terça-feira, 31 de maio de 2016

INFÂNCIA NA ROÇA

ZILDO GALLO

Garimpar imagens na imensidão da internet e observá-las pode ser um bom exercício para compreender o mundo nos dias de hoje e também nos tempos idos. Muitas vezes as imagens falam por si mesmas, como nas fotografias de Sebastião Salgado, mas elas podem (servem) para ilustrar crônicas e poemas como é o caso do meu poema "Infância na Roça", escrito em abril de 1975, que fiz em memória a minha infância no meio rural de Borborema (SP). As imagens podem ajudar na compreensão de textos, podem? Elas podem falar mais que os textos. À imagem e ao poema!


INFÂNCIA NA ROÇA

O lampião de pálida luz,
pendurado no teto
esfumaçado,
o chão de terra dura,
pisada.
Uma luz pálida...
o rosto silencioso de minha mãe.

A mesa,
paus rústicos,
tábuas...
Meu pai no banco
ao canto,
distante...
ensimesmado com seu pito
soprando fumaças.

O ar cheirando à terra molhada.
Eu sentado ao chão,
manipulando bolinhas coloridas
de vidro,
esquecido em mim,
absorvendo o silêncio
à minha volta.

O mundo era bonito;
tinha o chão, o lampião,
o telhado velho
que me protegia da chuva,
tinha a parede que me escondia
dos bichos do mato
e o mato cheio de bichos
lá fora.
Assim era a vida...

Zildo Gallo - Americana, abril de 1975



sábado, 28 de maio de 2016

Consumo sustentável ou sociedade sustentável?

Zildo Gallo

Este artigo foi originalmente publicado em 11 de dezembro de 2014 e, devido à atualíssima importância do seu conteúdo, resolvi republicá-lo hoje, 28 de maio de 2016. Nele eu trato de uma questão essencial para a humanidade, que é a busca necessária de saídas coletivas para a crise socioambiental e de valores que atinge toda ela, em todas as partes do nosso planeta Terra nos dias de hoje. Na minha compreensão, a crise contemporânea tem fortes relações com o avanço do pensamento liberal a partir do século XVIII, principalmente no Ocidente, que colocou o indivíduo no centro do mundo, em detrimento dos grupos sociais. Essa centralidade no indivíduo acabou por estimular um individualismo e um egoísmo crescentes, a ponto de a dimensão altruísta do ser humano ser deixada num distante segundo plano. Com o avanço da sociedade de consumo no pós Segunda Grande Guerra, o individualismo acentuou-se, mas com as crises que se espraiam por todo o planeta, uma verdadeira crise civilizatória, as concepções liberais estão sendo postas em cheque. É um pouco disso que trata o presente artigo. Ao artigo!

Na década de 90 do século XX, aconteceu um deslocamento da questão ambiental para a esfera do consumo, indo além e superando as críticas ao sistema industrial e às populações pobres do "Terceiro Mundo". Não se tratava de ignorar impactos da indústria e da pobreza sobre o meio ambiente, mas de reconhecer o papel do excesso, do consumo abusivo, desnecessário, na questão ambiental, destacando os seus resultados negativos, como a descomunal produção de resíduos e a extração exponencial de matérias primas da natureza, por exemplo. A princípio, as discussões limitaram-se à ideia do "consumo verde", que apenas enfatizava mudanças técnicas nos produtos e serviços e mudanças com­portamentais dos consu­midores individuais. Mas tal abordagem, ainda que necessária, é insuficiente e, assim, logo depois, apareceram propostas que enfatizavam ações coletivas e políticas públicas. Trata-se da estratégia do “consumo sustentável”, que busca se diferenciar da anterior por privilegiar políti­cas públicas e ações individuais e coletivas voltadas para a sustentabilidade socio­ambiental, onde aparece uma pretensão política e transformadora mais definida.
Depois de muitos anos pensando de forma individualista e utilitarista, o mundo, com destaque para a sua porção ocidental, precisa voltar-se ao coletivo, pois as saídas para a grande crise socioambiental na qual o planeta está mergulhado não se resolve a partir do consumidor com suas propaladas autonomia e racionalidade, como acreditam os economistas liberais. Inclusive porque acreditar em autonomia do consumidor em tempos de marketing e propaganda é no mínimo ingenuidade e, talvez, indo além da ingenuidade, má-fé. O mundo precisa de saídas coletivas e o pensamento liberal tem seus limites para pensar além do indivíduo e da sua hipotética liberdade para decidir.
Em termos internacionais o que acabou acontecendo é que se priorizou, no campo do discurso sobre consumo sustentável, uma redução relativa no consumo de determina­das matérias primas e energia, como o petróleo, por exemplo, e não uma mudança nos processos e padrões de produção, distribuição e consumo, dei­xando de dar a atenção necessária aos conflitos gerados pela desigualdade no acesso aos recursos da natureza, tão importante para os países não desenvolvidos, localizados majoritariamente no hemisfé­rio sul. Mudar os padrões e não os níveis de consumo passou a ser o objetivo visto como politicamente adequado nos países desenvolvidos do hemisfério norte. Consome-se a mesma quantidade de combustível, por exemplo, substituindo os derivados de petróleo pelo biocombustível, que é renovável. Todavia, o biocombustível vem da agricultura e a sua produção ocupa terras antes destinadas à produção de alimentos. Os impactos dessa mudança foram devidamente analisados? Foram de alguma forma avaliados? Talvez esta não tenha sido a melhor saída. Há que se verificar.
Dá para se falar de consumo sustentável considerando apenas o indivíduo, tomando-o a partir da sua consciência individual? Resposta: até que dá, mas tem limites, porque, na maioria dos casos, pelo menos nos mais complexos, as saídas não são individuais mas coletivas. Por exemplo, quando se aborda a questão energética, da mobilidade urbana, do tratamento dos resíduos produzidos pelo consumo, da segurança alimentar, da segurança hídrica, da saúde, da educação, da moradia, entre outras, a melhor forma de abordá-las é a partir do coletivo. Na verdade, pouca coisa pode ser abordada única e exclusivamente do ponto de vista individual.
Então, já que o mais correto é a abordagem coletiva, por conta de envolver tanto a sociedade quanto o indivíduo, em vez de se focar no consumo sustentável, melhor seria focar na ideia de sociedade sustentável, pois o consumo é mais um componente das muitas atividades sociais, junto com muitas outras também importantes.
Melhor exemplificar para deixar mais clara a exposição. A Região Metropolitana de São Paulo, onde habita grande parte da população do Estado de São Paulo, tem problemas sérios de mobilidade urbana e de poluição do ar. Existe uma carência de transporte coletivo (rodoviário e ferroviário) e um excesso de veículos automotores que transportam no máximo cinco pessoas (transporte individual). A região enfrenta congestionamentos diários gigantescos e isso, além de estressar os motoristas e provocar perdas econômicas individuais e coletivas consideráveis, também contribui com a poluição do ar e com o aquecimento global (efeito estufa). Não tem saída uma individual. Mesmo que a frota de veículos individuais adotasse exclusivamente o etanol como combustível que, por sua renovabilidade, não contribui com o efeito estufa, restaria ainda insolúvel a questão do congestionamento. A saída que resolve as duas questões é o investimento em transporte coletivo, é uma saída coletiva. Vários outros exemplos poderiam ser dados, tomando outros aspectos da vida em sociedade, mas este já é suficiente.
Quando se fala de sociedade sustentável não tem como não estabelecer comparações. Hoje o planeta Terra divide-se em dois blocos de países em relação à economia. No hemisfério norte localiza-se a maior parte dos países ricos e no hemisfério sul a maior parte dos mais pobres. Então, é con­veniente trazer para o debate as considerações de Clóvis Cavalcanti (2003) sobre a maior econo­mia do hemisfério norte e do planeta, os Estados Unidos, onde ele a compara com as sociedades indígenas da Amazônia no hemisfério sul ( ver quadro abaixo). Em ter­mos de sustentabilidade am­biental são dois paradigmas extremos e, por conta disto, servem como balizas do que poderia ser o caminho do meio de uma sociedade sustentável.

