quinta-feira, 30 de abril de 2015

O roubo da bola de capotão

Zildo Gallo



Devia ser o ano de 1966, já faz muito tempo, é difícil precisar a data depois de tantos anos decorridos. Éramos um grupo de meninos, todos bem crianças mesmo, nem púberes éramos ainda. O que nos ligava eram as muitas brincadeiras de rua e o futebol, muitas vezes jogado nas ruas também. Para esse esporte improvisávamos bolas quando não as tínhamos, enchendo meias velhas com trapos, dando-lhes uma forma o mais arredondada possível.
O município de Americana (SP) era pequeno naquela época e, apesar de não muito distante do centro da cidade, o lugar onde morávamos poderia ser visto como periférico. Outra coisa que nos ligava era a pobreza, pois poucos escapavam dessa condição naquela vizinhança. Havia muitos meninos no nosso grupo, muitos mesmo, e, num dado momento, não sei exatamente porque e como, desejamos montar um time de futebol, para disputarmos partidas com outros times infantis que existiam na cidade. Achávamo-nos bons de bola o suficiente. Só precisávamos de uma boa bola de capotão.
Um desejo não atendido ou, melhor, impossibilitado de ser atendido, pode levar-nos a fazer coisas não recomendadas pela moral e os bons costumes. Na infância, quando a personalidade está em construção, quando a noção de certo e errado é ainda muito movediça, o "Diabo pode atentar", como diziam os mais velhos. Um dia ele chegou e atentou. Alguns garotos, às escondidas do restante do grupo, foram até o centro da cidade atrás de uma bola, mas só um deles teve a coragem de fazer o combinado. Ele dirigiu-se até a porta de uma loja de produtos esportivos e, quando notou que ninguém estava olhando, pegou uma bola que estava em exposição perto da porta e sumiu, sem que ninguém percebesse.
No mesmo dia ele apareceu no terreno onde brincávamos como uma bola velha, caindo aos pedaços, como costumeiramente fazíamos. Chegou todo orgulhoso, ostentando a bola de capotão de tamanho oficial, acho que era uma Drible; a cor, eu tenho certeza, era branca. Contou-nos o ocorrido e pediu segredo, acho que tinha receio de que seus pais soubessem. Foi assim que conseguimos a nossa bola, de uma forma nem um pouco convencional e lícita. Muito mais tarde é que fui compreender que o nosso silêncio colocou-nos como cúmplices. Este é um aprendizado mais refinado e eles vem com o tempo, com o amadurecimento.
Já tínhamos a bola, mas faltava o jogo de camisas. Quanto a esse objetivo, agimos coletivamente e fizemos uma campanha na vizinhança, pedindo ajuda a todos os nossos conhecidos e parentes, juntando um pouco aqui, um pouco ali. Deu certo, muitos contribuíram e conseguimos comprar o jogo de camisas na loja onde a bola foi roubada. Fizemos isso sem pensar. Talvez fosse a única loja que vendia jogos de camisas, talvez... não sei... Viramos um time, de fato. Adotamos como nome do time o nome do nosso bairro, se não me falha a memória, já se vão cinquenta anos.
O garoto que conseguiu a bola era o nosso melhor jogador, um craque mesmo, era o que eu achava. O tempo foi passando, passando e passou. O nosso time já não mais existia, tornei-me adolescente e cursava o ginásio. Nessa época, num dia qualquer, tomei um baita susto com uma notícia que me chegou, não me lembro exatamente como. Aquele nosso craque foi pego em flagrante furtando dinheiro do escritório onde trabalhava como office-boy. Lembro que a minha cabeça girou: será que deveríamos ter contado aos seus pais sobre o delito cometido? será que seus pais realmente não sabiam? será? será? Confesso que senti alguma culpa, culpa mesmo, pois isso nunca me saiu da cabeça. Caramba! que bela bola era aquela... Como devolvê-la? Como perder o nosso objeto desejado? Será que o Diabo morava nos nossos desejos, como acreditavam os mais velhos? Com o passar dos anos eu fui percebendo que eles tinham razão.
