A água apresenta várias possibilidades de uso. Além de ser um recurso
vital, serve ao aproveitamento hidrelétrico, à navegação, ao abastecimento das
cidades e indústrias, das quais recebe efluentes domésticos e industriais etc.
E, quando um curso de água se presta a diversos usos, podem surgir conflitos,
pois existem rivalidades no uso de recursos escassos. Com frequência o
crescimento das populações urbanas compete e conflita com as atividades
produtivas em relação ao uso da água. A Associação Brasileira de Recursos
Hídricos (ABRH) manifestou-se sobre a questão, em 13 de novembro de 1987,
através da Carta de Salvador:
A água, pelo importante papel que
desempenhou no processo de desenvolvimento econômico e social, é um bem
econômico de expressivo valor, sujeito a conflitos entre seus usuários
potenciais.
Assim, o País
deve valorizar as oportunidades de aproveitamento de recursos hídricos para
múltiplas finalidades – abastecimento urbano, abastecimento industrial,
controle ambiental, irrigação, geração de energia elétrica, navegação, piscicultura,
recreação e outras – analisando seus empreendimentos em contextos de
desenvolvimento regional integrado, e contemplando vários objetivos,
principalmente de natureza econômica, social e ambiental.
Na primeira metade do século XX, o Código de Águas, de 1934, já
tinha enfocado a questão dos usos múltiplos, quando dispôs, nos artigos 37 e
38, que o uso das águas públicas deveria realizar-se sem prejuízo da navegação,
desde que se destinasse ao comércio. No Artigo 143, ele dispôs os interesses a
serem considerados nos aproveitamentos de energia, que era seu principal foco:
a) da alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas; b) da navegação;
c) da irrigação; d) da proteção contra inundações; e) da conservação e livre
circulação de peixe; f) do escoamento e rejeição das águas.
Sem nunca desconsiderar a importância das leis que regem a
matéria, no estudo dos usos múltiplos, deve-se sempre levar em consideração as
particularidades das bacias hidrográficas. Não dá para adotar uma hierarquia
genérica para o uso das águas, pois cada aquífero tem características próprias.
Devem ser considerados os aspectos hidrológicos, geográficos, políticos e econômicos.
Esta é uma das razões da adoção da bacia hidrográfica como unidade
físico-territorial de gestão das águas, com a efetiva participação das
comunidades locais.
A questão da disponibilidade
de água, para algumas bacias do Estado de São Paulo, por exemplo, nos anos
mais recentes, tem se colocado de forma ostensiva. Além da bacia do Alto
Tietê, a do Piracicaba, do Capivari, do Jundiaí, e da Baixada Santista
enfrentam este tipo de problema. A intensa industrialização que se fez
acompanhar por um processo de urbanização não menos vigoroso é a causa desse
fenômeno.
Exemplificando: a Região Metropolitana de São Paulo apesar de
ser uma região com chuva abundante (a precipitação média na bacia do Alto Tietê
é de cerca de 1300 mm), a área da bacia de captação dessa precipitação é
pequena e as bacias em toda a volta também são pequenas, portanto, há uma escassez
relativa pronunciada, que é agravada pelo enorme contingente populacional.
Poucas cidades do mesmo porte enfrentam o desafios vivenciados por São Paulo
em relação aos recursos hídricos.
Todavia, esse problema de escassez, é uma visão de hoje. Por
certo não foi a visão de São Paulo nos tempos de Anchieta e Nóbrega e nem mesmo
até o início do século XX. Isso tem a ver com o tamanho que São Paulo acabou
alcançando. Hoje, a Grande São Paulo, com seus 39 municípios, tem cerca de 20
milhões de habitantes, abrigando num território pequeno (8.047 Km2)
mais ou menos 10% da população nacional, e tem um PIB (Produto Interno Bruto)
de cerca de 600 bilhões de reais. É muita gente e muita atividade econômica
para a bacia do Alto Tietê; nessas condições, a água deixa de ser abundante e,
na linguagem dos economistas, por sua relativa escassez, passa a ser chamada
de recurso hídrico. Como tal passa a ser considerada como um bem econômico e
um objeto de preocupação da economia, buscando-se assegurar, assim, que seu
uso se dê da forma mais racional possível.
Contudo, no Brasil, um país de cultura urbana recente, a água
encontra-se associada fortemente à ideia de abundância. O conceito água grátis encontra-se profundamente enraizado na cultura do povo brasileiro. As baixas tarifas cobradas pelos
serviços públicos dos municípios que, muitas vezes, mal cobrem os custos de captação,
tratamento, distribuição da água e manutenção dos respectivos serviços, acabam
encorajando um grande desperdício e, por consequência, um desprezo pela
conservação e proteção dos recursos hídricos.
