sexta-feira, 13 de março de 2015

Ética e meio ambiente: um debate necessário

Zildo Gallo


A ecologia como área do saber nasceu na segunda metade do século XIX com Ernest Haeckel, que utilizou esta palavra para identificar uma ciência que estudasse as relações da imensidão de organismos com o meio ambiente. O termo ecologia não se refere hoje a uma ciência única. Com o agravamento das questões ambientais no século XX e com o surgimento ambientalismo no ­correr das décadas de 1950, 1960 e 1970, muitas outras ciências passaram a incorporar as questões ecológicas nas suas preocupações.
Um dos problemas do pensamento ecológico é o tratamento dispensado ao ser hu­mano. É comum ouvir-se que o homem destrói a natureza. Con­tudo, não é o homem enquanto categoria genérica que o faz. Ele o faz sob determinadas formas de organização social, dentro de uma determinada cultura. Por exemplo, os indígenas convivem mais harmoniosamente com a natureza do que os moradores de uma metrópole in­dustrializada.
O ser humano é um animal que produz cultura. Ele cria normas e instituições a partir de estímulos ambientais e das relações com os semelhantes e, assim, acaba criando a sua própria natureza. Ele tam­bém sobrevive e se expande nos mais distintos e, às vezes, hostis ecossistemas, adaptando-se a eles e moldando-os conforme as suas necessidades. Toda sociedade, a partir da cultura, desen­volve uma ideia particular do que é a natureza. Então, o conceito de natu­reza não é natural, ele é criado e instituído pelos homens. Para a sociedade atual, em particular a oci­dental, a natu­reza contrapõe-se à cultura. A cultura sempre é considerada superior e, por isso, consegue (deve) controlar a natureza.
Então, a partir da sua cultura, o homem coloca-se acima da natu­reza, acima dos demais seres que nela e com ele convivem. Trata-se de um pro­cesso de sepa­ração que coloca a natureza à sua disposi­ção, a seu serviço. Todo mundo já ouviu expressões do tipo “o homem é um animal social”, distinguindo os homens dos outros animais. Ocorre que a vida social não é um privilégio da humanidade. A sociabilidade está presente de forma ampla no mundo animal. Esta atitude arrogante tem criado um fosso profundo entre a sociedade dos homens e a natureza. Ela tornou-se estranha ao homem, que se acredita realmente dela separado. Na sua mente ela deixou de ser a sua morada, pois a sua casa passou a ser apenas a natureza por ele modifi­cada, uma natureza “construída”.
Nos últimos séculos, a justificativa dada para o avanço técnico e para a in­dustrializa­ção, que implicam em grandes modificações ambientais, tem sido a elevação do consumo. O consumismo legitima-se e penetra no inconsciente coletivo da população, onde chega a se confundir com o desejo de liberdade. Ser livre é poder apropriar-se da natureza, transformá-la em bens de consumo e consumi-la. Em rela­ção à natureza consolida-se, com a aceitação deste conceito de liber­dade, uma ética utili­tarista. A natureza está aí para ser usada, ela vira “recurso natural” que será trabalhado (modificado) pelo “recurso humano”, para que os consumidores livremente con­sumam. Aí surge uma questão ética: esta liberdade não é para todos, é para quem pode comprá-la. A exclusão por falta de renda, aquilo que o economista Keynes chamou de “demanda efetiva”, é um dos pontos fracos deste modelo de civilização. Outro ponto fraco é a destruição acelerada dos recursos naturais, que já atinge dimensões catastróficas.
Foi a partir dos anos 60 do século XX que esta visão de mundo, ba­seada num crescimento indefinido do consumo, começou a ser contestada. Os movimentos contraculturais, ecológicos, feministas, entre outros, e também os contatos com religiões e filosofias orientais expuseram à luz do sol a grande crise ética da sociedade ocidental. Acontece que ainda não surgiu, pelo menos de forma abrangente, uma nova ética para que, a partir dela, se conceba uma nova civilização.
