Zildo
Gallo
O estado de São Paulo inspirou-se na experiência francesa de gestão de
águas para criar O Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos pela
Lei 7663/91. Em nível federal, a Lei 9433/97 também inspirou-se nela. As
experiências internacionais são balizas interessantes a serem observadas, pois
são, em relação ao resto do mundo, mais antigas e têm obtido sucessos. A
despoluição do rio Sena, na França, e do Tâmisa, na Inglaterra é o retrato
disso.
A experiência
internacional na gestão das águas é muito variada, sendo difícil a
identificação de regras generalizantes. Entretanto, algumas características
comuns tendem a se estabelecer como diretrizes necessárias ao estabelecimento
de um bom sistema de gestão: a bacia hidrográfica como unidade administrativa,
a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e a participação dos usuários entre
os responsáveis pela gestão. Todavia, se por um lado existem grandes princípios
a serem seguidos, por outro a forma como se estrutura a gestão está mais ligada
às características ambientais, às formas de uso das águas, ao histórico das
experiências institucionais do país, ao tipo de organização política e social
vigente etc.
De fato, no
que se refere à gestão das águas, os países adotam arranjos institucionais os
mais variados possíveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, há grande diversidade
de arranjos. Lá, as comissões de bacias tanto podem ser fruto de composições
entre Estados e Federação, como entre agências de bacias, totalmente locais ou
ainda totalmente federais.
Japão e a
Holanda também adotam arranjos diversos. Nestes dois países, a altíssima importância
atribuída aos recursos hídricos acabou implicando na instituição de diferentes
níveis de centralidade da gestão. O Governo Central Holandês atribui a si mesmo
a responsabilidade pelos rios nacionais e internacionais e canais relevantes,
como o de Amsterdã, por exemplo. Cursos d’água menos importantes são
gerenciados pelas províncias, que podem delegar responsabilidades a agências
regionais. Existem, ainda, organizações autônomas e locais. No Japão as
agências podem estar vinculadas ao governo central ou às prefeituras, conforme
a importância do curso d’água.
É importante
notar que, de qualquer maneira, apesar da diversidade, prevalece uma tendência,
não muito recente, de se estruturar sistemas que permitem a gestão de forma
regionalizada, por bacias hidrográficas. Isso tem propiciado na França, por
exemplo, considerável autonomia financeira e política às agências regionais de
gerenciamento das águas.
A experiência alemã na gestão das águas: o
caso da bacia do Ruhr - Na Alemanha, ao contrário da França, como se verá
mais adiante, não existe um único formato para todo o país para a gestão dos
recursos hídricos. Apenas no Estado do Norte do Reno-Westfália (Nordeshein-Westfalen) são encontradas
instituições semelhantes a da França. As associações de bacias, nesse Estado,
remontam ao início do século XX, sendo a do rio Emscher fundada em 1904 e a do
Ruhr em 1911. A
legislação atual do Norte do Reno-Westfália obriga os usuários à participação
nas associações e ao cumprimento com as obrigações dos pagamentos pelo uso das
águas. A cobrança pelo uso das águas dá-se tanto pelo lançamento de efluentes
como pela derivação de água pelos usuários. Os recursos arrecadados
destinam-se às associações de bacia, que são autarquias controladas pelo governo
estadual, mas que são dotados de autonomia administrativa.
Nos outros
estados da Alemanha, a água derivada não é objeto de cobrança, apenas o
lançamento de efluentes é onerado. Os recursos auferidos são revertidos ao
estado, para um fundo específico, cuja utilização vincula-se a programas de
despoluição. Esses recursos são, então, emprestados aos municípios e consórcios
de municípios, que são responsáveis pelo tratamento de esgotos. A reunião de
municípios em consórcios é necessária para melhorar a eficiência econômica e
gerencial dos projetos, obras e ações.
O
Ruhrverband, associação da bacia do rio Ruhr, ao contrário da agência de bacia
francesa, executa obras, opera reservatórios e estações de tratamento, responsabiliza-se
pelo controle e monitoramento de efluentes etc. São associados do Ruhrverband
todos os que poluem a bacia do Ruhr, assim como as empresas públicas de
abastecimento de água. Internamente ele está estruturado em departamentos e
seções para projetar, supervisionar construções e operar todas as instalações
técnicas.
