que aqui relato e com a importação cultural do "Halloween" dos Estados Unidos, em 2003, o deputado federal Aldo Rebelo, apresentou o Projeto de Lei 2762/2003, que propõe transformar o dia 31 de outubro no Dia Nacional do Saci-Pererê. Lembro-me que muitos o ridicularizaram. À primeira vista tal projeto poderia parecer sem importância, uma mera implicância ideológica, mas, de fato, não era. Consigo entender a sua preocupação. Para os defensores do "progresso" contínuo, do eterno "caminhemos para frente", as narrativas "ingênuas" podem parecer coisa de "gente atrasada", trata-se de uma forma fria e calculista de ver o mundo. Esses já perderam as suas almas, irremediavelmente, ou, melhor, venderam-na ao mercado, ao mundo dos mass media.

Para concluir, deixo aqui um trecho extraído do meu artigo "Sobre a memória: o mito grego e a arte nos dias de hoje", que resume, acho que resume, a minha intenção ao tentar escrever  um texto sobre a palavra falada/cantada (http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2015/02/sobre-memoria-o-mito-grego-e-arte-nos_3.html).

"Hoje, invocar as musas tem um significado muito profundo, trata-se de um resgate, de um religar-se às coisas do espírito. A humanidade tornou-se uma grande sociedade de consumo, colocando o acesso aos bens materiais, os novos bezerros de ouro, como objetivo central da existência. Assim, um povo que não preserva os seus patrimônios histórico, arquitetônico e cultural, nas suas mais diversas manifestações, "em nome do progresso", como se costuma dizer, como é o caso de boa parte do povo brasileiro, perde a sua melhor forma de transmitir a sua memória e, um povo desmemoriado, perde a sua alma.
Precisamos incentivar a criação artística, o resgate de antigas tradições culturais de caráter popular e trazer à lembrança as nossas lendas e "causos", resgatando o nosso folclore. No folclore a situação é grave. Esquecemo-nos dos nossos seres elementais como o Saci e o Curupira e importamos gnomos e duendes; nada contra eles, mas nós também temos os nossos guardiões da natureza e eles não podem e nem merecem ser esquecidos."

PS.: Vejam o meu artigo "Sobre a memória: o mito grego e a arte nos dias de hoje", neste blog.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Gestão de recursos hídricos: porque imitamos os franceses