Como o mundo, em particular o ocidente, pode superar a visão separatista e utilitá­ria que tem da natureza? Como é possível estancar o processo progressivo de destrui­ção da natureza que se iniciou na Revolução Industrial, no século XVIII, e que, a partir daí, se aprofundou? Não existem respostas prontas, mas várias concepções conflitantes.
Para o pensamento liberal, a competição é "naturalmente" boa para a economia. Esta forma de ver o comportamento econômico, que sobrevaloriza a competição e minimiza o papel da coope­ração, pode ser perigosa, pois pode conter uma ética neodarwinista implícita, que afirma que o mais forte vence e tem o di­reito “natural” sobre o que conquistou. Trata-se de uma visão ideologizada da luta pela vida que há na natureza. As questões que envolvem a luta pela propriedade privada da terra, por exemplo, nunca foram resolvidas com tranquilidade, sempre estiveram envoltas em muita violência.
O teólogo e filósofo Leonardo Boff chama esta competição exacerbada de paradigma con­quista. Para ele, tal paradigma, que foi necessário para a expansão da humani­dade há milênios atrás, entrou em grave crise nos dias de hoje. O homem precisa parar de conquistar para não destruir tudo e entrar noutro para­digma, o paradigma cuidado, para continuar a sua trajetória e para reparar os danos provocados por suas con­quistas.
Hoje, muitos liberais acreditam que a tecnologia pode resolver os problemas ecológicos e, neste sentido, são defensores das chamadas “tecnologias limpas”. Acreditam também que a pobreza pode ser diminuída com mais crescimento econômico, ações assistenciais e diminuição do crescimento populacional. Eles também defendem ações corretivas, tais como: diminuição gradual da emissão de CO2; uso de energias limpas; certificações ambientais; reciclagem de resíduos; aperfeiçoamento da legis­lação e das ações de controle ambiental. Apesar des­tes avanços no seio do liberalismo, avanços bem vindos e necessários, os liberais ainda não questionam em profundidade o modelo econômico acentuadamente competitivo que defendem, partindo da compreensão dos seus efeitos mais dano­sos: a elevada concentração da riqueza, a exclusão social e a enorme degradação ambiental, inclusive.
À esquerda, os novos socialistas, pós queda do socialismo do tipo soviético, por sua vez, tecem criticas aos valores predominantes no mundo globalizado. Para eles: a sociedade não pode se estruturar às cegas a partir da globalização econômica; há que se repensar os modos de vida que se balizam apenas pelas rela­ções mercantis; os impactos sobre o meio ambiente resultam de uma noção de progresso e de ciência já superados, que vem das revoluções Científica e Industrial; deve-se questionar a intocabilidade da propriedade privada, do livre mer­cado e do lucro como principal motivo da produção; é preciso defender as "minorias" contra o racismo e os preconceitos; é preciso enfrentar o patenteamento da vida e a propriedade intelectual privada, com destaque para biodiversidade; é preciso lutar pela reforma agrária e por políticas agrícolas ecologicamente corretas; o novo socialismo deve buscar a real democracia, a participação popular, a descentrali­zação do poder, a solidariedade e o respeito à diferença; é necessário impor regras à atuação do capital internacional, diminuir a má distribuição das riquezas e; também, criar formas de participação social nas empresas e na economia.
Os liberais e os novos socialistas colocam-se em extremos antagônicos. Num estado de direito efetivamente democrático, o debate e o diálogo entre os dois grupos pode ser muito profícuo do ponto de vista da busca por soluções possíveis, que possam dar-se de formas minimamente consensuais. Uma democracia altamente participativa é essencial.
Além dos liberais e dos novos socialistas, existem vários pensadores que têm opiniões mais ou menos convergen­tes. O ponto de partida deles é a crítica ao tipo de civilização construído a partir do desenvolvi­mento econômico baseado na ciência e na indústria. Preocupam-se com os desequilíbrios que ocorrem com os seres humanos e a natureza por conta desse tipo de desenvolvi­mento. Tais autores buscam uma visão holística, integradora, que religue harmo­niosamente os homens com o meio natural. Eles buscam a estruturação de uma ética holística.
