sexta-feira, 10 de abril de 2015

O monge, o menino, os animais e o papagaio que surgiu do nada

Zildo Gallo

          

Nesta crônica, procurei abordar um assunto que ainda é polêmico. Trato de um aspecto da crueldade humana, a crueldade em relação aos outros animais. Para me tornar o mais claro possível faço a seguinte trajetória: 1) lanço mão da sabedoria oriental, mais especificamente do budismo; 2) relembro de como era a relação com os outros animais na minha infância, nos anos sessenta do século XX e, por último; 3) relato uma experiência vivida por mim e por Claudia, minha companheira, no final do mês de janeiro de 2014, uma experiência bem recente e ainda muito presente na nossa memória.
Começo o artigo citando um trecho do filme do diretor sul-coreano Kim ki-Duk (2003), Primavera, verão, outono, inverno... e primavera: um monge vive com seu jovem aprendiz em um monastério flutuante, onde transmite a ele a filosofia budista. Num dia qualquer, o menino vai à floresta e faz crueldades contra um peixe, um sapo e uma cobra. Amarra uma pedra no corpo de cada um desses animais e se diverte observando o desespero deles enquanto tentam libertar-se. À noite, enquanto o jovem dormia, o seu mestre amarra uma pedra pesada em suas costas. Quando acorda, o menino sente dificuldade para caminhar com a pedra presa no seu corpo. Então, ele se dirige  ao monge e pede para ele retirar a pedra.
Transcrevo aqui o diálogo entre mestre e discípulo conforme traduziu Angela Guida em seu belo artigo A poética da crueldade: um olhar no humano e no não humano: "Ela [a pedra] o incomoda? Sim, mestre. Você fez o mesmo com os peixes? Sim, mestre. Você não fez o mesmo com o sapo? Sim, mestre. Não fez a mesma coisa com a cobra? Sim, mestre. Levante-se! Ande um pouco por aí. Não consigo andar. É muito pesada. Como acha que o peixe, o sapo e a cobra aguentaram? Foi errado o que eu fiz. Vá procurar os animais e os liberte das pedras e eu o libertarei também. Mas se algum deles: peixe, sapo ou cobra estiver morto... você carregará uma pedra em seu coração pelo resto de sua vida". O jovem aprendiz, após a conversa com o mestre, sai em busca dos animais, porém consegue libertar apenas o sapo, pois o peixe e a cobra já tinham morrido. A partir daí o aprendiz carregará na sua consciência, despertada pelo ensino do mestre, o peso da sua crueldade.
Aí está um ensinamento profundo sobre a crueldade humana. Não faça aos demais seres, não só aos seres humanos, o que não gostaria que fizessem contigo. Um aspecto bom desse filme é que ele alarga o conceito de alteridade, incluindo nele todos os outros seres, indo além de ser humano. Às vezes, as ações cruéis não têm conserto para as vítimas. Este é um duro aprendizado para os agentes da crueldade. A compreensão do "não dá para voltar atrás" tem um aspecto curativo; a dor presente na consciência poderá inibir futuras crueldades, ela tem um papel civilizatório, humanizador, é o famoso "aprendizado pela dor".
Hoje, para a maioria dos humanos, a crueldade em relação a outro ser humano já é bem compreensível. Todavia, em relação aos outros animais, a situação é bem diferente ainda, apesar dos avanços que vêm acontecendo há décadas. Na minha infância, nos anos sessenta do século passado, o sofrimento dos outros seres viventes não estava muito presente no nosso dia-a-dia, acho que nem um pouco presente.
No bairro onde morava, Vila Jones, no município de Americana (SP), muitas crianças tinham o hábito de caçar e engaiolar passarinhos. A minha rua ficava próxima ao sítio da família Jones, que contava com uma plantação de eucaliptos e com a mata ciliar da microbacia do córrego Pyles. Essa situação ambiental possibilitava uma vida silvestre até que diversificada, especialmente em relação aos pássaros. Diante da diversidade de aves, vários meninos de meu convívio armavam arapucas e muitos passarinhos caíam nelas. Os mais visados eram os de plumagens coloridas e os de belos cantos. Os pardais, que não se encaixavam em nenhuma das categorias, quando caíam nas armadilhas, eram soltos em seguida; a beleza trazia uma sina ruim. Alguns meninos caçavam e vendiam os exemplares caçados, havia um comércio visível e aceito, não questionado; naqueles tempos, ninguém era repreendido pelos pais por praticarem essas atividades, que hoje são consideradas ilícitas, inclusive.
Pior que a prisão em gaiolas, era a caça com estilingues, outra prática normal na minha infância. A caça com estilingues era crueldade pura, era um mórbido prazer, o prazer de tirar a vida. Eu nunca engaiolei e nem matei passarinhos, mas não tinha juízo de valor sobre a questão, de tão normal que eram as práticas. Tive estilingues, mas usava-os para aperfeiçoar minha pontaria, usando latinhas como alvos. Costumávamos pegar argila no córrego Pyles para fazer bolinhas do tamanho de bolas de gude, que endurecíamos no fogo. Essa arte cerâmica primitiva funcionava e produzíamos um tipo de munição muito dura e fatal para as frágeis avizinhas. Naquela época, caçar e prender pássaros não me atraía, pois estava muito envolvido com gibis e futebol, de onde tirava a minha diversão.