Zildo Gallo

O estado de São Paulo inspirou-se na experiência francesa de gestão de águas para criar O Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos pela Lei 7663/91. Em nível federal, a Lei 9433/97 também inspirou-se nela. As experiências internacionais são balizas interessantes a serem observadas, pois são, em relação ao resto do mundo, mais antigas e têm obtido sucessos. A despoluição do rio Sena, na França, e do Tâmisa, na Inglaterra é o retrato disso.
A experiência internacional na gestão das águas é muito variada, sendo di­fí­cil a identificação de regras generalizantes. Entretanto, algumas características comuns tendem a se estabelecer como diretrizes necessárias ao estabelecimento de um bom sistema de gestão: a bacia hidrográfica como unidade administrativa, a cobrança pelo uso dos recur­sos hídricos e a participação dos usuários entre os res­ponsáveis pela gestão. Todavia, se por um lado existem grandes princípios a serem seguidos, por outro a forma como se estrutura a gestão está mais ligada às ca­racterísticas ambientais, às formas de uso das águas, ao histórico das experiências ins­titucionais do país, ao tipo de organização política e so­cial vigente etc.
De fato, no que se refere à gestão das águas, os países adotam arranjos insti­tucionais os mais variados possíveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, há grande diversi­dade de arranjos. Lá, as comissões de bacias tanto po­dem ser fruto de composições entre Estados e Federação, como entre agências de bacias, totalmente locais ou ainda totalmente federais.
Japão e a Holanda também adotam arranjos diversos. Nestes dois paí­ses, a altíssima importância atribuída aos recursos hídricos acabou implicando na instituição de diferentes níveis de centralidade da gestão. O Governo Central Holandês atribui a si mesmo a responsabilidade pelos rios nacionais e internacionais e canais relevantes, como o de Amsterdã, por exemplo. Cursos d’água menos importantes são gerenciados pelas províncias, que podem delegar responsabilidades a agências regionais. Existem, ainda, organizações autônomas e locais. No Japão as agências podem estar vinculadas ao go­verno central ou às prefeituras, conforme a importância do curso d’água.
É importante notar que, de qualquer maneira, apesar da diversidade, prevalece uma tendência, não muito recente, de se estruturar sistemas que permitem a gestão de forma regio­nalizada, por bacias hidrográficas. Isso tem propiciado na França, por exemplo, considerável autonomia financeira e política às agências regionais de gerencia­mento das águas.
A experiência alemã na gestão das águas: o caso da bacia do Ruhr - Na Alemanha, ao contrário da França, como se verá mais adiante, não existe um único formato para todo o país para a gestão dos recursos hídricos. Apenas no Estado do Norte do Reno-Westfália (Nordeshein-Westfalen) são encontradas instituições semelhantes a da França. As asso­ciações de bacias, nesse Estado, remontam ao início do século XX, sendo a do rio Emscher fundada em 1904 e a do Ruhr em 1911. A legislação atual do Norte do Reno-Westfália obriga os usuários à participação nas associações e ao cumprimento com as obrigações dos pagamentos pelo uso das águas. A co­brança pelo uso das águas dá-se tanto pelo lançamento de efluentes como pela derivação de água pelos usuários. Os recur­sos arrecadados destinam-se às associa­ções de bacia, que são autarquias controladas pelo governo estadual, mas que são dotados de autonomia administra­tiva.
Nos outros estados da Alemanha, a água derivada não é objeto de co­brança, ape­nas o lançamento de efluentes é onerado. Os recursos auferidos são revertidos ao estado, para um fundo específico, cuja utilização vincula-se a pro­gramas de despoluição. Esses recursos são, então, emprestados aos municípios e consór­cios de municípios, que são responsáveis pelo tratamento de esgotos. A reunião de municípios em consórcios é necessária para me­lhorar a efi­ciência econômica e gerencial dos projetos, obras e ações.
O Ruhrverband, associação da bacia do rio Ruhr, ao contrário da agência de bacia francesa, executa obras, opera reservatórios e estações de tratamento, respon­sabiliza-se pelo controle e monitoramento de efluentes etc. São associados do Ruhrverband todos os que poluem a bacia do Ruhr, assim como as empresas públi­cas de abastecimento de água. Internamente ele está estruturado em departa­mentos e seções para projetar, supervisionar construções e operar todas as instala­ções téc­nicas.
O Ruhrverband desenvolve seu sistema de cobrança pelo uso da água há dé­cadas, distribuindo os custos da associação entre seus associados, de acordo com a poluição causada ou conforme os benefícios recebidos, como no caso das empre­sas públicas de abastecimento de água. A partir de 1976, foi criada uma tarifa fede­ral de efluentes a ser paga por todos os proprietários de estações de tratamento de efluentes. A taxa é paga de acordo com a poluição residual do efluente e, sobre ela, é necessário tecer alguns comentá­rios: ressalta-se que não se compra uma licença para poluir ao pagar a taxa de lançamento de efluentes; requisitos mínimos de qualidade deverão ser cum­pridos em todos os casos, em todo o território alemão; há apenas a pos­sibilidade de se negociar o período de tempo a ser concedido a determi­nada empresa para que ela adapte ou expanda suas instalações a fim de alcançar os pa­drões obrigatórios; em caso de águas receptoras sensíveis, as condições pode­rão ser bastante  rigorosas.
A experiência francesa na gestão dos recursos hídricos - Na França, assim como no Brasil vários órgãos e instituições atuam na área dos re­cursos hídricos. O Ministério do Meio Ambiente é responsável pelo planeja­mento e regula­mentação, cuidando da compatibilização do desenvolvimento eco­nômico com o meio am­biente e a gestão das águas. Outros ministérios também atuam, ainda que setorialmente, sobre as águas, como Saúde (normas sanitárias), Transporte (navegação) e Indústria (eletricidade).
Todos os protagonistas que atuam na questão das águas, os municípios, a indús­tria, os agricultores, o turismo, a pesca profissional e amadora, as associações preserva­cionistas, com seus distintos interesses podem se expressar graças aos dispositivos da Lei das Águas, de 12 de dezembro de 1964. Devido a esta legisla­ção a França dispõe hoje de um sistema de gestão descentralizado e eficaz.
Até o começo dos anos 1960, a gestão francesa dos recursos hídricos ba­seava-se num conjunto de textos e regulamentos que se transformaram, ao longo dos anos, num labirinto jurídico. Havia uma grande dispersão de responsabilidades, assim como no Brasil e no Estado de São Paulo. A regulamentação sobre o combate à poluição era incompleta, esparsa e setorial. Havia, até mesmo, contra­dições entre as ações de diferentes administrações, o que não permitia encontrar solução para alguns problemas.