O desenvolvimento da razão científica e instrumental, um produto do Ocidente, distancia o homem da natureza e facilita para ele a assunção de uma atitude dominadora em relação a ela. Assim, ele subordi­na o ambiente à sua vontade. O objetivo maior da corrente holística é recuperar a integridade do ser humano, refazendo a sua relação com a natureza. As primeiras fontes desta corrente são do início do século XX, quando o Ocidente começa a receber influên­cias do pensamento oriental. A partir da década de 50, com os movi­mentos contraculturais, o aumento da crise ambiental e a ameaça nuclear, esta cor­rente visibilizou-se. O seu pensador mais conhecido no mundo é o físico e ecólogo Fritjof Capra. No Brasil destaca-se o filósofo e teólogo Leo­nardo Boff.
Para Capra, a ecologia abrange um vasto campo. Ela pode ser praticada como ciência, como filosofia, como política e até como estilo de vida. Enquanto filosofia ela é conhecida como “ecologia profunda”, que se trata de uma escola fundada pelo filósofo norueguês Arne Naess no começo dos anos 70 do século passado. Naess distinguiu  a ecologia “rasa” e a “profunda”. A ecologia rasa é antropocêntrica e coloca o homem acima da natureza e a profunda não aparta o homem da natureza.
Capra considera que o arcabouço científico mais adequado para o estudo da ecolo­gia é a teoria dos sistemas vivos. A teoria dos sistemas trata-se de uma nova maneira de ver o mundo e também uma nova forma de pensar, conhecida como pensamento sistê­mico, que significa pensar a partir de relações. Esta teoria diz que todos os sistemas vivos compartilham propriedades e princípios organizacionais comuns. Os ecossistemas são teias alimentares (redes de organismos); os organismos são redes de células e as células são compostas por redes de moléculas. Para ele. a vida na sociedade humana também pode ser compreendida em termos de redes, mas se trata de uma rede de comunicações:
À medida que as comunicações acontecem em uma rede social, elas acabam produzindo um sistema compartilhado de crenças, explicações e valores – um contexto comum de significados, conhecido como cultura, que é susten­tado continuamente por novas comunicações. Através da cultura, os indiví­duos adquirem identidades, como membros da rede social (CAPRA, 2005).
O pensamento sistêmico implica numa mudança de enfoque de ob­jetos para relações. Trata-se de uma ruptura com o modo cartesiano de ver o mundo e seus fenômenos. A divisão entre espírito e matéria que aconteceu após o “cogito, ergo sum” (penso, logo sou) de Descartes levou à concepção do universo como um sistema mecânico, que é composto por partes separadas que podem ser analisadas sepa­radamente. A ciência que foi produzida no Ocidente, com esta divisão, criou atitudes antiecológicas. A razão ocidental é linear e frag­mentada e os sistemas ecológicos são redes dinâmicas não lineares. Esta racionalidade não capta a complexi­dade dos sistemas vivos e o resultado disto pode ser visto nas tragédias ambientais que se espalham por todo o planeta.
Leonardo Boff, ao analisar a modernidade científica e técnica, descobre por detrás dela o funcionamento de uma determinada filosofia: o “realismo materialista”. Ele a chama de realismo porque ela parte do ponto de vista de que as realidades existem independentes dos observadores. Para ele, não tem objeto sem sujeito e sujeito sem ob­jeto. Também a chama de materialista porque pressupõe que a matéria é a única realidade existente. Contudo, ele avalia que hoje a situação mudou, pois:
A física quântica demonstrou a profunda interconexão de tudo com tudo e a li­gação indestrutível entre realidade e observador; não há realidade em si, desco­nectada da mente que a pensa; ambas são dimensões de uma mesma realidade complexa. O universo é consciente. A moderna cosmologia de­monstrou que este universo é matematicamente inconsistente sem a existência de um Espírito Sagrado e uma Mente infinitamente ordenadora (BOFF, 1999).
