terça-feira, 17 de março de 2015

Sobre a palavra falada/cantada

Zildo Gallo




Um aedo era, na Grécia antiga, um artista que cantava as epopeias acompanhando-se de um instrumento musical. O mais célebre dos aedos é Homero que produziu duas obras insuperáveis da literatura mundial: Odisseia e Ilíada. Os aedos costumavam contar/cantar as suas histórias perante uma assembleia que participava de um banquete. A comensalidade também é muito antiga e sempre combinou muito bem com a poesia. O aedo era um poeta-cantador que percorria a Grécia cantando um repertório composto de lendas e tradições populares ao som de liras e cítaras.
Estes cantadores/contadores de histórias não são uma exclusividade da Grécia, eles existiram em muitas culturas. Os povos celtas tinham os seus bardos, que cumpriam a mesma função dos aedos, por exemplo. Todos os povos contam histórias, que passam de uma geração para outra. Essa é a origem primitiva da literatura. O verso cantado era um recurso mnemônico (de memória), muito importante em tempos de inexistência da escrita ou de muito poucas pessoas com acesso a ela. Poesia e música juntaram-se há muito tempo, harmoniosamente, para registrar a trajetória da humanidade, a sua luta, suas alegrias e dores e seus sonhos.
Não precisamos ir à Europa e voltarmos alguns milênios no tempo para entendermos o significado dessas manifestações. As tribos indígenas brasileiras, que ainda preservam as suas tradições, têm os seus cânticos onde os mais velhos passam aos mais jovens a história e a cultura do seu povo. Mas não são apenas os indígenas. O Brasil rural também tinha uma tradição oral onde muitas lendas e causos eram narrados à beira de fogueiras e fogões à lenha pelos aedos caboclos, trata-se daquilo que chamamos de folclore.
O Brasil rural. a partir dos anos 50 do século passado, começou um processo de definhamento e hoje, na segunda dezena do século XXI, a população rural significa apenas cerca de 15% da população total. No meio urbano a tradição oral definhou e praticamente sumiu. Hoje, a cidade é o lugar da linguagem escrita e dos meios de comunicação de massa. As narrativas vão se perdendo com o passar do tempo e, ironicamente, a melhor forma de recuperar, e preservar as nossas antigas histórias é pela escrita, pelo trabalho abnegado de alguns pesquisadores e artistas.
Quando um povo perde a sua memória ele perde a sua essência. A memória é o arquivo vivo da forma de ser de cada grupo social, sem ela o grupo perde o sentido e se deteriora. No Brasil temos exemplos aos montes, basta que olhemos para as muitas tribos indígenas que se "aculturaram" e abandonaram as suas tradições, simplesmente deixaram de ser o que eram, perderam a sua essência, as suas almas.
No nosso meio urbano é muito comum as crianças saberem sobre os gnomos, as fadas e duendes e saberem muito pouco ou nada sobre os nossos seres da floresta, como o Saci-Pererê, o Curupira, entre muitos outros. No antigo rural existiam histórias de saci aos borbotões. Nas cidades elas sobrevivem nos livros de Monteiro Lobato e nos quadrinhos de Ziraldo, na linguagem escrita. Perdeu-se a riqueza da variedade, infelizmente...
Preocupado com esta questão que aqui relato e com a importação cultural do "Halloween" dos Estados Unidos, em 2003, o deputado federal Aldo Rebelo, apresentou o Projeto de Lei 2762/2003, que propõe transformar o dia 31 de outubro no Dia Nacional do Saci-Pererê. Lembro-me que muitos o ridicularizaram. À primeira vista tal projeto poderia parecer sem importância, uma mera implicância ideológica, mas, de fato, não era. Consigo entender a sua preocupação. Para os defensores do "progresso" contínuo, do eterno "caminhemos para frente", as narrativas "ingênuas" podem parecer coisa de "gente atrasada", trata-se de uma forma fria e calculista de ver o mundo. Esses já perderam as suas almas, irremediavelmente, ou, melhor, venderam-na ao mercado, ao mundo dos mass media.

Para concluir, deixo aqui um trecho extraído do meu artigo "Sobre a memória: o mito grego e a arte nos dias de hoje", que resume, acho que resume, a minha intenção ao tentar escrever  um texto sobre a palavra falada/cantada (http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2015/02/sobre-memoria-o-mito-grego-e-arte-nos_3.html).

"Hoje, invocar as musas tem um significado muito profundo, trata-se de um resgate, de um religar-se às coisas do espírito. A humanidade tornou-se uma grande sociedade de consumo, colocando o acesso aos bens materiais, os novos bezerros de ouro, como objetivo central da existência. Assim, um povo que não preserva os seus patrimônios histórico, arquitetônico e cultural, nas suas mais diversas manifestações, "em nome do progresso", como se costuma dizer, como é o caso de boa parte do povo brasileiro, perde a sua melhor forma de transmitir a sua memória e, um povo desmemoriado, perde a sua alma.
Precisamos incentivar a criação artística, o resgate de antigas tradições culturais de caráter popular e trazer à lembrança as nossas lendas e "causos", resgatando o nosso folclore. No folclore a situação é grave. Esquecemo-nos dos nossos seres elementais como o Saci e o Curupira e importamos gnomos e duendes; nada contra eles, mas nós também temos os nossos guardiões da natureza e eles não podem e nem merecem ser esquecidos."

PS.: Vejam o meu artigo "Sobre a memória: o mito grego e a arte nos dias de hoje", neste blog.

Um comentário:

  1. Este artigo trata rapidamente do porquê devemos resgatar as histórias da nossa tradição oral, para resgatar a alma do nosso povo, que se perdeu no processo violento de urbanização ocorrido na segunda metade do século XX.

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