A crescente diminuição de fontes de abastecimento com qualidade ade­quada, pro­vocada pelo aumento substancial dos poluentes, obrigou o legislador a modificar esse sistema de gestão. Naquele tempo, duas opções foram analisa­das: 1) ignorar a organização administrativa anterior e entregar a gestão a uma única adminis­tração nova, dotada dos instrumentos regulamenta­res necessários ou 2) manter a organiza­ção anterior para o essencial e criar dispositivos inovadores para dar à gestão dimensões técnica, política, econômica e financeira, simultaneamente. A segunda opção foi adotada pela Lei das Águas de 1964.
A nova dimensão técnica consiste em administrar as águas não mais seto­rialmente, mas considerando seus problemas em nível de bacia hidrográfica. A dimensão política consiste em se decidir os trabalhos de despoluição necessários pelos próprios usuários dos recursos hídricos, agrupados em organismos denomi­nados comitês de bacias. A dimensão econômica e financeira busca incitar à despoluição através do princípio poluidor-pagador: os poluidores são penalizados por cotizações obrigatórias a um fundo de investimento, onde os encargos são fixados em função dos trabalhos a realizar e dos inconvenientes que sua poluição ocasiona; os que executam os trabalhos de despoluição são financiados por esse fundo. Co­mitês de bacia e agências da água foram criadas em cada uma das seis grandes bacias hidrográficas francesas: Adour-Garonne, Loire-Bretagne, Rhône-Mediterra­née-Corse, Siene-Normandie, Artois-Picardie e Rhin-Meuse.
O comitê de bacia é o organismo que decide a política da água a vigorar na bacia. Trata-se de um “Parlamento das Águas”, que se organiza da seguinte forma: 20% dos membros são representantes do estado e os outros 80% são repre­sentantes dos municí­pios e dos usuários dos recursos hídricos, seja como consumi­dores ou como poluidores.
A agência da água é uma entidade pública descentralizada e dotada de auto­nomia financeira. A sua finalidade é dar suporte técnico e financeiro ao comitê e às empresas, públicas ou privadas, que executam serviços, operações e obras necessá­rias ao controle da poluição. A gestão de cada agência está a cargo de um conselho de administração indicado pelo comitê. Os seus recursos financeiros provêm da cobrança pelo uso das águas, que se dá na proporção da água utilizada e pela contaminação produzida no meio receptor.
A cobrança pelo uso da água é, no sistema francês, um instrumento im­por­tante na política de luta contra a poluição das águas. Sua originalidade está em estimular os que poluem a observar o interesse coletivo, dando-lhes condições de opinarem sobre o destino dos recursos arrecadados. Outra originalidade está em garantir a obtenção de um recurso estável para o financiamento dos programas. Uma terceira originalidade está na criação de um gerente único e independente da administração do estado.
Existem poucas controvérsias a propósito de o modelo francês ser a princi­pal fonte de inspiração dos sistemas institucionais que estão em implantação no Brasil, seja a con­formação geral delineada pela Lei Nacional no 9.433/97 ou as variações sobre o tema aplicadas pelas unidades federativas, à luz de suas especifi­cidades regionais. A formação de comitês de bacia e de agências de água adquiriu uma grande força; tornaram-se unani­midade, o que sem dúvida, com o passar do tempo deverá contribuir para o sucesso o modelo de gestão das águas, no Brasil e no Estado de São Paulo.
Considerações finais - Em relação ao planejamento do uso dos recursos hídricos, pode-se dizer que ele foi marcado, até a década de 1980, pela forte centralização e pela excessiva setorização, como era na França até 1964. Os planos tinham a sua eficácia comprometida pela parcialidade dos enfoques que os geravam, dado que acabavam desconsiderando os conflitos sociais, econômicos e políticos que sempre acompanham o uso das águas. Não resultavam de negociações entre os diversos usuários das águas.
A forte centralização do poder de decisão no Brasil começou a ser rompida com a Constituição de 1988. Contudo, não se completou, ainda o ciclo de adaptação do aparato institucional. Os municípios e as regiões ainda não assumiram de forma integral as atribuições normativas e fiscalizadoras que agora lhes são permitidas e a sociedade civil ainda tem uma participação muito tímida.
A partir do novo quadro legal, que possibilita novos arranjos institucionais, começa a se construir uma nova forma de planejar a economia e o uso dos recursos naturais, entre eles os recursos hídricos. A nova forma pressupõe uma postura democrática e, portanto, deverá estar alicerçada em mecanismos institucionais de articulação de órgãos públicos (municipais, federais e estaduais) e de representantes de toda a sociedade. Assim, o planejamento não deverá ser apenas a concretização de trabalhos técnicos bem estruturados , mas também o resultado de debates e negociações com os diversos setores sociais e econômicos.
A participação pública e dos atores sociais é uma ferramenta extremamente importante nas tomadas de decisão e na diminuição dos conflitos inerentes ao processo de gestão integrada dos recursos hídricos. A participação oferece a comunidade à oportunidade de exercer seus direitos, assim como, de reconhecer suas responsabilidades. A participação nos Comitês de Bacia são a garantia de que os interesses da maioria estarão garantidos e de que as melhores decisões possíveis serão adotadas.
Em 25 de agosto de 1993, em cumprimento à Lei 7663/91, no Estado de São Paulo, foram empossados os integrantes do CRH - Conselho Estadual de Recursos Hídricos. Em novembro do mesmo ano foi implantado o primeiro Comitê de Bacia, o Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. A implantação do comitê consistiu num marco da estrutura da Política Estadual de recursos Hídricos. A partir, os demais comitês foram paulatinamente sendo implantados e, paulatinamente, a descentralização da gestão das águas começou a se efetivar. Também, aos poucos, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos vai sendo implantada, seguindo os passos da experiência francesa.
Referências
GALLO, Zildo. A defesa da qualidade das águas da bacia do rio Piracicaba: o papel da CETESB e de todos nós. 2000. Tese (Doutorado) – Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. 222p.
______. A proteção das águas, um compromisso do presente com o futuro: o caso da bacia do rio Piracicaba. 1995. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995. 151p.