Comecei a me preocupar verdadeiramente com a crueldade em relação aos animais na minha adolescência, quando cursava o ginásio, e foi algo que aconteceu por conta própria, a escola não ajudou neste sentido, pois me lembro que, nas feiras de ciência, sapos eram expostos com as vísceras à mostra e com os órgãos funcionando (coração, pulmão etc.); aquilo já me causava um certo mal-estar. Com o tempo passei a defender os animais da crueldade humana, embora não seja efetivamente um ativista da questão. Inclusive, admiro muito os que fazem esse tipo de ativismo. Procuro manter uma coerência neste sentido, por exemplo, nunca presenciei um rodeio, por conta dos maus tratos infringidos aos cavalos e touros e sempre que posso, nos minhas aulas, exponho a minha visão sobre o assunto.
Agora, dando um salto para os tempos atuais, vou relatar uma experiência vivida por mim e por Claudia, no final de janeiro de 2014, quando chegamos de uma longa viagem pela Europa. Antes do relato, acho conveniente desenhar o cenário do acontecido: a minha residência fica num condomínio de casas, com muita área verde, no Distrito de Barão Geraldo, no município de Campinas (SP), muito próximo da Mata de Santa Genebra, um fragmento de bom tamanho da Mata Atlântica que sobreviveu ao imenso crescimento urbano da região e que é legalmente protegida nos dias de hoje.
Na noite do dia da nossa chegada da viagem, num dado momento, abri as duas folhas envidraçadas da porta da nossa sala de jantar e notei alguma coisa verde que se movimentava no quintal. Quando me aproximei, vi que era um papagaio. Andava com dificuldade e parecia machucado. Muito surpreso, peguei-o sem que ele oferecesse resistência e o levei para dentro de casa. Mostrei-o à minha companheira que também expressou grande surpresa e comecei a observá-lo para ver se tinha algum machucado. Não tinha nenhum, mas estava muito fraco. Notei que tinha as asas aparadas, o que indicava que ele era um animal "doméstico". Era tarde da noite e não sabíamos o que fazer naquele momento. Arrumamos um abrigo numa caixa de papelão e colocamos alguns grãos de cereais, alguns pedaços de frutas e água. O bichinho comeu sem parar. No dia seguinte, ele estava com outro ânimo, o mal dele era fome, muita fome.
Começamos então uma busca pela vizinhança, à procura do dono da ave perdida. O condomínio tem apenas 43 casas e, assim, a tarefa terminou logo, mas ninguém era dono do bichinho. Ele ficou muito à vontade na nossa casa e notamos que era muito dócil. À noite, quando estávamos sentados no sofá vendo televisão ele se aproximou, subiu no meu pé e começou a se roçar. Peguei-o no colo e ele se aninhou. Claudia fez o mesmo e ele repetiu o comportamento e, a seguir, ela deu-lhe um nome: Louro Antônio. A partir daquele momento ele passou a ser chamado assim. Apegar-se a um animalzinho como aquele é muito rápido. Começamos uma discussão sobre o que fazer com ele, o que não era tarefa fácil, pois sempre defendemos que as aves devem ficar soltas na natureza e não presas em residências. O que fazer?
Levantamos a hipótese de ficarmos com ele até que as asas crescessem e ele pudesse voar. Aí surgiu uma questão: ele era doméstico demais e poderia querer ficar nas proximidades e o nosso condomínio é cheio de gatos. Ele seria uma presa muito fácil. Aliás, não entendi como ele não foi comido por algum gato, pois acredito, pelo seu estado de fraqueza, que ele ficou muito tempo no nosso quintal. Como ele apareceu em casa também é um mistério, pois estava impossibilitado de voar e o nosso condomínio é todo cercado, mistério insolúvel...
Claudia teve a ideia de, no dia seguinte, irmos até a sede da administração da Mata de Santa Genebra, pois levantou a hipótese de que poderia existir lá algum trabalho de reinserção de animais silvestres nos habitats naturais. No dia seguinte, de manhã, fomos até a Mata e, por sorte, encontramos o biólogo responsável. Ele nos disse que não havia esse tipo de serviço lá, mas que eles tinham um convênio com o proprietário de um sítio em Jundiaí (SP) que recebia os animais, cuidava deles até que estivem preparados e, em seguida, soltava-os na natureza. Falou-nos também que, quando as aves domesticadas eram soltas, era muito comum elas não se afastarem da sede do sítio, em função de estarem acostumadas ao convívio com os seres humanos.
Imaginei que isso aconteceria com Louro Antônio, pois acredito que ele enfrentaria dificuldades para conseguir o próprio alimento e lá ele poderia tê-lo em abundância. Ficamos contentes com a possibilidade desse novo lar e voltamos para casa para apanhar Louro Antonio. No caminho de volta para a Mata, ele ficou um tanto estressado e começou a gritar, acho que entendeu o que estava acontecendo, pois acho que ele já nos tinha adotado como seus novos donos. Essa foi a saga de Louro Antônio, o papagaio que surgiu do nada. Acho que ele teve sorte por nos encontrar, pois acredito que mudamos positivamente o seu destino.
Ainda bem que hoje existem seres humanos preocupados em reparar os danos provocados pela crueldade em relação aos animais. Muitas espécies desapareceram por conta dela e muitas ainda correm riscos. Escrevi este artigo para honrar aqueles que militam na causa da defesa dos nossos irmãozinhos que ficaram completamente  indefesos diante da avassaladora expansão da humanidade por todo o planeta Terra e em homenagem ao Louro Antônio, que deve estar muito feliz no meio das outras aves que comungam com ele um destino parecido com o seu.