O Ruhrverband
desenvolve seu sistema de cobrança pelo uso da água há décadas, distribuindo
os custos da associação entre seus associados, de acordo com a poluição causada
ou conforme os benefícios recebidos, como no caso das empresas públicas de
abastecimento de água. A partir de 1976, foi criada uma tarifa federal de
efluentes a ser paga por todos os proprietários de estações de tratamento de
efluentes. A taxa é paga de acordo com a poluição residual do efluente e, sobre
ela, é necessário tecer alguns comentários: ressalta-se que não se compra uma
licença para poluir ao pagar a taxa de lançamento de efluentes; requisitos mínimos de qualidade deverão
ser cumpridos em todos os casos, em todo o território alemão; há apenas a possibilidade de se
negociar o período de tempo a ser concedido a determinada empresa para que ela
adapte ou expanda suas instalações a fim de alcançar os padrões obrigatórios;
em caso de águas receptoras sensíveis, as condições poderão ser bastante rigorosas.
A experiência francesa na gestão dos
recursos hídricos - Na França, assim como no Brasil vários órgãos e
instituições atuam na área dos recursos hídricos. O Ministério do Meio
Ambiente é responsável pelo planejamento e regulamentação, cuidando da
compatibilização do desenvolvimento econômico com o meio ambiente e a gestão
das águas. Outros ministérios também atuam, ainda que setorialmente, sobre as
águas, como Saúde (normas sanitárias), Transporte (navegação) e Indústria
(eletricidade).
Todos os
protagonistas que atuam na questão das águas, os municípios, a indústria, os
agricultores, o turismo, a pesca profissional e amadora, as associações
preservacionistas, com seus distintos interesses podem se expressar graças aos
dispositivos da Lei das Águas, de 12 de dezembro de 1964. Devido a esta legislação
a França dispõe hoje de um sistema de gestão descentralizado e eficaz.
Até o começo
dos anos 1960, a
gestão francesa dos recursos hídricos baseava-se num conjunto de textos e
regulamentos que se transformaram, ao longo dos anos, num labirinto jurídico.
Havia uma grande dispersão de responsabilidades, assim como no Brasil e no
Estado de São Paulo. A regulamentação sobre o combate à poluição era
incompleta, esparsa e setorial. Havia, até mesmo, contradições entre as ações
de diferentes administrações, o que não permitia encontrar solução para alguns
problemas.
A crescente
diminuição de fontes de abastecimento com qualidade adequada, provocada pelo
aumento substancial dos poluentes, obrigou o legislador a modificar esse
sistema de gestão. Naquele tempo, duas opções foram analisadas: 1) ignorar a
organização administrativa anterior e entregar a gestão a uma única administração
nova, dotada dos instrumentos regulamentares necessários ou 2) manter a
organização anterior para o essencial e criar dispositivos inovadores para dar
à gestão dimensões técnica, política, econômica e financeira, simultaneamente.
A segunda opção foi adotada pela Lei das Águas de 1964.
A nova
dimensão técnica consiste em administrar as águas não mais setorialmente, mas
considerando seus problemas em nível de bacia hidrográfica. A dimensão política
consiste em se decidir os trabalhos de despoluição necessários pelos próprios
usuários dos recursos hídricos, agrupados em organismos denominados comitês de
bacias. A dimensão econômica e financeira busca incitar à despoluição através
do princípio poluidor-pagador: os poluidores são penalizados por cotizações
obrigatórias a um fundo de investimento, onde os encargos são fixados em função
dos trabalhos a realizar e dos inconvenientes que sua poluição ocasiona; os que
executam os trabalhos de despoluição são financiados por esse fundo. Comitês
de bacia e agências da água foram criadas em cada uma das seis grandes bacias
hidrográficas francesas: Adour-Garonne, Loire-Bretagne, Rhône-Mediterranée-Corse,
Siene-Normandie, Artois-Picardie e Rhin-Meuse.
O comitê de
bacia é o organismo que decide a política da água a vigorar na bacia. Trata-se
de um “Parlamento das Águas”, que se organiza da seguinte forma: 20% dos
membros são representantes do estado e os outros 80% são representantes dos
municípios e dos usuários dos recursos hídricos, seja como consumidores ou
como poluidores.
A agência da
água é uma entidade pública descentralizada e dotada de autonomia financeira.
