Zildo Gallo
Este artigo foi originalmente publicado
em 11 de dezembro de 2014 e, devido à atualíssima importância do seu conteúdo, resolvi
republicá-lo hoje, 28 de maio de 2016. Nele eu trato de uma questão essencial
para a humanidade, que é a busca necessária de saídas coletivas para a crise
socioambiental e de valores que atinge toda ela, em todas as partes do nosso planeta
Terra nos dias de hoje. Na minha compreensão, a crise contemporânea tem fortes
relações com o avanço do pensamento liberal a partir do século XVIII,
principalmente no Ocidente, que colocou o indivíduo no centro do mundo, em
detrimento dos grupos sociais. Essa centralidade no indivíduo acabou por
estimular um individualismo e um egoísmo crescentes, a ponto de a dimensão altruísta
do ser humano ser deixada num distante segundo plano. Com o avanço da sociedade
de consumo no pós Segunda Grande Guerra, o individualismo acentuou-se, mas com
as crises que se espraiam por todo o planeta, uma verdadeira crise civilizatória,
as concepções liberais estão sendo postas em cheque. É um pouco disso que trata
o presente artigo. Ao artigo!
Na década de 90 do século XX, aconteceu um deslocamento da questão
ambiental para a esfera do consumo, indo além e superando as críticas ao
sistema industrial e às populações pobres do "Terceiro Mundo". Não se
tratava de ignorar impactos da indústria e da pobreza sobre o meio ambiente,
mas de reconhecer o papel do excesso, do consumo abusivo, desnecessário, na
questão ambiental, destacando os seus resultados negativos, como a descomunal
produção de resíduos e a extração exponencial de matérias primas da natureza,
por exemplo. A princípio, as discussões limitaram-se à ideia do "consumo
verde", que apenas enfatizava mudanças técnicas nos produtos e serviços e
mudanças comportamentais dos consumidores individuais. Mas tal abordagem,
ainda que necessária, é insuficiente e, assim, logo depois, apareceram
propostas que enfatizavam ações coletivas e políticas públicas. Trata-se da
estratégia do “consumo sustentável”, que busca se diferenciar da anterior por
privilegiar políticas públicas e ações individuais e coletivas voltadas para a
sustentabilidade socioambiental, onde aparece uma pretensão política e
transformadora mais definida.
Depois de muitos anos pensando de forma individualista e utilitarista, o
mundo, com destaque para a sua porção ocidental, precisa voltar-se ao coletivo,
pois as saídas para a grande crise socioambiental na qual o planeta está
mergulhado não se resolve a partir do consumidor com suas propaladas autonomia
e racionalidade, como acreditam os economistas liberais. Inclusive porque
acreditar em autonomia do consumidor em tempos de marketing e propaganda é no
mínimo ingenuidade e, talvez, indo além da ingenuidade, má-fé. O mundo precisa
de saídas coletivas e o pensamento liberal tem seus limites para pensar além do
indivíduo e da sua hipotética liberdade para decidir.
Em termos internacionais o que acabou acontecendo é que se priorizou, no
campo do discurso sobre consumo sustentável, uma redução relativa no consumo de
determinadas matérias primas e energia, como o petróleo, por exemplo, e não
uma mudança nos processos e padrões de produção, distribuição e consumo, deixando
de dar a atenção necessária aos conflitos gerados pela desigualdade no acesso
aos recursos da natureza, tão importante para os países não desenvolvidos,
localizados majoritariamente no hemisfério sul. Mudar os padrões e não os
níveis de consumo passou a ser o objetivo visto como politicamente adequado nos
países desenvolvidos do hemisfério norte. Consome-se a mesma quantidade de
combustível, por exemplo, substituindo os derivados de petróleo pelo
biocombustível, que é renovável. Todavia, o biocombustível vem da agricultura e
a sua produção ocupa terras antes destinadas à produção de alimentos. Os
impactos dessa mudança foram devidamente analisados? Foram de alguma forma
avaliados? Talvez esta não tenha sido a melhor saída. Há que se verificar.
Dá para se falar de consumo sustentável considerando apenas o indivíduo,
tomando-o a partir da sua consciência individual? Resposta: até que dá, mas tem
limites, porque, na maioria dos casos, pelo menos nos mais complexos, as saídas
não são individuais mas coletivas. Por exemplo, quando se aborda a questão
energética, da mobilidade urbana, do tratamento dos resíduos produzidos pelo
consumo, da segurança alimentar, da segurança hídrica, da saúde, da educação,
da moradia, entre outras, a melhor forma de abordá-las é a partir do coletivo.