Depois desse episódio nunca mais tive notícias do garoto bom de bola. Pelo que sei ele, que era menor de idade à época, parou por aí. Nunca mais tivemos notícias de nenhum outro acontecimento ilegal. Acho que o susto de ser pego e o fato de ficar à disposição e vigiado pelo Juizado de Menores por algum tempo serviu para corrigir os desvios de caráter. Ainda bem. Naqueles tempos Americana era uma cidade tranquila, com baixo nível de criminalidade. Lembro-me que andávamos à pé pelas madrugadas, voltando de festinhas e nunca corríamos perigos. Fatos como o que relatei eram bem raros e muito mais raros eram os episódios envolvendo violência; quando acontecia algum, era uma espantosa comoção pública.
O tempo foi passando, passando e chegamos aos dias atuais. Hoje, Americana conta com uma estrutura desportiva ampla e pública esparramada pela cidade, o que não acontecia na minha infância. Assim, acredito que o grande desejo dos meninos da cidade não deve ser uma bola de futebol, pois vejo que muitos têm e, quando não têm, a Prefeitura tem e todos podem jogar. Na minha infância, ter uma boa quadra desportiva, um bom campo de futebol e uma boa bola era o máximo. Poucos tinham acesso, só as crianças oriundas de famílias mais ricas de fato tinham, já que elas frequentavam clubes privados, inacessíveis à maioria da população.
E daí, acabaram-se os desejos? Não, de jeito nenhum. Vivemos numa sociedade que produz desejos, muitos desejos, um após o outro. Todo dia um novo desejo é criado, sem que nos demos conta. Hoje as crianças desejam tênis de marca, vídeo games, celulares etc. Os desejos são criados de forma bem mais ostensiva que nos anos sessenta do século passado, quando ainda não éramos, de fato, uma autêntica "sociedade de consumo". Os desejos são criados, mas o acesso a eles ainda não é para todos. O acesso só é possível aos que têm renda, isso que Keynes (economista britânico) chamou de demanda efetiva. Assim, o sonho de ter um tênis bacana na infância não é para todos. Quem nunca ouviu falar de um menino que se viu obrigado a tirar seu tênis por "meninos de rua" e voltar descalço para casa? Eu já, várias vezes.
A criação contínua de desejos, os mais variados possíveis, pela propaganda a serviço da indústria numa sociedade muito desigual como a nossa não pode ser considerada uma coisa boa e, de fato, não é. O aumento da violência, com destaque para os furtos praticados por menores de idade, é um bom exemplo disso. Exigir que crianças, seres em formação, sublimem seus desejos, quando eles são diuturnamente enfiados nas suas pequenas cabeças pelos meios de comunicação, parece-me no mínimo um contrassenso. Na verdade, considero uma grande hipocrisia, pois tentam inculcar a culpa nas vítimas. A hipocrisia é a marca, a grife mais conhecida, da sociedade de consumo.
Quando escrevo estas palavras, sei que muitos entre aqueles que nunca se sentiram privados do acesso aos bens de consumo talvez não consigam compreendê-las. Para compreendê-las é preciso que saiam do seu mundo protegido, indo além dos seus bunkers, os condomínios fechados e os shopping centers protegidos, e se coloquem no lugar dos excluídos, dos muitos excluídos. Eles são muitos mesmo. Não é uma tarefa fácil em tempos tão individualistas, egoístas mesmo, como os tempos atuais, mas é uma tarefa necessária. O colocar-se no lugar dos que sofrem é um ato de caridade, é a verdadeira caridade propugnada pelo cristianismo, que encontra as suas raízes na compaixão. Estamos num país majoritariamente cristão, ou não? Será que somos como aqueles fariseus, aos quais Jesus chamava de sepulcros caiados, que agem como zeladores prestimosos dos bons costumes, das leis, que são belos na aparência e podres por dentro? Aliás, o que conta na sociedade de consumo é a aparência; trata-se de uma sociedade farisaica. Alguém discorda?


2 comentários:

  1. Sociedade farisaica. Concordo plenamente.
    Tomarei a liberdade de compartilhar se assim me for permitido, é claro.

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NOTA DA REDAÇÃO