quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Mais sobre a água: usos múltiplos, escassez e cobrança pelo uso

Zildo Gallo


A água apresenta várias possibilidades de uso. Além de ser um re­curso vital, serve ao aproveitamento hidrelétrico, à navegação, ao abastecimento das cidades e indús­trias, das quais recebe efluentes domésticos e industriais etc. E, quando um curso de água se presta a diversos usos, podem surgir conflitos, pois existem rivalidades no uso de recur­sos escassos. Com frequência o crescimento das populações urbanas compete e conflita com as atividades produtivas em relação ao uso da água. A Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH) manifestou-se sobre a questão, em 13 de novembro de 1987, através da Carta de Salvador:
A água, pelo importante papel que desempenhou no processo de desen­vol­vi­mento econômico e social, é um bem econômico de expressivo valor, su­jeito a con­flitos entre seus usuários potenciais.
Assim, o País deve valorizar as oportunidades de aproveitamento de re­cur­sos hídricos para múltiplas finalidades – abastecimento urbano, abasteci­mento indus­trial, controle ambiental, irrigação, geração de ener­gia elé­trica, navegação, pisci­cultura, recreação e outras – analisando seus empre­endimentos em contextos de desenvolvimento regional inte­grado, e contem­plando vários objetivos, principal­mente de natureza eco­nômica, social e ambiental.
Na primeira metade do século XX, o Código de Águas, de 1934, já tinha enfocado a questão dos usos múlti­plos, quando dispôs, nos artigos 37 e 38, que o uso das águas públicas deveria realizar-se sem prejuízo da navegação, desde que se destinasse ao comércio. No Artigo 143, ele dispôs os interesses a serem considerados nos aproveitamentos de ener­gia, que era seu principal foco: a) da alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas; b) da navega­ção; c) da irrigação; d) da proteção contra inundações; e) da conservação e livre circulação de peixe; f) do escoamento e rejei­ção das águas.
Sem nunca desconsiderar a importância das leis que regem a matéria, no estudo dos usos múltiplos, deve-se sempre levar em consideração as particularida­des das bacias hidrográficas. Não dá para adotar uma hierarquia genérica para o uso das águas, pois cada aquífero tem características próprias. Devem ser conside­rados os aspectos hidrológicos, geográficos, políticos e econômicos. Esta é uma das razões da adoção da bacia hidrográfica como unidade físico-territorial de gestão das águas, com a efetiva participação das comunidades locais.
A questão da disponibilidade de água, para algumas bacias do Estado de São Paulo, por exemplo, nos anos mais recentes, tem se colocado de forma osten­siva. Além da bacia do Alto Tietê, a do Piracicaba, do Capivari, do Jundiaí, e da Baixada Santista enfrentam este tipo de problema. A intensa industrialização que se fez acompanhar por um processo de urbanização não menos vigoroso é a causa desse fenômeno.
Exemplificando: a Região Me­tro­poli­tana de São Paulo apesar de ser uma região com chuva abundante (a precipitação média na bacia do Alto Tietê é de cerca de 1300 mm), a área da bacia de captação dessa precipitação é pequena e as bacias em toda a volta também são pequenas, portanto, há uma es­cassez relativa pronun­ciada, que é agravada pelo enorme contingente populacional. Poucas ci­dades do mesmo porte enfrentam o desafios vivenciados por São Paulo em relação aos recursos hídricos.
Todavia, esse problema de escassez, é uma visão de hoje. Por certo não foi a visão de São Paulo nos tempos de Anchieta e Nóbrega e nem mesmo até o início do século XX. Isso tem a ver com o tamanho que São Paulo acabou alcançando. Hoje, a Grande São Paulo, com seus 39 municípios, tem cerca de 20 milhões de habitantes, abrigando num território pequeno (8.047 Km2) mais ou menos 10% da população nacional, e tem um PIB (Produto Interno Bruto) de cerca de 600 bilhões de reais. É muita gente e muita atividade econômica para a bacia do Alto Tietê; nessas condições, a água deixa de ser abundante e, na lin­guagem dos eco­nomistas, por sua relativa escassez, passa a ser chamada de re­curso hídrico. Como tal passa a ser considerada como um bem econômico e um objeto de preo­cupa­ção da economia, buscando-se assegurar, assim, que seu uso se dê da forma mais racional possível.
Contudo, no Brasil, um país de cultura urbana recente, a água encontra-se associada forte­mente à ideia de abundância. O conceito água grátis encontra-se profundamente enraizado na cultura do povo brasileiro. As baixas tarifas cobradas pelos serviços públicos dos municípios que, muitas vezes, mal cobrem os custos de captação, tratamento, distribuição da água e manuten­ção dos respectivos serviços, acabam encorajando um grande desperdício e, por consequência, um desprezo pela conservação e prote­ção dos recursos hídricos.
