Zildo Gallo
Na
sociedade estratificada do mundo civilizado, onde existem os muito ricos e os
muito pobres, encontramos também vários outros tipos de estratificação, onde se
repete a dicotomia entre "os de cima" e os "de baixo", que acaba
dividindo os grupos sociais entre "incluídos" e "excluídos".
Os de alta rendas estão em cima e os de baixa renda estão em baixo; os brancos
(caucasianos) estão em cima e os negros (afrodescendentes) e índios estão em
baixo; os heterossexuais estão colocados acima e os homossexuais abaixo e,
ainda; os seres humanos do sexo masculino continuam no "andar de
cima" e os do sexo feminino no "andar debaixo". Além destas
divisões encontramos outras: as ligadas às religiões; às nacionalidades; ao
nível de escolaridade etc. Etc. mesmo, pois os seres humanos são mestres em
produzir divisões, em criar grupinhos. É muita divisão para uma única
humanidade.
A
primeira e grande divisão da humanidade é a de caráter biológico, entre o sexo
masculino e o sexo feminino. Trata-se de uma divisão natural, diferente das
outras citadas acima que têm origens socioculturais. A bipolaridade que
encontramos no universo material, que se expressa, inclusive, no nível atômico,
com a divisão entre prótons (com carga positiva) e elétrons (com carga
negativa), é encontrada na biologia, com a divisão entre macho e fêmea. Sem a combinação
entre prótons e elétrons, que são antagônicos e também complementares não
haveria a matéria como a conhecemos e, muito menos, o universo com as suas galáxias
e seus sistemas solares. Sem a complementaridade entre masculino e feminino, a
vida poderia ser composta majoritariamente por vírus, por muitos seres unicelulares e vários tipos de fungos. A vida superior, incluindo aí os seres humanos, não
seria possível. Não existe uma hierarquia, neste caso, ambos, masculino e
feminino são necessários, o que existe é uma condição de efetiva e necessária
igualdade.
Diante
do exposto até aqui, afirmo: pensar em superioridade e inferioridade entre os
gêneros é, no mínimo, estupidez e, no máximo, alguma expressão impublicável
(escolha a expressão, à vontade). Todavia, em relação aos seres humanos uma
diferença foi criada; trata-se de uma criação sociocultural, apenas
sociocultural. Entretanto, muitos ainda acreditam que, do ponto de vista
biológico, os homens nasceram melhor aquinhoados. Muitos, raciocinando no
limite inferior das suas capacidades, não enxergando além da sua própria massa
corpórea, acreditam que a força física os diferenciam. No mundo de hoje, onde
as máquinas há muito tempo substituíram a força física nas tarefas mais
pesadas, pensar assim é minimamente ridículo, pois a força bruta, que foi valorizada
em outros tempos, hoje significa muito pouco, muito pouco mesmo. É muita
ignorância e o nosso planeta ainda está lotado de ignorância, infelizmente...
A
partir da introdução um tanto azeda que fiz acima para o meu artigo em
homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sigo na construção do mesmo,
pretendendo lançar luzes sobre o porquê da brutal inferiorização e violência
sofridas pelas mulheres durante milênios da trajetória humana no planeta Terra.
É possível entender esta barbaridade, acreditem.
Entre
2011 e 2012, participei de um grupo de estudos sobre ecologia profunda, na
UNIARA (Centro Universitário de Araraquara), onde leciono no curso de
pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e
Doutorado). Por conta das nossas ricas discussões, escrevi um texto para
análise do grupo, onde falo sobre as três grandes
sombras que acompanham a humanidade desde os primórdios da civilização, três
elementos basilares do patriarcado: 1) a exploração do trabalho alheio
(escravatura, jornadas abusivas, baixos salários, trabalho infantil, insalubre
etc.); 2) a violência contra a mulher, nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, violência física, exploração
sexual, exploração econômica etc.); 3) a concentração da propriedade e da renda por
poucos em detrimento da maioria. Vou tratar aqui, com mais detalhe, o detalhe
possível num artigo relativamente pequeno, da sombra que ainda paira sobre o
mundo feminino.