Na verdade, pouca coisa pode ser abordada única e exclusivamente do ponto de
vista individual.
Então, já que o mais correto é a abordagem coletiva, por conta de
envolver tanto a sociedade quanto o indivíduo, em vez de se focar no consumo
sustentável, melhor seria focar na ideia de sociedade sustentável, pois o
consumo é mais um componente das muitas atividades sociais, junto com muitas
outras também importantes.
Melhor exemplificar para deixar mais clara a exposição. A Região
Metropolitana de São Paulo, onde habita grande parte da população do Estado de
São Paulo, tem problemas sérios de mobilidade urbana e de poluição do ar.
Existe uma carência de transporte coletivo (rodoviário e ferroviário) e um
excesso de veículos automotores que transportam no máximo cinco pessoas
(transporte individual). A região enfrenta congestionamentos diários
gigantescos e isso, além de estressar os motoristas e provocar perdas
econômicas individuais e coletivas consideráveis, também contribui com a
poluição do ar e com o aquecimento global (efeito estufa). Não tem saída uma
individual. Mesmo que a frota de veículos individuais adotasse exclusivamente o
etanol como combustível que, por sua renovabilidade, não contribui com o efeito
estufa, restaria ainda insolúvel a questão do congestionamento. A saída que
resolve as duas questões é o investimento em transporte coletivo, é uma saída
coletiva. Vários outros exemplos poderiam ser dados, tomando outros aspectos da
vida em sociedade, mas este já é suficiente.
Quando se fala de sociedade sustentável
não tem como não estabelecer comparações. Hoje o planeta Terra divide-se em
dois blocos de países em relação à economia. No hemisfério norte localiza-se a
maior parte dos países ricos e no hemisfério sul a maior parte dos mais pobres.
Então, é conveniente trazer para o debate as considerações de Clóvis
Cavalcanti (2003) sobre a maior economia do hemisfério norte e do planeta, os
Estados Unidos, onde ele a compara com as sociedades indígenas da Amazônia no
hemisfério sul ( ver quadro abaixo). Em termos de sustentabilidade ambiental
são dois paradigmas extremos e, por conta disto, servem como balizas do que
poderia ser o caminho do meio de uma sociedade sustentável.
Comparação de dois paradigmas diferentes de sustentabilidade
Termos de comparação
|
Índios da Amazônia
|
Estados Unidos
|
Visão
de mundo
|
Reverência
pela natureza; humildade
|
Homem
senhor e possibilidade da natureza; arrogância
|
Formação
de capital
|
Quase
nenhuma; habilitações e ferramentas toscas
|
Cumulativa;
necessidade de volumes sempre crescentes de investimento (para manter taxas
constantes)
|
Fontes
de energia
|
Renováveis
somente
|
Combustíveis
fósseis (fontes não renováveis); menor proporção de renováveis
|
Formas
de conhecimento
|
Base na
experiência (transmissão oral pelos antigos e pelos pajés)
|
Ciência
moderna (transmissão sob forma escrita – bibliotecas, meio eletrônico)
|
Fonte
de propulsão
|
Recursos
naturais
|
Progresso
técnico
|
Uso de
matéria e energia
|
Frugalidade;
parcimônia termodinâmica
|
Forte
degradação entrópica; esbanjamento, desperdício
|
Principais
objetivos econômicos
|
Satisfação
das necessidades básicas; bem-estar
comunitário
|
Crescimento
econômico ilimitado; lucro imediato
|
Tendência
de longo prazo
|
Altamente
sustentável
|
Insustentável
|
Fonte: CAVALCANTI, 2003.
O primeiro paradigma corresponde, na visão do autor, a uma situação de
parcimônia e de reverência pela natureza. O segundo conduz, conforme o autor,
a um extremo de estresse ambiental e “não contém atributos
intrínsecos de respeito pela natureza, é o que se percebe nos padrões de
consumo de recursos dos Estados Unidos”(CAVALCANTI, 2003, p. 155).
O estilo de vida dos índios da Amazônia baseia-se em fontes renováveis
de energia, pois os combustíveis fósseis não são usados e a lenha é utilizada
de forma sustentável. Não ocorre destruição ambiental visível entre os índios.