sábado, 14 de março de 2015

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ETHOS, A GRANDE MORADA HUMANA: economia, ecologia e ética

                                                                                                                             Zildo Gallo

SINOPSE

É cada vez mais necessária e urgente a construção de uma ética planetária. É preciso fundar um novo ethos para garantir doravante o convívio entre os homens e destes com a natureza.
Então, a aproximação entre a ética e a economia também é cada vez mais necessária. O objetivo primordial do sistema econômico deveria ser, na sua essência, ético: o bem-estar.
Como ainda tem muita pobreza no mundo, podemos concluir que, por muitos anos ainda, o crescimento da economia deve continuar necessário. Contudo, ele não pode se dar nos antigos moldes, concentrando renda e destruindo o meio ambiente.
O compromisso da economia como ciência e como prática também deve ir além do exclusivo bem-estar dos homens, devendo considerar todos os demais seres que vivem na Terra.
A crise ambiental que o planeta vive hoje, com consequências ainda não tão previsíveis, leva-nos a concluir que a morada humana não pode mais se limitar ao estado-nação, ela deve se estender por toda a Terra.
O mundo globalizou-se e com ele os problemas. Cada questão de cada canto da Terra virou um problema de cada um de nós, que pensa, produz e consome. Hoje, como em nenhuma outra época, nossa casa global exige que estejamos sempre atentos às consequências dos nossos atos ao produzirmos e consumirmos. É disso tudo que trata este livro.
               
GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.

Exemplares à venda, contato com o autor:


Valor: R$ 17,00 mais despesa de correio (forma de pagamento combinada no e-mail)




sexta-feira, 13 de março de 2015

Ética e meio ambiente: um debate necessário

Zildo Gallo


A ecologia como área do saber nasceu na segunda metade do século XIX com Ernest Haeckel, que utilizou esta palavra para identificar uma ciência que estudasse as relações da imensidão de organismos com o meio ambiente. O termo ecologia não se refere hoje a uma ciência única. Com o agravamento das questões ambientais no século XX e com o surgimento ambientalismo no ­correr das décadas de 1950, 1960 e 1970, muitas outras ciências passaram a incorporar as questões ecológicas nas suas preocupações.
Um dos problemas do pensamento ecológico é o tratamento dispensado ao ser hu­mano. É comum ouvir-se que o homem destrói a natureza. Con­tudo, não é o homem enquanto categoria genérica que o faz. Ele o faz sob determinadas formas de organização social, dentro de uma determinada cultura. Por exemplo, os indígenas convivem mais harmoniosamente com a natureza do que os moradores de uma metrópole in­dustrializada.
O ser humano é um animal que produz cultura. Ele cria normas e instituições a partir de estímulos ambientais e das relações com os semelhantes e, assim, acaba criando a sua própria natureza. Ele tam­bém sobrevive e se expande nos mais distintos e, às vezes, hostis ecossistemas, adaptando-se a eles e moldando-os conforme as suas necessidades. Toda sociedade, a partir da cultura, desen­volve uma ideia particular do que é a natureza. Então, o conceito de natu­reza não é natural, ele é criado e instituído pelos homens. Para a sociedade atual, em particular a oci­dental, a natu­reza contrapõe-se à cultura. A cultura sempre é considerada superior e, por isso, consegue (deve) controlar a natureza.
Então, a partir da sua cultura, o homem coloca-se acima da natu­reza, acima dos demais seres que nela e com ele convivem. Trata-se de um pro­cesso de sepa­ração que coloca a natureza à sua disposi­ção, a seu serviço. Todo mundo já ouviu expressões do tipo “o homem é um animal social”, distinguindo os homens dos outros animais. Ocorre que a vida social não é um privilégio da humanidade. A sociabilidade está presente de forma ampla no mundo animal. Esta atitude arrogante tem criado um fosso profundo entre a sociedade dos homens e a natureza. Ela tornou-se estranha ao homem, que se acredita realmente dela separado. Na sua mente ela deixou de ser a sua morada, pois a sua casa passou a ser apenas a natureza por ele modifi­cada, uma natureza “construída”.
Nos últimos séculos, a justificativa dada para o avanço técnico e para a in­dustrializa­ção, que implicam em grandes modificações ambientais, tem sido a elevação do consumo. O consumismo legitima-se e penetra no inconsciente coletivo da população, onde chega a se confundir com o desejo de liberdade. Ser livre é poder apropriar-se da natureza, transformá-la em bens de consumo e consumi-la. Em rela­ção à natureza consolida-se, com a aceitação deste conceito de liber­dade, uma ética utili­tarista. A natureza está aí para ser usada, ela vira “recurso natural” que será trabalhado (modificado) pelo “recurso humano”, para que os consumidores livremente con­sumam. Aí surge uma questão ética: esta liberdade não é para todos, é para quem pode comprá-la. A exclusão por falta de renda, aquilo que o economista Keynes chamou de “demanda efetiva”, é um dos pontos fracos deste modelo de civilização. Outro ponto fraco é a destruição acelerada dos recursos naturais, que já atinge dimensões catastróficas.
Foi a partir dos anos 60 do século XX que esta visão de mundo, ba­seada num crescimento indefinido do consumo, começou a ser contestada. Os movimentos contraculturais, ecológicos, feministas, entre outros, e também os contatos com religiões e filosofias orientais expuseram à luz do sol a grande crise ética da sociedade ocidental. Acontece que ainda não surgiu, pelo menos de forma abrangente, uma nova ética para que, a partir dela, se conceba uma nova civilização.
Como o mundo, em particular o ocidente, pode superar a visão separatista e utilitá­ria que tem da natureza? Como é possível estancar o processo progressivo de destrui­ção da natureza que se iniciou na Revolução Industrial, no século XVIII, e que, a partir daí, se aprofundou? Não existem respostas prontas, mas várias concepções conflitantes.
Para o pensamento liberal, a competição é "naturalmente" boa para a economia. Esta forma de ver o comportamento econômico, que sobrevaloriza a competição e minimiza o papel da coope­ração, pode ser perigosa, pois pode conter uma ética neodarwinista implícita, que afirma que o mais forte vence e tem o di­reito “natural” sobre o que conquistou. Trata-se de uma visão ideologizada da luta pela vida que há na natureza. As questões que envolvem a luta pela propriedade privada da terra, por exemplo, nunca foram resolvidas com tranquilidade, sempre estiveram envoltas em muita violência.
O teólogo e filósofo Leonardo Boff chama esta competição exacerbada de paradigma con­quista. Para ele, tal paradigma, que foi necessário para a expansão da humani­dade há milênios atrás, entrou em grave crise nos dias de hoje. O homem precisa parar de conquistar para não destruir tudo e entrar noutro para­digma, o paradigma cuidado, para continuar a sua trajetória e para reparar os danos provocados por suas con­quistas.
Hoje, muitos liberais acreditam que a tecnologia pode resolver os problemas ecológicos e, neste sentido, são defensores das chamadas “tecnologias limpas”. Acreditam também que a pobreza pode ser diminuída com mais crescimento econômico, ações assistenciais e diminuição do crescimento populacional. Eles também defendem ações corretivas, tais como: diminuição gradual da emissão de CO2; uso de energias limpas; certificações ambientais; reciclagem de resíduos; aperfeiçoamento da legis­lação e das ações de controle ambiental. Apesar des­tes avanços no seio do liberalismo, avanços bem vindos e necessários, os liberais ainda não questionam em profundidade o modelo econômico acentuadamente competitivo que defendem, partindo da compreensão dos seus efeitos mais dano­sos: a elevada concentração da riqueza, a exclusão social e a enorme degradação ambiental, inclusive.
À esquerda, os novos socialistas, pós queda do socialismo do tipo soviético, por sua vez, tecem criticas aos valores predominantes no mundo globalizado. Para eles: a sociedade não pode se estruturar às cegas a partir da globalização econômica; há que se repensar os modos de vida que se balizam apenas pelas rela­ções mercantis; os impactos sobre o meio ambiente resultam de uma noção de progresso e de ciência já superados, que vem das revoluções Científica e Industrial; deve-se questionar a intocabilidade da propriedade privada, do livre mer­cado e do lucro como principal motivo da produção; é preciso defender as "minorias" contra o racismo e os preconceitos; é preciso enfrentar o patenteamento da vida e a propriedade intelectual privada, com destaque para biodiversidade; é preciso lutar pela reforma agrária e por políticas agrícolas ecologicamente corretas; o novo socialismo deve buscar a real democracia, a participação popular, a descentrali­zação do poder, a solidariedade e o respeito à diferença; é necessário impor regras à atuação do capital internacional, diminuir a má distribuição das riquezas e; também, criar formas de participação social nas empresas e na economia.
Os liberais e os novos socialistas colocam-se em extremos antagônicos. Num estado de direito efetivamente democrático, o debate e o diálogo entre os dois grupos pode ser muito profícuo do ponto de vista da busca por soluções possíveis, que possam dar-se de formas minimamente consensuais. Uma democracia altamente participativa é essencial.
