Zildo Gallo
Muitas
vivências e fatos da nossa existência, por mais longínquos que estejam no
tempo, sempre permanecem na memória. Permanecem porque carregam significados
singulares, especiais. Muitos deles, caso analisemos rapidamente, podem parecer
sem importância, mas, caso insistamos na observação, caso não "deixemos
para lá", o que corriqueiramente costumamos fazer, sempre acabaremos por
achar algum significado profundo escondido. A história que relato a seguir é um
caso desses.
No
final dos anos 60 do século passado, quando morava em Americana (SP), à rua
Frederico Pollo, na Vila Jones, numa situação de muita pobreza e dificuldades
econômicas concretas (existe dificuldade econômica não concreta?), eu e vários
meninos da minha rua e das proximidades, que também enfrentavam situações
parecidas, uns mais outros menos, vivenciamos durante algum tempo uma história
inédita, até mesmo estranha, dada as nossas condições limitadas de vida e da
percepção diminuta que tínhamos do mundo, pelo menos a minha era assim. Apesar
da estranheza, a história era bem agradável, tanto que grudou nas paredes da minha
memória.
Antes
de narrar os acontecimentos pretéritos, que são bem curtos e singelos, acho
conveniente descrever o cenário do enredo e, ao mesmo tempo, acrescentar
algumas informações que, com o correr do tempo, fui adquirindo sobre a história de
Americana, cidade na qual vivi a maior parte da minha infância, toda a
adolescência e parte da idade adulta. São informações que considero importantes
para a compreensão do sincrônico encadeamento dos fatos.
O
nome do bairro, Vila Jones, homenageia uma das famílias de imigrantes
americanos confederados, que começaram a se instalar, entre 1865 e 1885, nas
terras próximas ao ribeirão Quilombo que, posteriormente, formarão o município
de Americana. Os Jones são uma família com visibilidade e importância na
história local. A senhora Judith Mac Knight Jones, esposa do Dr. James Roderick
Jones (Jaime Jones, assim ele era chamado pelos brasileiros), além de ter no
currículo o fato de ser tia de Rita Lee Jones, nossa eterna rainha do rock, também escreveu um livro
importante, que resultou de uma grande pesquisa histórica, sobre a imigração e a
instalação dos imigrantes confederados no Brasil do segundo império: Soldado Descansa! uma Epopeia Norte
Americana sob os Céus do Brasil.
O
cenário dos acontecimentos que vou narrar foi onde hoje funciona uma escola
estadual, entre quatro ruas: Rua Washington Luis, Rua Florindo Cibin, Rua
Martins Fontes e Rua Guilherme de Almeida. Neste quarteirão, nos anos 60 e 70,
havia um campo de futebol, o Canto do Rio. Acredito que se chamava assim porque
estava localizado perto da microbacia do Córrego Pyles, que ficava no sítio dos
Jones. O nome do córrego, Pyles, também homenageia uma família de imigrantes
americanos.
Quando
eu me mudei para Americana com minha família, em 1963, o Canto do Rio estava
vivendo um processo de deterioração. Antes, ele era bem cuidado e tinha,
inclusive, em todo o lado que margeava a Rua Washington Luis, uma arquibancada
construída com tijolos e concreto. Com o abandono, várias famílias começaram a
saquear a arquibancada para, com os tijolos dali extraídos, ampliarem as suas residências;
a arquibancada desapareceu em muito pouco tempo.
Apesar
da degradação, o campo nunca deixou de ser usado enquanto tal, até que virasse
uma escola. Que legal que tenha virado escola! Nos finais de semana ele era
utilizado por um time que se formou a partir dos frequentadores do bar de um
posto de gasolina na Avenida Campos Salles, o Servicentro Esso. Meu pai, Aristides, que trabalhava no posto, no
seu primeiro emprego em Americana, também jogava no time, que era composto, na
sua maioria, por operários das fábricas de tecidos da região, que, ao final da
tarde, quando saíam do trabalho, paravam no bar, conhecido por todos como Bar
do Posto, onde bebiam alguma coisa e jogavam conversa fora, antes de irem para sua
casas. Tenho na memória alguns nomes de jogadores: Buzina, Piti, Viola e Japão. Lembro-me também que Piti era surdo-mudo e Japão era o borracheiro do posto. Guardei-os porque os achava engraçados, acho que é por isso, não sei, a memória
é uma coisa muito estranha.