Na pré-história (paleolítico e neolítico), os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação
central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras
ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila
com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro
momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois, nas tribos, ainda não
havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos
homens. Nos primórdios das cidades, com o enfraquecimento das sociedades
tribais, a situação se modificou. Surgiu o trabalho escravo, o patriarcado e o
casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos, e, aos
poucos, firmou-se a propriedade privada, os fragmentos de territórios apropriados
e dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade trevosa que
comanda a humanidade desde então.
Apesar de tudo, precisamos ser indulgentes com a humanidade: numa
situação indefesa, com conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é
compreensível o surgimento da tríade obscura. Para sobreviver num ambiente
hostil, os humanos precisaram arrojar-se, tornar-se fortes e agressivos. A
batalha pela sobrevivência acontecia todos os dias. Os humanos tornaram-se
hábeis caçadores e desenvolveram armas úteis tanto para a caça como para a
defesa. Tiveram que aprender a conviver com os fenômenos naturais agressivos e
sobrepujá-los. Com o fortalecimento da família monogâmica e patriarcal, nos
primórdios da civilização, a questão central da luta humana passou a ser a
sobrevivência das famílias nas cidades. Nas tribos importava mais
acentuadamente a sobrevivência do coletivo dos seus membros, a sobrevivência da
própria tribo. A civilização acabou estreitando a ideia de coletividade, entendendo-a
como um conjunto de famílias, o que se trata de uma redução simplista, que serviu
para justificar a exploração do homem pelo homem. O teólogo e filósofo Leonardo
Boff denominou esse primeiro momento da trajetória da humanidade de paradigma conquista.
Contudo, com o passar do tempo, a humanidade aumentou a sua
capacidade de sobreviver a partir da expansão crescente do conhecimento sobre a
natureza e dos avanços da tecnologia. Ela tinha tudo para deixar de lado essa
competição insana, mas acabou entrando num círculo vicioso, onde a oposição
entre proprietários e não proprietários, entre homens e mulheres e entre as diversas
nacionalidades tornou-se uma constante. A guerra, violenta ou subliminar, tornou-se
a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que nem tudo dava para
todos, embalada no medo permanente de uma possível escassez. As mulheres foram
as que mais perderam nessa trajetória, pois elas praticamente se transformaram
em propriedade dos homens, alienando a sua liberdade e a sua criatividade. A
partir da civilização o mundo tornou-se essencialmente masculino e isso se
cristalizou, transformou-se num tipo de vício, um vício difícil de ser largado.
Hoje, no século XXI, a inferiorização da mulher ainda é muito
presente e, em muitos países, ela chega à beira da irracionalidade. No oriente
ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo amplos aspectos da vida
cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra mais claramente no mundo
do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior e a sua remuneração
menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil de exploração da
mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o corpo feminino
transformou-se em valiosa mercadoria. Só um exemplo, tem muitos: as revistas eróticas são um grande
negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o inverso do que acontece
nas fábricas e nas fazendas. O mercado produziu uma grande façanha: transformou
a liberdade sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século
passado, em mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a
sexualidade humana continuam, ainda hoje, envoltas por uma grande sombra.
Hoje a humanidade precisa e tem plenas condições de superar o paradigma conquista, em função das
imensas conquistas no campo da ciência e da produtividade da economia. Entendo também
que a necessidade de mudança paradigmática passa com maior ênfase pela questão
de gênero e que esta questão é, em última instância, espiritual, pois se trata
de uma mudança profunda na forma de ser dos indivíduos e da sociedade. Acredito
mesmo que a centralidade das questões contemporâneas está nas disputas, que
remontam a ancestralidade do homo sapiens,
entre os sexos masculino e feminino, no sentido de que prevalece até os dias de
hoje uma compreensão majoritariamente masculina da realidade.