Além dos liberais e dos novos socialistas, existem vários pensadores que têm opiniões mais ou menos convergen­tes. O ponto de partida deles é a crítica ao tipo de civilização construído a partir do desenvolvi­mento econômico baseado na ciência e na indústria. Preocupam-se com os desequilíbrios que ocorrem com os seres humanos e a natureza por conta desse tipo de desenvolvi­mento. Tais autores buscam uma visão holística, integradora, que religue harmo­niosamente os homens com o meio natural. Eles buscam a estruturação de uma ética holística.
O desenvolvimento da razão científica e instrumental, um produto do Ocidente, distancia o homem da natureza e facilita para ele a assunção de uma atitude dominadora em relação a ela. Assim, ele subordi­na o ambiente à sua vontade. O objetivo maior da corrente holística é recuperar a integridade do ser humano, refazendo a sua relação com a natureza. As primeiras fontes desta corrente são do início do século XX, quando o Ocidente começa a receber influên­cias do pensamento oriental. A partir da década de 50, com os movi­mentos contraculturais, o aumento da crise ambiental e a ameaça nuclear, esta cor­rente visibilizou-se. O seu pensador mais conhecido no mundo é o físico e ecólogo Fritjof Capra. No Brasil destaca-se o filósofo e teólogo Leo­nardo Boff.
Para Capra, a ecologia abrange um vasto campo. Ela pode ser praticada como ciência, como filosofia, como política e até como estilo de vida. Enquanto filosofia ela é conhecida como “ecologia profunda”, que se trata de uma escola fundada pelo filósofo norueguês Arne Naess no começo dos anos 70 do século passado. Naess distinguiu  a ecologia “rasa” e a “profunda”. A ecologia rasa é antropocêntrica e coloca o homem acima da natureza e a profunda não aparta o homem da natureza.
Capra considera que o arcabouço científico mais adequado para o estudo da ecolo­gia é a teoria dos sistemas vivos. A teoria dos sistemas trata-se de uma nova maneira de ver o mundo e também uma nova forma de pensar, conhecida como pensamento sistê­mico, que significa pensar a partir de relações. Esta teoria diz que todos os sistemas vivos compartilham propriedades e princípios organizacionais comuns. Os ecossistemas são teias alimentares (redes de organismos); os organismos são redes de células e as células são compostas por redes de moléculas. Para ele. a vida na sociedade humana também pode ser compreendida em termos de redes, mas se trata de uma rede de comunicações:
À medida que as comunicações acontecem em uma rede social, elas acabam produzindo um sistema compartilhado de crenças, explicações e valores – um contexto comum de significados, conhecido como cultura, que é susten­tado continuamente por novas comunicações. Através da cultura, os indiví­duos adquirem identidades, como membros da rede social (CAPRA, 2005).
O pensamento sistêmico implica numa mudança de enfoque de ob­jetos para relações. Trata-se de uma ruptura com o modo cartesiano de ver o mundo e seus fenômenos. A divisão entre espírito e matéria que aconteceu após o “cogito, ergo sum” (penso, logo sou) de Descartes levou à concepção do universo como um sistema mecânico, que é composto por partes separadas que podem ser analisadas sepa­radamente. A ciência que foi produzida no Ocidente, com esta divisão, criou atitudes antiecológicas. A razão ocidental é linear e frag­mentada e os sistemas ecológicos são redes dinâmicas não lineares. Esta racionalidade não capta a complexi­dade dos sistemas vivos e o resultado disto pode ser visto nas tragédias ambientais que se espalham por todo o planeta.
Leonardo Boff, ao analisar a modernidade científica e técnica, descobre por detrás dela o funcionamento de uma determinada filosofia: o “realismo materialista”. Ele a chama de realismo porque ela parte do ponto de vista de que as realidades existem independentes dos observadores. Para ele, não tem objeto sem sujeito e sujeito sem ob­jeto. Também a chama de materialista porque pressupõe que a matéria é a única realidade existente. Contudo, ele avalia que hoje a situação mudou, pois:
A física quântica demonstrou a profunda interconexão de tudo com tudo e a li­gação indestrutível entre realidade e observador; não há realidade em si, desco­nectada da mente que a pensa; ambas são dimensões de uma mesma realidade complexa. O universo é consciente. A moderna cosmologia de­monstrou que este universo é matematicamente inconsistente sem a existência de um Espírito Sagrado e uma Mente infinitamente ordenadora (BOFF, 1999).
Boff considera que a nova filosofia deve ser holística, ecológica e espiritual. Ela deve ser uma alternativa ao realismo materialista. Depois de séculos de cultura material é chegada a hora de buscar uma espiritualidade sólida e simples, que deve basear-se na percepção dos mistérios do universo e dos seres humanos. Esta espirituali­dade também deve sustentar-se numa ética de responsabi­lidade, de solidariedade e de compaixão. Para ele, o bem comum não pode ser concebido apenas a par­tir do homem. A natureza e os seus ecossistemas também de­vem ser conside­rados. O bem comum deve ser de toda a comunidade terrestre com quem o homem com­partilha o seu destino:
A economia política não pode cuidar apenas do bem-estar material dos se­res humanos, mas de todos os demais seres que precisam ter água não contaminada, solos não envenenados, ar despoluído e nutrientes de quali­dade. Sem essa amplia­ção da democracia, que será então sociocósmica, o nosso bem comum não será suficiente nem adequado (BOFF, 2003).
Pelizzoli (2002) considera a importância da grande contribuição do filósofo e ecólogo Hans Jonas. Ele avalia que a sua postura é bastante ética, pois ele se preocupa com a necessidade de conter a força descontrolada dos homens. Jonas fala, em O Princípio Responsabilidade (1995), de uma nova dimensão para a responsabilidade humana, que vai além da responsabilidade com os semelhantes, estendendo-a para toda a natureza. Também ele se lança contra a visão cartesiana: a ideia de que a natureza existe por si, que ela é o que pode ser medido, cortado e modificado não pode mais prevalecer. Em O Princípio Vida, onde fala da natureza e da ética, Jonas conclui que apenas “uma ética fundamentada na amplitude do ser, e não apenas na singularidade ou peculiaridade do ser humano, é que pode ser de importância no universo das coisas” (JONAS, 2004).
A ética ambiental pode alimentar-se de muitas fontes, como das escolas filosóficas, como a Escola de Frankfurt, que dá preciosas contribuições, e das várias religiões, entre elas o budismo, o cristianismo e o taoismo, por exemplo, que têm muitas contribuições a dar. Mas, para fechar este assunto, é bom falar aqui da relação entre a ética ambiental e a hermenêutica. A palavra hermenêutica vem do grego e significa interpretar. Ela deriva de Hermes, o mensageiro dos deuses, criador da linguagem e da escrita. Para Pelizolli (2002), a hermenêutica implica que, antes de se conseguir uma explicação sobre as coisas, que é a base do proceder científico atual, deve-se, antes, compreendê-las em profundidade. O aprofundamento é necessário porque a investigação sobre uma realidade objetiva sempre é passível de interpretações subjetivas. Esta compreensão profunda é necessária porque o procedimento meramente cartesiano pode ser restritivo, deixando de fora elementos que não cabem nos limites de uma determinada teoria ou nos moldes de uma experimentação laboratorial.
Uma postura hermenêutica sobre a ecologia serve para aprofundar a compreensão dos problemas causados pelo cartesianismo. Também serve para desmistificar a ideia de progresso sem fim através da dominação da natureza. Essa postura chama as diversas correntes ambientais a dialogarem, trocarem experiências e buscarem pontos comuns, na tentativa de se construir um mundo melhor para todos, humanos e não humanos.

Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2003.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999.
CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: o desafio para a educação do século 21. In: TRIGUEIRO, André (coord.). Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da ques­tão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Campinas, SP: Ar­mazém do Ipê (Autores Associados), 2005.
GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.
JONAS, Hans. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004.
JONAS, Hans. El principio reponsabilidad. Barcelona: Herder, 1995.
PELIZZOLI, Marcelo L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.


domingo, 8 de março de 2015

O Dia Internacional da Mulher e a necessidade de resgatar os valores femininos

Zildo Gallo
Na sociedade estratificada do mundo civilizado, onde existem os muito ricos e os muito pobres, encontramos também vários outros tipos de estratificação, onde se repete a dicotomia entre "os de cima" e os "de baixo", que acaba dividindo os grupos sociais entre "incluídos" e "excluídos". Os de alta rendas estão em cima e os de baixa renda estão em baixo; os brancos (caucasianos) estão em cima e os negros (afrodescendentes) e índios estão em baixo; os heterossexuais estão colocados acima e os homossexuais abaixo e, ainda; os seres humanos do sexo masculino continuam no "andar de cima" e os do sexo feminino no "andar debaixo". Além destas divisões encontramos outras: as ligadas às religiões; às nacionalidades; ao nível de escolaridade etc. Etc. mesmo, pois os seres humanos são mestres em produzir divisões, em criar grupinhos. É muita divisão para uma única humanidade.
A primeira e grande divisão da humanidade é a de caráter biológico, entre o sexo masculino e o sexo feminino. Trata-se de uma divisão natural, diferente das outras citadas acima que têm origens socioculturais. A bipolaridade que encontramos no universo material, que se expressa, inclusive, no nível atômico, com a divisão entre prótons (com carga positiva) e elétrons (com carga negativa), é encontrada na biologia, com a divisão entre macho e fêmea. Sem a combinação entre prótons e elétrons, que são antagônicos e também complementares não haveria a matéria como a conhecemos e, muito menos, o universo com as suas galáxias e seus sistemas solares. Sem a complementaridade entre masculino e feminino, a vida poderia ser composta majoritariamente por vírus, por muitos seres unicelulares e vários tipos de fungos. A vida superior, incluindo aí os seres humanos, não seria possível. Não existe uma hierarquia, neste caso, ambos, masculino e feminino são necessários, o que existe é uma condição de efetiva e necessária igualdade.
Diante do exposto até aqui, afirmo: pensar em superioridade e inferioridade entre os gêneros é, no mínimo, estupidez e, no máximo, alguma expressão impublicável (escolha a expressão, à vontade). Todavia, em relação aos seres humanos uma diferença foi criada; trata-se de uma criação sociocultural, apenas sociocultural. Entretanto, muitos ainda acreditam que, do ponto de vista biológico, os homens nasceram melhor aquinhoados. Muitos, raciocinando no limite inferior das suas capacidades, não enxergando além da sua própria massa corpórea, acreditam que a força física os diferenciam. No mundo de hoje, onde as máquinas há muito tempo substituíram a força física nas tarefas mais pesadas, pensar assim é minimamente ridículo, pois a força bruta, que foi valorizada em outros tempos, hoje significa muito pouco, muito pouco mesmo. É muita ignorância e o nosso planeta ainda está lotado de ignorância, infelizmente...
A partir da introdução um tanto azeda que fiz acima para o meu artigo em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sigo na construção do mesmo, pretendendo lançar luzes sobre o porquê da brutal inferiorização e violência sofridas pelas mulheres durante milênios da trajetória humana no planeta Terra. É possível entender esta barbaridade, acreditem.
Entre 2011 e 2012, participei de um grupo de estudos sobre ecologia profunda, na UNIARA (Centro Universitário de Araraquara), onde leciono no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado). Por conta das nossas ricas discussões, escrevi um texto para análise do grupo, onde falo sobre as três grandes sombras que acompanham a humanidade desde os primórdios da civilização, três elementos basilares do patriarcado: 1) a exploração do trabalho alheio (escravatura, jornadas abusivas, baixos salários, trabalho infantil, insalubre etc.); 2) a violência contra a mulher, nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, violência física, exploração sexual, exploração econômica etc.); 3) a concentração da propriedade e da renda por poucos em detrimento da maioria. Vou tratar aqui, com mais detalhe, o detalhe possível num artigo relativamente pequeno, da sombra que ainda paira sobre o mundo feminino.
Na pré-história (paleolítico e neolítico), os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois, nas tribos, ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Nos primórdios das cidades, com o enfraquecimento das sociedades tribais, a situação se modificou. Surgiu o trabalho escravo, o patriarcado e o casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos, e, aos poucos, firmou-se a propriedade privada, os fragmentos de territórios apropriados e dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade trevosa que comanda a humanidade desde então.
Apesar de tudo, precisamos ser indulgentes com a humanidade: numa situação indefesa, com conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é compreensível o surgimento da tríade obscura. Para sobreviver num ambiente hostil, os humanos precisaram arrojar-se, tornar-se fortes e agressivos. A batalha pela sobrevivência acontecia todos os dias. Os humanos tornaram-se hábeis caçadores e desenvolveram armas úteis tanto para a caça como para a defesa. Tiveram que aprender a conviver com os fenômenos naturais agressivos e sobrepujá-los. Com o fortalecimento da família monogâmica e patriarcal, nos primórdios da civilização, a questão central da luta humana passou a ser a sobrevivência das famílias nas cidades. Nas tribos importava mais acentuadamente a sobrevivência do coletivo dos seus membros, a sobrevivência da própria tribo. A civilização acabou estreitando a ideia de coletividade, entendendo-a como um conjunto de famílias, o que se trata de uma redução simplista, que serviu para justificar a exploração do homem pelo homem. O teólogo e filósofo Leonardo Boff denominou esse primeiro momento da trajetória da humanidade de paradigma conquista.
Contudo, com o passar do tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da expansão crescente do conhecimento sobre a natureza e dos avanços da tecnologia. Ela tinha tudo para deixar de lado essa competição insana, mas acabou entrando num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não proprietários, entre homens e mulheres e entre as diversas nacionalidades tornou-se uma constante. A guerra, violenta ou subliminar, tornou-se a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que nem tudo dava para todos, embalada no medo permanente de uma possível escassez. As mulheres foram as que mais perderam nessa trajetória, pois elas praticamente se transformaram em propriedade dos homens, alienando a sua liberdade e a sua criatividade. A partir da civilização o mundo tornou-se essencialmente masculino e isso se cristalizou, transformou-se num tipo de vício, um vício difícil de ser largado.
Hoje, no século XXI, a inferiorização da mulher ainda é muito presente e, em muitos países, ela chega à beira da irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil de exploração da mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o corpo feminino transformou-se em valiosa mercadoria. Só um exemplo, tem muitos: as revistas eróticas são um grande negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o inverso do que acontece nas fábricas e nas fazendas. O mercado produziu uma grande façanha: transformou a liberdade sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século passado, em mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a sexualidade humana continuam, ainda hoje, envoltas por uma grande sombra.
Hoje a humanidade precisa e tem plenas condições de superar o paradigma conquista, em função das imensas conquistas no campo da ciência e da produtividade da economia. Entendo também que a necessidade de mudança paradigmática passa com maior ênfase pela questão de gênero e que esta questão é, em última instância, espiritual, pois se trata de uma mudança profunda na forma de ser dos indivíduos e da sociedade. Acredito mesmo que a centralidade das questões contemporâneas está nas disputas, que remontam a ancestralidade do homo sapiens, entre os sexos masculino e feminino, no sentido de que prevalece até os dias de hoje uma compreensão majoritariamente masculina da realidade.
Para facilitar a compreensão do que quero dizer, lanço mão da milenar filosofia chinesa. Os chineses enxergam o universo como uma relação, uma relação de duas forças antípodas e, ao mesmo tempo, complementares. Basta observarmos a natureza, esta é a sabedoria chinesa: para que exista o frio tem que haver o quente, para o molhado há o seco, para o mole tem o duro, para o claro tem o escuro, para o triste tem o alegre, para o bom tem o ruim etc. De forma bem simples, eles dividem tudo e todos os fenômenos em dois grandes blocos: YIN e YANG (veja a figura abaixo).