Referência
GUIDA, Angela. A poética da crueldade: um olhar no humano e no não humano (httpwww.letras.ufmg.brposlit08_publicacoes_pgsEm%20Tese%201717-3TEXTO%201%20ANGELA.pdf -  Acesso em: 09/04/2015).

4 comentários:

  1. Olá Prof. Zildo ! Esse artigo me fez voltar á minha infância vivida nos anos 80 em São Carlos - SP que foi muito similar á sua em diversos aspectos, inclusive com relação ás caças com alçapão e estilingue. Hoje como estudante ambiental procuro preparar meu quintal onde recebo diariamente as visitas de seres tão belos e inofensivos, que ornamentam minha casa e tornam o ambiente mais aconchegante e natural. O incrível é que eles retribuem o que recebem e sentem isso. Uma troca justa e "barata". Vou compartilhar com meus amigos. Abraço professor Zildo.

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  2. Oi, Zildo. Enquanto lia o texto tive a deliciosa sensação de conhecer também o Louro Antonio. Cresci no interior e essas visitas inesperadas de pássaros e papagaios que caiam de árvores eram comuns, tive alguns Louros Antonio em nossos ombros. Obrigada por me levar a essas imagens boas e inesqueciveis...

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    1. Bia, há que se sentir compaixão pelos milhões de pessoas, principalmente as crianças, que vivem nas cidades grandes e que perderam completamente o contato com a natureza. A relação com os outros seres da natureza servem para alavancar a nossa humanidade. Somos humanos num processo de alteridade e aprofundamos a nossa humanidade em relação com os outros e os outros são todos os outros, não apenas os humanos. Neste momento da trajetória da humanidade, é cada vez mais necessária a harmonização com a natureza e com todos os seres que dela participam.

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