domingo, 29 de março de 2015

Como começar a mudar o mundo a partir do Ocidente

Zildo Gallo


A partir do meu livro "Ethos, a Grande Morada Humana: Economia Ecologia e Ética" (2007), tomando como ponto de partida as questões inerentes ao Ocidente,  elaborei um conjunto de propostas que considero necessárias para que se comece uma trajetória positiva no sentido da construção de um mundo melhor. Seria uma espécie de "como podemos fazer a nossa parte". Não são propostas facilmente exequíveis, por conta do primitivo estágio civilizatório da humanidade ainda nos tempos atuais, mas são necessárias à própria sobrevivência da humanidade de forma digna. Não considerá-las neste momento, pode significar um passo rumo à barbárie.
Sobre a academia e a fragmentação da ciência - Em relação à fragmentação do conhecimento científico, tem-se observado uma mudança positiva, nos últimos anos, que já tem chegado ao meio acadêmico. A academia já tem, pelo menos parte dela, enfrentado a resistência ao conhecimento interdisciplinar. Trata-se de um exercício de humildade que o cientista precisa adotar, saindo do casulo da sua área de saber e se aproximando das demais. Contudo, há muito que avançar ainda; o ocidente ainda con­tinua muito impermeável à penetra­ção de saberes de outra origem; os conheci­mentos provindos do oriente servem para exemplificar. Mas, até em relação a estes, as resistências têm  diminuído, apesar da lentidão. A aceitação das medicinas chinesa e indiana são bons exemplos disso, por exemplo.
Sobre a ética planetária - A necessidade de se construir uma ética para o planeta Terra é de extrema impor­tância e sua relevância para a própria sobrevivência da humanidade é, cada vez mais, in­questionável. Os limites do estado-nação precisam ser superados. Doravante, é necessário modelar um novo projeto de civiliza­ção, baseado na paz e no cui­dado para todos os países. É preciso fundar um novo ethos para permitir uma nova convivência entre os ho­mens e destes com todos os demais seres do planeta. A nova ética deverá nascer da essência, da natureza mais profunda do ser humano. Ocorre que a essência do homem está muito mais no cuidado, na com­paixão, do que na razão e na vontade. Há que se resgatar a essência do humano. É preciso ir além da ciência, muito além. Trata-se de um projeto de caráter multicultural, envolvendo todas as tradições culturais de todos os povos, incluindo aí todas as religiões, indistintamente. Há a necessidade de aberturas de diálogos entre as culturas e religiões diferentes no sentido de se estabelecer um espaço de paz e tolerância entre elas.
Sobre a ética econômica - A aproximação entre ética e economia é cada vez mais necessária e será be­néfica para ambas. Muitos problemas éticos estão ligados a questões logísticas, que são objetos de estudo da ciência econômica, como o problema da fome, do saneamento básico e da exploração do trabalho infantil, entre vários outros. As soluções passam, muitas vezes, pela engenharia econômica, a engenharia econômica a ser­viço de um objetivo maior, ético: o bem-estar social. A responsabilidade pelo bem-estar social é de todos, não é só dos eco­nomistas, ela é nacional e transnacio­nal, porque os seres humanos que sofrem não podem ficar segregados nos seus territórios. É preciso encarar toda a humanidade como uma grande família. Onde quer que habitem, a preocupação com os que têm fome e padecem de doenças não pode cessar porque os aflitos estão do outro lado da fronteira. A ética econômica precisa ter este caráter universal.
Sobre uma filosofia para a natureza - O desenvolvimento da razão científica, que é o principal pro­duto da civilização ocidental, distanciou o homem da natureza e facilitou para que ele assumisse uma atitude arrogante e dominadora em relação a ela. Acontece que a racionalidade do ocidente é linear e fragmentada (cada ciência no seu quadrado), uma herança da Revolução Científica que teve início no século XVII, e os sistemas ecológicos são redes dinâmicas não lineares. Esta racionalidade não consegue captar a complexidade dos sis­temas vivos e o resultado disto pode ser visto nas tragédias ambientais que se espalham por todo o planeta. Quando se ana­lisa a modernidade científica e técnica, descobre-se por detrás dela o funciona­mento de uma determinada filosofia: o “realismo materialista”. A nova filosofia precisa ser uma alternativa ao realismo materialista; deve ser holística, ecológica e espiritual. Ela também precisa extrapolar o antropocentrismo, pois toda a natureza e os seus ecos­sistemas devem ser considerados. A ciência econômica, por exemplo, não pode cuidar só do bem-estar dos seres humanos, mas de todos os seres, indistintamente, que precisam de água com quali­dade adequada, de solos não contaminados, de ar limpo e alimentação.