Durante
os dias úteis da semana o Canto do Rio era das crianças. De manhã eu ia para a
escola e à tarde rumava para o campo, onde encontrava outros meninos. Ficávamos
esperando, conversando bobagens, até que aparecesse alguém com uma bola. Havia
poucos meninos proprietários de bolas de futebol, eram os "donos da
bola". E os donos de uma bola de capotão de tamanho oficial? Esses eram
uma raridade, raridade mesmo. Uma bola Drible de couro, costurada à mão, de
tamanho número cinco, grandona, era muito cara; naquela época ela era um desejo
praticamente impossível de ser alcançado pela esmagadora maioria dos meninos do
Canto do Rio.
Contudo,
às vezes, os desejos mais difíceis podem ser atendidos, como num passe de
mágica. Num dia, não me lembro de qual ano, eu e meus amigos esperávamos alguém
com uma bola e eis que de repente, não mais que de repente (como no poema de Vinícius
de Moraes), apareceu um menino que chegava acompanhado pelo pai. Ele era muito
diferente dos meninos dali, comigo incluso, era alto, do tipo forte e tinha o
rosto claro e rosado. Apresentou-se como Johnny, num português com sotaque
engraçado, pelo menos eu achei engraçado. E, o que é mais importante: ele
trazia consigo uma bola de capotão oficial, branquinha, lindona.
Johnny
era americano e ficaria no Brasil por algum tempo. No tempo que ficou em
Americana, ele virou o verdadeiro "dono da bola". Acredito que nenhum
outro gringo tenha sido tão bem recebido e tão festejado como ele. Acredito que
ele mesmo não saiba disso, com certeza. Brincamos muito com a bola de capotão
do Johnny. Ele foi o primeiro americano que conheci pessoalmente. Conhecíamos os
descendentes dos confederados, um americano legítimo como ele estava num outro
nível e, ainda mais, ele tinha uma bola
de capotão número cinco.
Um
dia o Johnny foi embora e levou consigo a bola de capotão, nada mai justo. Um
americano que gostava de futebol naquela época era uma raridade, a posse da
bola era muito mais que merecida. Todavia, o mundo é sempre uma caixinha de
surpresas.
Muitos
anos mais tarde, quando trabalhava como professor no Departamento de Economia
da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) foi que fiquei sabendo o nome
completo do Johnny, John Cowart Dawsey. Ele foi professor da UNIMEP entre 1989
e 1996, conforme informa o seu Currículo Lattes. Eu, por minha vez, lecionei na
universidade entre 1987 e 2006. Jung chama essas coincidências, que ele não
considera assim, de sincronicidade.
Hoje,
o Johnny (John Cowart Dawsey) é professor do Departamento de Antropologia da
Universidade de São Paulo (USP) e vejo, pelo seu Lattes, que ele é um
pesquisador produtivo. Ele é uma espécie de "dono da bola" na sua
área de conhecimento. Os comentários que ouço sobre ele são sempre abonadores Quanto
ao futebol, tenho informações que ele continua gostando do esporte bretão como
antes. Só que agora ele não é mais uma raridade, pois muitos americanos gostam
de futebol, mas o menino Johnny foi um pioneiro nesta questão, isto ninguém
tira dele.
PS.: A história é verdadeira, aconteceu mesmo. Resolvi transformá-la numa crônica, numa crônica sobre o futebol das crianças em tempos difíceis. A bola é um símbolo, um desejo, é um meio e, ao mesmo tempo um objetivo. Não é o jogador que atinge a meta (o gol), mas a bola chutada por ele. Por ser redonda, não sabemos onde começa e onde termina, o que é um enigma. Por ser redonda ela rola, se não rolasse, o futebol não seria possível. A posse de uma bola de qualidade era na minha infância uma forma de poder. Todavia, o poder tinha que ser exercido de forma democrática, porque não dá para jogar futebol sozinho. Esta é a beleza desse esporte: o "dono da bola" tem que dividir a bola para poder jogar.
PS.: A história é verdadeira, aconteceu mesmo. Resolvi transformá-la numa crônica, numa crônica sobre o futebol das crianças em tempos difíceis. A bola é um símbolo, um desejo, é um meio e, ao mesmo tempo um objetivo. Não é o jogador que atinge a meta (o gol), mas a bola chutada por ele. Por ser redonda, não sabemos onde começa e onde termina, o que é um enigma. Por ser redonda ela rola, se não rolasse, o futebol não seria possível. A posse de uma bola de qualidade era na minha infância uma forma de poder. Todavia, o poder tinha que ser exercido de forma democrática, porque não dá para jogar futebol sozinho. Esta é a beleza desse esporte: o "dono da bola" tem que dividir a bola para poder jogar.
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