A sua finalidade é dar suporte técnico e financeiro ao comitê e às empresas,
públicas ou privadas, que executam serviços, operações e obras necessárias ao
controle da poluição. A gestão de cada agência está a cargo de um conselho de
administração indicado pelo comitê. Os seus recursos financeiros provêm da
cobrança pelo uso das águas, que se dá na proporção da água utilizada e pela
contaminação produzida no meio receptor.
A cobrança
pelo uso da água é, no sistema francês, um instrumento importante na política
de luta contra a poluição das águas. Sua originalidade está em estimular os que
poluem a observar o interesse coletivo, dando-lhes condições de opinarem sobre
o destino dos recursos arrecadados. Outra originalidade está em garantir a
obtenção de um recurso estável para o financiamento dos programas. Uma terceira
originalidade está na criação de um gerente único e independente da
administração do estado.
Existem
poucas controvérsias a propósito de o modelo francês ser a principal fonte de
inspiração dos sistemas institucionais que estão em implantação no Brasil, seja
a conformação geral delineada pela Lei Nacional no 9.433/97
ou as variações sobre o tema aplicadas pelas unidades federativas, à luz de
suas especificidades regionais. A formação de comitês de bacia e de agências
de água adquiriu uma grande força; tornaram-se unanimidade, o que sem dúvida,
com o passar do tempo deverá contribuir para o sucesso o modelo de gestão das
águas, no Brasil e no Estado de São Paulo.
Considerações finais - Em relação ao
planejamento do uso dos recursos hídricos, pode-se dizer que ele foi marcado,
até a década de 1980, pela forte centralização e pela excessiva setorização,
como era na França até 1964. Os planos tinham a sua eficácia comprometida pela
parcialidade dos enfoques que os geravam, dado que acabavam desconsiderando os
conflitos sociais, econômicos e políticos
que sempre acompanham o uso das águas. Não resultavam de negociações entre os
diversos usuários das águas.
A forte
centralização do poder de decisão no Brasil começou a ser rompida com a
Constituição de 1988. Contudo, não se completou, ainda o ciclo de adaptação do
aparato institucional. Os municípios e as regiões ainda não assumiram de forma
integral as atribuições normativas e fiscalizadoras que agora lhes são
permitidas e a sociedade civil ainda tem uma participação muito tímida.
A partir do
novo quadro legal, que possibilita novos arranjos institucionais, começa a se
construir uma nova forma de planejar a economia e o uso dos recursos naturais,
entre eles os recursos hídricos. A nova forma pressupõe uma postura democrática
e, portanto, deverá estar alicerçada em mecanismos institucionais de
articulação de órgãos públicos (municipais, federais e estaduais) e de
representantes de toda a sociedade. Assim, o planejamento não deverá ser apenas
a concretização de trabalhos técnicos bem estruturados , mas também o resultado
de debates e negociações com os diversos setores sociais e econômicos.
A participação
pública e dos atores sociais é uma ferramenta extremamente importante nas
tomadas de decisão e na diminuição dos conflitos inerentes ao processo de
gestão integrada dos recursos hídricos. A participação oferece a comunidade à
oportunidade de exercer seus direitos, assim como, de reconhecer suas
responsabilidades. A participação nos Comitês de Bacia são a garantia de que os
interesses da maioria estarão garantidos e de que as melhores decisões
possíveis serão adotadas.
Em 25 de
agosto de 1993, em cumprimento à Lei 7663/91, no Estado de São Paulo, foram
empossados os integrantes do CRH - Conselho Estadual de Recursos Hídricos. Em
novembro do mesmo ano foi implantado o primeiro Comitê de Bacia, o Comitê das
Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. A implantação do
comitê consistiu num marco da estrutura da Política Estadual de recursos
Hídricos. A partir, os demais comitês foram paulatinamente sendo implantados e,
paulatinamente, a descentralização da gestão das águas começou a se efetivar.
Também, aos poucos, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos vai sendo
implantada, seguindo os passos da experiência francesa.
Referências
GALLO, Zildo.
A defesa da qualidade das águas da bacia
do rio Piracicaba: o papel da CETESB e de todos nós. 2000. Tese (Doutorado)
– Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
222p.
______. A proteção das águas, um compromisso do presente com o futuro: o caso
da bacia do rio Piracicaba. 1995. Dissertação (Mestrado) – Instituto de
Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995. 151p.
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