Tendo em vista a intensificação dos usos, principalmente dos
consuntivos (irrigação, abastecimento urbano e industrial), que, em larga
medida, não retornam para os corpos d’água, e da diluição de efluentes
domésticos e industriais não tratados, que tem tornado cada vez mais escassa a
existência de água de boa qualidade para consumo humano, a sua proteção
faz-se cada vez mais necessária. É neste sentido que a cobrança pelo uso dos
recursos hídricos se colocou a partir da constituição de 1988 e vem sendo, aos
poucos, implantada no território nacional; trata-se de uma forma de dar alguma racionalidade
ao uso dos recursos hídricos, evitando desperdícios.
A cobrança pelo uso das águas é um instituto novo no mundo e
novíssimo no Brasil. Entretanto, o fundamento legal para a cobrança pelo seu
uso remonta ao Código Civil de 1916, quando se estabeleceu a utilização dos
bens públicos de uso comum podia ser gratuita ou retribuída. No mesmo sentido,
o Código de Águas de 1934 estabeleceu que o uso comum das águas pode ser
gratuito o retribuído. Posteriormente, a Lei 6.938 de 1981 incluiu a
possibilidade de imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de
recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pelo
uso de recursos ambientais com fins econômicos. Finalmente, em 1997, através da
Lei 9.433 ficou definida a cobrança como um dos instrumentos de gestão dos
recursos hídricos. A Lei 9.984/2000, que criou a Agência Nacional de Águas
(ANA), atribuiu a ela a competência da cobrança pelo uso das águas de domínio
da União.
A Carta Europeia da Água, proclamada pelo Conselho da Europa em
Estrasburgo, França, em maio de 1968, em seu artigo 10, considerou que “a água é um patrimônio comum, cujo valor
deve ser reconhecido por todos” e que “cada
um tem o dever de economizá-la e utilizá-la com cuidado”. A Declaração de
Dublin, em janeiro de 1992, estabeleceu no seu princípio número quatro que os
recursos hídricos de um país são um bem de valor. A Agenda 21, que resultou da
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada
no Rio de Janeiro, em junho de 1992, também recomendou a cobrança pelo uso dos
recursos hídricos.
Para o Estado de São Paulo, a sua Constituição em vigor
estabelece, no Artigo 211, a
cobrança pela utilização dos recursos hídricos, e a Lei 7.663/91, no Artigo 3o,
inciso III, considera o “recurso hídrico
como um bem público, de valor econômico, cuja utilização deve ser cobrada,
observados os aspectos de quantidade, qualidade e as peculiaridades das bacias
hidrográficas”. A Lei estabelece que, na sua regulamentação, com relação à
cobrança pelo uso ou derivação, deverão ser obedecidos os critérios que seguem:
a classe de uso preponderante em que for enquadrado o corpo de água onde se
localiza o uso ou derivação, a disponibilidade hídrica local, o grau de
regularização assegurado por obras hidráulicas, a vazão captada em seu regime
de variação, o consumo efetivo e a finalidade a que se destina. Para a cobrança
pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, conforme a mesma lei,
deverão ser respeitados os seguintes critérios: a classe de uso em que for
enquadrado o corpo d’água receptor, o grau de regularização assegurado por
obras hidráulicas, a carga lançada e seu regime de variação, ponderando-se,
dentre outros, os parâmetros orgânicos e físico-químicos dos efluentes e a
natureza da atividade responsável pelos mesmos.
A cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes,
baseada no princípio poluidor-pagador,
é um dispositivo que possui muitas deficiências. Contudo, goza de grande
popularidade, derivada da conjunção de vários fatores: ele faz apelo à noção de
justiça, recorre às regras do mercado e não a uma burocracia especializada, prometendo
uma solução ótima e contribuindo com o mito da “racionalidade econômica”. Um
problema que se coloca é como avaliar o custo da poluição. Também parece
perigoso tentar legitimar atentados ao ambiente que comprometem o
funcionamento dos ciclos ecológicos dos quais dependem a reprodução dos
recursos renováveis; se tais atentados forem de caráter irreversível, o dano
não é passível de cálculo. Contudo, o exposto acima não inviabiliza de forma
definitiva a utilização do princípio poluidor-pagador. Ele pode ser usado no sentido de forçar a implantação de sistemas
eficientes de tratamento de esgotos. A experiência francesa na gestão de bacias
hidrográficas, que utiliza o princípio, tem mostrado a possibilidade da sua
utilização.
Referência
GALLO, Zildo. Ethos, a
grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora,
2007.
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