Tendo em vista a intensificação dos usos, principalmente dos consun­ti­vos (irri­gação, abastecimento urbano e industrial), que, em larga medida, não retor­nam para os corpos d’água, e da diluição de efluentes domésticos e industriais não tratados, que tem tor­nado cada vez mais escassa a existência de água de boa quali­dade para consumo hu­mano, a sua proteção faz-se cada vez mais necessária. É neste sentido que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos se colocou a partir da constituição de 1988 e vem sendo, aos poucos, implantada no território nacional; trata-se de uma forma de dar alguma racionalidade ao uso dos recursos hídricos, evitando desperdícios.
A cobrança pelo uso das águas é um instituto novo no mundo e novíssimo no Brasil. Entretanto, o fundamento legal para a cobrança pelo seu uso remonta ao Código Civil de 1916, quando se estabeleceu a utilização dos bens públicos de uso comum podia ser gra­tuita ou retribuída. No mesmo sentido, o Código de Águas de 1934 estabeleceu que o uso comum das águas pode ser gratuito o retribuído. Poste­riormente, a Lei 6.938 de 1981 incluiu a possibilidade de imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pelo uso de recursos ambientais com fins econômicos. Finalmente, em 1997, através da Lei 9.433 ficou definida a cobrança como um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos. A Lei 9.984/2000, que criou a Agên­cia Nacional de Águas (ANA), atribuiu a ela a competência da cobrança pelo uso das águas de domínio da União.
A Carta Europeia da Água, proclamada pelo Conselho da Europa em Es­trasburgo, França, em maio de 1968, em seu artigo 10, considerou que “a água é um patrimônio co­mum, cujo valor deve ser reconhecido por todos” e que “cada um tem o dever de econo­mizá-la e utilizá-la com cuidado”. A Declaração de Dublin, em janeiro de 1992, estabele­ceu no seu princípio número quatro que os recursos hídricos de um país são um bem de valor. A Agenda 21, que resultou da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambi­ente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, também reco­mendou a cobrança pelo uso dos recursos hídricos.
Para o Estado de São Paulo, a sua Constituição em vigor estabelece, no Ar­tigo 211, a cobrança pela utilização dos recursos hídricos, e a Lei 7.663/91, no Artigo 3o, inciso III, considera o “recurso hídrico como um bem público, de valor econômico, cuja utilização deve ser cobrada, observados os aspectos de quanti­dade, qualidade e as peculiaridades das bacias hidrográficas”. A Lei estabe­lece que, na sua regulamentação, com relação à cobrança pelo uso ou derivação, deverão ser obedecidos os critérios que seguem: a classe de uso preponderante em que for enquadrado o corpo de água onde se localiza o uso ou derivação, a disponi­bilidade hídrica local, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, a vazão captada em seu regime de variação, o consumo efetivo e a finalidade a que se destina. Para a cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, con­forme a mesma lei, deverão ser respeitados os seguintes critérios: a classe de uso em que for enquadrado o corpo d’água receptor, o grau de regularização assegu­rado por obras hidráu­licas, a carga lançada e seu regime de variação, ponderando-se, dentre outros, os parâ­metros orgânicos e físico-químicos dos efluentes e a natu­reza da atividade responsável pelos mesmos.
A cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, baseada no princí­pio poluidor-pagador, é um dispositivo que possui muitas deficiências. Contudo, goza de grande popularidade, derivada da conjunção de vários fatores: ele faz apelo à noção de justiça, recorre às regras do mercado e não a uma burocracia especializada, pro­metendo uma solução ótima e contribuindo com o mito da “racionalidade econômica”. Um problema que se coloca é como avaliar o custo da poluição. Também parece perigoso tentar legiti­mar atentados ao ambiente que comprometem o funcionamento dos ciclos ecológicos dos quais dependem a repro­dução dos recursos renováveis; se tais atentados forem de caráter irreversível, o dano não é passível de cálculo. Contudo, o exposto acima não inviabiliza de forma definitiva a utilização do princípio poluidor-pagador. Ele pode ser usado no sentido de forçar a implantação de sistemas eficientes de tratamento de esgotos. A experiência francesa na gestão de bacias hi­drográficas, que utiliza o princípio, tem mostrado a possibilidade da sua utilização.
Referência

GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.

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