Além de usarem os recursos da natureza com parcimônia, os índios a tratam com
reverência e humildade, sentem-se parte dela. No outro extremo, impera a posse
e o domínio dos seus recursos para serem transformados em mercadorias, que
serão vendidas para consumidores, que garantirão, com seu consumo crescente e
contínuo, a continuidade do crescimento econômico.
Entre os índios da Amazônia a finalidade única no seu relacionamento com
a natureza é a satisfação das necessidades coletivas e individuais; nos EUA, a
satisfação das necessidades é um objetivo secundário, o principal é alimentar
o processo de acumulação de capital. No segundo caso a natureza é tratada com
arrogância e utilitarismo; ela é vista essencialmente como um estoque de
matérias-primas e a maioria do seus habitantes vive, enquanto maioria urbana,
totalmente afastada da natureza, ela tornou-se estranha aos moradores urbanos.
Se tem algo de que Cavalcanti (2003, p. 165) tem clareza é que o
desenvolvimento econômico nos moldes dos EUA não é mais uma opção aberta, com
amplas possibilidades para todo o planeta. A aceitação da ideia de desenvolvimento
sustentável indica que foi fixado um limite superior para o progresso material,
embora ele ainda não esteja muito palpável. Esta aceitação coloca um novo
desafio para a humanidade, conforme aponta Cavalcanti (2003, p. 166):
Nosso desafio é como reduzir substancialmente ou eliminar a miséria, sem
desrespeitar os limites da capacidade de sustentação da Terra. Podemos querer
empurrar o crescimento além desses limites. Mas devemos ter consciência do
fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmesis da natureza.
A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava a justa
medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a própria
medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante) eram
imediatamente fulminados por Nêmese. O aquecimento global é um dos sinais de
que a própria medida pode estar sendo ultrapassada e, aparentemente, a reação
da deusa parece estar começando.
O dever dos estudiosos, dos homens e mulheres da ciência, daqui adiante,
é explicar como o desenvolvimento poderá tornar-se sustentável. Uma ideia
amplamente aceita hoje em dia é a de que o tipo de crescimento econômico que o
mundo construiu nos últimos duzentos anos, em particular depois da Segunda
Guerra Mundial, não mais se sustenta. Não se propõe aqui, é claro, uma volta à
sociedade tribal. Trata-se, antes de tudo, de propor uma ruptura com aquilo que
Celso Furtado (1974), chamou de mito do desenvolvimento, que tem a
ver com a possibilidade de todos os pobres do mundo desfrutarem das mesmas
formas de vida dos povos mais ricos do planeta, com seu consumo ostentatório e,
em larga escala, supérfluo. Maria Lúcia Azevedo Leonardi (2003, pp. 204-205)
esclarece um pouco mais a questão levantada por Cavalcanti:
Em segundo lugar, graves problemas ambientais – talvez os piores – como
o efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, o esgotamento dos recursos
naturais, a acumulação do lixo tóxico são provocados pelas sociedades ricas e
desenvolvidas, não pelas pobres. Se o modelo de desenvolvimento do Primeiro
Mundo, arduamente perseguido pelo Terceiro Mundo, conseguir ser atingido, com
níveis de produção e consumo equivalentes, aí sim a situação ambiental se
agravará, mesmo se a população parar de crescer. Atualmente, menos de um
quarto da população mundial consome 80% dos bens e mercadorias produzidos pelo
homem (Martine, 1993: 25). A tragédia do desenvolvimento explica a “agonia
planetária” (conceito criado por Morin & Kern, 1993: 73). Ou, como já foi
colocado há tempo, o desenvolvimento necessita criar o subdesenvolvimento. É
seu componente antitético.
Referências
CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos
para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
______. Sustentabilidade da economia: paradigmas alternativos de
realização econômica. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e
natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez
Editora; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
MARTINE, George (org.). População meio ambiente e
desenvolvimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
LEONARDI, Maria Lúcia Azevedo. A sociedade global e a questão ambiental.
In: CAVALCANTI, Clóvis (org.).Desenvolvimento e natureza: estudos para uma
sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, 2003.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974.
MORIN, Edgar & KERN, Anne
Brigitte. Terre-Patrie. Paris: Seuil, 1993.
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