Sobre a sustentabilidade do desenvolvimento -  O desenvolvimento sustentável deve ser aquele que, além de atender às ne­cessi­dades do presente, também não compromete a possibilidade de as gerações futuras aten­derem as suas próprias necessidades. A humanidade precisa rapida­mente ser capaz de tornar sustentável o desenvolvimento econômico. O conceito de desenvolvimento sustentá­vel tem limites; não são limites absolutos, são limites impostos pelo estágio atual da ciên­cia, da tecnologia e da organização social e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos antrópicos negativos. Tanto a tecno­logia quanto a organização social devem ser geridas e aprimoradas a fim de pro­porcionar uma nova era de crescimento econômico que não produza de novo as destruições que o progresso material tem provocado até agora. O desen­volvimento sustentável não é um estado de harmonia permanente. Trata-se de um processo de mudança bem difícil, mas necessário, onde o uso dos recursos, a alocação dos investi­mentos produtivos, o desenvolvimento da tecnologia e as mudanças institucionais têm que estar em conformidade com as necessidades do presente e do futuro. Do ponto de vista econômico, há que se pensar no longo prazo, o que significa uma mudança radical, pois o mercado atua quase que exclusivamente no curto prazo. Assim, é necessária a reintrodução do planejamento no debate econômico, algo que foi deixado de lado com a expansão do neoliberalismo a partir dos anos 80 do século XX, indo além do mercado.
Sobre o consumismo - Nos dias de hoje, o consumidor com poder de compra, com renda, fica ator­doado diante do imenso leque de possibilidades de consumo posto à sua frente e não consegue compreender as suas repercussões sobre o meio ambiente do planeta. Assim, as propos­tas de mudança nos padrões de consumo são importantes na busca da utopia de uma “sociedade sustentável”. Os consumidores podem e devem politi­zar as práticas de con­sumo, cobrando dos produtores práticas sociais e am­bientais responsáveis. Então, há que se fazer um esforço para diminuir a ignorância do consumidor sobre as repercussões das suas escolhas, ou seja, torná-lo ciente do impacto delas. É necessária e urgente uma “alfabetização ecológica”. Ela ajudaria o consu­midor a compreender as consequências das escolhas. Ensinar o “saber ecológico” será o maior papel da educação neste século. A alfabetização ecológica precisa se tornar uma obrigação para políticos, empresários e profissionais de todas as áreas, e deve ser, também, uma preocupação central da educação em todos os seus níveis – fundamental, médio, universitário e profissionalizante.
Sobre uma democracia global - A necessidade de se construir uma democracia global é óbvia tanto para os diri­gentes dos países maiores quanto para os dirigentes de países pequenos. Ocorre que, num mundo globalizado, as ações de cada país podem repercutir em todo o planeta até por séculos adiante e a democracia, nos moldes atuais, continua ele­gendo seus dirigentes com base em eleições nacionais para mandatos de durações curtas. O mundo tornou-se global e de longo prazo e a democracia ainda é nacional e de curto prazo. Neste sentido, para se democratizar, a globalização deve deixar de ser identificada apenas com o comércio, como acontece nos dias de hoje. As relações de comércio continuarão moldando o futuro próximo do planeta Terra por um longo tempo. Entretanto, para que elas aconteçam dentro dos marcos civilizatórios, terão que ser acompanhadas por uma crescente solidariedade internacional, que contemple investimentos para superar a exclusão social e as catástrofes locais. Uma democracia global tem que combinar a demo­cracia nacional com a solidariedade internacional e histórica em relação às socie­dades de hoje e às gerações futuras.
Os pontos levantados acima caracterizam uma Nova Utopia. Cada vez mais há que se pensar em termos globais. este é o princípio número um. Todavia, a globalização pretendida deve ir muito além da mera globalização econômica dos dias atuais. É necessário que se universalizem valores humanos lastreados em princípios igualitários e de justiça: fim da pobreza;  das exclusões por credos religiosos, raça, opção sexual etc. e; fim das desigualdades entre homens e mulheres. Muitos direitos também devem ser globalizados: segurança alimentar; educação; saúde; habitação; transporte coletivo etc. Enfim, há a necessidade de se pensar uma sociedade nova, sem privilégios de nenhuma ordem. O estado de bem-estar social (Welfare State), existente em vários países da Europa, com destaque para os países nórdicos, precisa ser universalizado como ponto de partida para uma nova sociedade. As palavras de ordem da Revolução Francesa (Liberté, Egalité, Fraternité) precisam ser postas de novo na ordem do dia, pois, afinal, somos todos iguais, ou não somos? A liberdade deve ser para todos e se tem algo que limita a liberdade, este algo é a pobreza. A fraternidade, por sua vez, é um valor que precisa ser universalizado, que precisa adentrar nos corações e mentes de todos os seres humanos, pois ela é o ponto de partida para a igualdade. Não dá para pensá-las separadamente, como costumeiramente acontece.
Referência

GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.

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