Na figura são visíveis dois peixinhos do mesmo tamanho, harmoniosamente encostados um no outro. Um é branco e representa o aspecto solar masculino e o outro é preto e representa o aspecto lunar feminino. Um detalhe importante: O peixe branco tem um olho preto e o preto tem um olho branco, significando que o masculino também possui elementos do feminino e que o feminino também contém elementos do masculino, sugerindo uma complementaridade perfeita, apesar de todo o antagonismo. As características de Yin e Yang são opostas e complementares, como se pode ver no quadro abaixo.

UNIVERSO BIPOLAR
YIN
YANG
FEMININO
MASCULINO
CONTRÁTIL
EXPANSIVO
CONSERVACIONISTA
EXIGENTE
RECEPTIVO
AGRESSIVO
COOPERATIVO
COMPETITIVO
INTUITIVO
RACIONAL
SINTÉTICO
ANALÍTICO

Pelo quadro vemos que Yin, que representa o feminino, tem atributos opostos a Yang, que representa o masculino. Na sua conturbada trajetória, com destaque para os tempos pretéritos, a humanidade lançou mão com mais vigor dos atributos masculinos por conta do paradigma conquista, focando mais a necessidade de sobrevivência, e acabou obliterando os femininos, inclusive com a própria inferiorização da mulher, guardiã das energias Yin. A humanidade tornou-se majoritariamente Yang: agressiva, competitiva, racional, expansionista etc.
Neste altura da história da humanidade, com tranquilidade, podemos concluir que, em última instância, as crises econômica, social e ambiental, vividas em todo o mundo, decorrem do desbalanceamento das duas energias primordiais, com a balança pendendo para o lado Yang, o que reforçou e ainda reforça o paradigma conquista. A sobrevivência da humanidade enquanto tal, depende da transição para um novo paradigma, o paradigma do cuidado. É preciso diminuir a competição e aumentar a cooperação, é preciso diminuir a agressão e aumentar a aceitação e assim por diante. E, o que é de muita importância, neste mundo conduzido pela ciência: é preciso dar vazão às outras formas de percepção da realidade, possibilitadas pela intuição, que é a contraparte feminina da racionalidade masculina. O começo da caminhada para o paradigma do cuidado é o resgate da dignidade feminina, uma tarefa ainda árdua para a humanidade, todavia imprescindível.
Caminhar rumo ao paradigma do cuidado significa que a humanidade precisa tornar-se mais afetiva e compassiva, dois atributos femininos.  E, por falar em homens mais compassivos: a compaixão é a essência  mais profunda do ser humano e ela se apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro “um igual” e ao mesmo tempo, “um diferente” e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro a si mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave-mãe Terra. A partir daí, o homem abandona o seu papel de conquistador, de guerreiro, e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da criação.
Para terminar, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, ofereço o poema de Victor Hugo, onde ele capta as essências masculina e feminina. Lembrando, sempre é bom lembrar: a mulher também guarda em sua alma a essência masculina e o homem a feminina. Somos seres muito complexos e esta é a beleza.

O Homem e a Mulher

O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.


Viva as mulheres! Viva os homens! Viva a igualdade!


NOTA DA REDAÇÃO

  Zildo Gallo     Da floresta sempre chegam notícias De homens matando homens Estranhamente... Não chegam notícias De onças ma...