Boff considera que a nova filosofia deve ser holística, ecológica e espiritual. Ela deve ser uma alternativa ao realismo materialista. Depois de séculos de cultura material é chegada a hora de buscar uma espiritualidade sólida e simples, que deve basear-se na percepção dos mistérios do universo e dos seres humanos. Esta espirituali­dade também deve sustentar-se numa ética de responsabi­lidade, de solidariedade e de compaixão. Para ele, o bem comum não pode ser concebido apenas a par­tir do homem. A natureza e os seus ecossistemas também de­vem ser conside­rados. O bem comum deve ser de toda a comunidade terrestre com quem o homem com­partilha o seu destino:
A economia política não pode cuidar apenas do bem-estar material dos se­res humanos, mas de todos os demais seres que precisam ter água não contaminada, solos não envenenados, ar despoluído e nutrientes de quali­dade. Sem essa amplia­ção da democracia, que será então sociocósmica, o nosso bem comum não será suficiente nem adequado (BOFF, 2003).
Pelizzoli (2002) considera a importância da grande contribuição do filósofo e ecólogo Hans Jonas. Ele avalia que a sua postura é bastante ética, pois ele se preocupa com a necessidade de conter a força descontrolada dos homens. Jonas fala, em O Princípio Responsabilidade (1995), de uma nova dimensão para a responsabilidade humana, que vai além da responsabilidade com os semelhantes, estendendo-a para toda a natureza. Também ele se lança contra a visão cartesiana: a ideia de que a natureza existe por si, que ela é o que pode ser medido, cortado e modificado não pode mais prevalecer. Em O Princípio Vida, onde fala da natureza e da ética, Jonas conclui que apenas “uma ética fundamentada na amplitude do ser, e não apenas na singularidade ou peculiaridade do ser humano, é que pode ser de importância no universo das coisas” (JONAS, 2004).
A ética ambiental pode alimentar-se de muitas fontes, como das escolas filosóficas, como a Escola de Frankfurt, que dá preciosas contribuições, e das várias religiões, entre elas o budismo, o cristianismo e o taoismo, por exemplo, que têm muitas contribuições a dar. Mas, para fechar este assunto, é bom falar aqui da relação entre a ética ambiental e a hermenêutica. A palavra hermenêutica vem do grego e significa interpretar. Ela deriva de Hermes, o mensageiro dos deuses, criador da linguagem e da escrita. Para Pelizolli (2002), a hermenêutica implica que, antes de se conseguir uma explicação sobre as coisas, que é a base do proceder científico atual, deve-se, antes, compreendê-las em profundidade. O aprofundamento é necessário porque a investigação sobre uma realidade objetiva sempre é passível de interpretações subjetivas. Esta compreensão profunda é necessária porque o procedimento meramente cartesiano pode ser restritivo, deixando de fora elementos que não cabem nos limites de uma determinada teoria ou nos moldes de uma experimentação laboratorial.
Uma postura hermenêutica sobre a ecologia serve para aprofundar a compreensão dos problemas causados pelo cartesianismo. Também serve para desmistificar a ideia de progresso sem fim através da dominação da natureza. Essa postura chama as diversas correntes ambientais a dialogarem, trocarem experiências e buscarem pontos comuns, na tentativa de se construir um mundo melhor para todos, humanos e não humanos.

Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2003.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999.
CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: o desafio para a educação do século 21. In: TRIGUEIRO, André (coord.). Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da ques­tão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Campinas, SP: Ar­mazém do Ipê (Autores Associados), 2005.
GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.
JONAS, Hans. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2004.
JONAS, Hans. El principio reponsabilidad. Barcelona: Herder, 1995.
PELIZZOLI, Marcelo L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

A QUE VIM