Para
facilitar a compreensão do que quero dizer, lanço mão da milenar filosofia
chinesa. Os chineses enxergam o universo como uma relação, uma relação de duas
forças antípodas e, ao mesmo tempo, complementares. Basta observarmos a
natureza, esta é a sabedoria chinesa: para que exista o frio tem que haver o
quente, para o molhado há o seco, para o mole tem o duro, para o claro tem o
escuro, para o triste tem o alegre, para o bom tem o ruim etc. De forma bem
simples, eles dividem tudo e todos os fenômenos em dois grandes blocos: YIN e
YANG (veja a figura abaixo).
Na figura são visíveis dois peixinhos do
mesmo tamanho, harmoniosamente encostados um no outro. Um é branco e representa
o aspecto solar masculino e o outro é preto e representa o aspecto lunar
feminino. Um detalhe importante: O peixe branco tem um olho preto e o preto tem
um olho branco, significando que o masculino também possui elementos do
feminino e que o feminino também contém elementos do masculino, sugerindo uma
complementaridade perfeita, apesar de todo o antagonismo. As características de
Yin e Yang são opostas e complementares, como se pode ver no quadro abaixo.
UNIVERSO
BIPOLAR
|
|
YIN
|
YANG
|
FEMININO
|
MASCULINO
|
CONTRÁTIL
|
EXPANSIVO
|
CONSERVACIONISTA
|
EXIGENTE
|
RECEPTIVO
|
AGRESSIVO
|
COOPERATIVO
|
COMPETITIVO
|
INTUITIVO
|
RACIONAL
|
SINTÉTICO
|
ANALÍTICO
|
Pelo
quadro vemos que Yin, que representa o feminino, tem atributos opostos a Yang,
que representa o masculino. Na sua conturbada trajetória, com destaque para os
tempos pretéritos, a humanidade lançou mão com mais vigor dos atributos
masculinos por conta do paradigma
conquista, focando mais a necessidade de sobrevivência, e acabou
obliterando os femininos, inclusive com a própria inferiorização da mulher,
guardiã das energias Yin. A humanidade tornou-se majoritariamente Yang:
agressiva, competitiva, racional, expansionista etc.
Neste
altura da história da humanidade, com tranquilidade, podemos concluir que, em
última instância, as crises econômica, social e ambiental, vividas em todo o
mundo, decorrem do desbalanceamento das duas energias primordiais, com a
balança pendendo para o lado Yang, o que reforçou e ainda reforça o paradigma conquista. A sobrevivência da
humanidade enquanto tal, depende da transição para um novo paradigma, o paradigma do cuidado. É preciso
diminuir a competição e aumentar a cooperação, é preciso diminuir a agressão e
aumentar a aceitação e assim por diante. E, o que é de muita importância, neste
mundo conduzido pela ciência: é preciso dar vazão às outras formas de percepção
da realidade, possibilitadas pela intuição, que é a contraparte feminina da
racionalidade masculina. O começo da caminhada para o paradigma do cuidado é o resgate da dignidade feminina, uma tarefa
ainda árdua para a humanidade, todavia imprescindível.
Caminhar rumo ao paradigma do cuidado significa que a humanidade
precisa tornar-se mais afetiva e compassiva, dois atributos femininos. E, por falar em homens mais compassivos: a
compaixão é a essência mais profunda do
ser humano e ela se apresenta menos no campo material da existência e muito
mais no campo do espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um
aproximar-se do outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro “um igual”
e ao mesmo tempo, “um diferente” e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo
no outro a si mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a
dimensão da alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam
na nave-mãe Terra. A partir daí, o homem abandona o seu papel de conquistador,
de guerreiro, e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da
criação.
Para terminar, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher,
ofereço o poema de Victor Hugo, onde ele capta as essências masculina e
feminina. Lembrando, sempre é bom lembrar: a mulher também guarda em sua alma a
essência masculina e o homem a feminina. Somos seres muito complexos e esta é a
beleza.
O Homem e a
Mulher
O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.
O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.
Viva as mulheres! Viva os homens! Viva a igualdade!
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