  Comparação de dois paradigmas diferentes de sustentabilidade
Termos de comparação
Índios da Amazônia
Estados Unidos
Visão de mundo
Reverência pela natureza; humildade
Homem senhor e possibilidade da natureza; arrogância
Formação de capital
Quase nenhuma; habilitações e ferramentas toscas
Cumulativa; necessidade de volumes sempre cres­centes de investimento (para manter taxas cons­tantes)
Fontes de energia
Renováveis somente
Combustíveis fósseis (fontes não renováveis); menor proporção de renováveis
Formas de conhecimento
Base na experiência (transmissão oral pelos antigos e pelos pajés)
Ciência moderna (trans­mis­são sob forma escrita – bibliote­cas, meio eletrô­nico)
Fonte de propulsão
Recursos naturais
Progresso técnico
Uso de matéria e ener­gia
Frugalidade; parcimônia termodinâmica
Forte degradação entró­pica; esbanjamento, des­perdício
Principais objetivos econô­micos
Satisfação das necessida­des básicas; bem-estar
comunitá­rio
Crescimento econômico ilimitado; lucro imediato
Tendência de longo prazo
Altamente sustentável
Insustentável
  Fonte: CAVALCANTI, 2003.

O primeiro paradigma corresponde, na visão do autor, a uma situação de parcimô­nia e de reverência pela natureza. O segundo conduz, conforme o autor, a um extremo de estresse ambiental e “não contém atributos intrínsecos de respeito pela natureza, é o que se percebe nos padrões de consumo de recursos dos Estados Unidos”(CAVALCANTI, 2003, p. 155).
O estilo de vida dos índios da Amazônia baseia-se em fontes renová­veis de energia, pois os combustíveis fósseis não são usados e a lenha é utilizada de forma sustentável. Não ocorre destruição ambiental visível entre os índios. Além de usa­rem os recursos da natureza com parcimônia, os índios a tratam com reverência e humildade, sentem-se parte dela. No outro ex­tremo, impera a posse e o domínio dos seus recursos para serem transformados em mer­cadorias, que serão vendidas para consumidores, que garantirão, com seu consumo crescente e contínuo, a continuidade do crescimento econômico.
Entre os índios da Amazônia a finalidade única no seu relacionamento com a natureza é a satisfação das necessidades coletivas e individuais; nos EUA, a satisfação das necessidades é um objetivo secundário, o princi­pal é alimentar o processo de acu­mulação de capital. No segundo caso a natureza é tratada com arrogância e utilitarismo; ela é vista essencialmente como um estoque de matérias-primas e a maioria do seus habitantes vive, enquanto maioria urbana, totalmente afastada da natureza, ela tornou-se estranha aos moradores urbanos.
Se tem algo de que Cavalcanti (2003, p. 165) tem clareza é que o desenvolvimento econômico nos moldes dos EUA não é mais uma opção aberta, com amplas possibilidades para todo o planeta. A aceitação da ideia de desenvol­vimento sustentável indica que foi fixado um limite superior para o progresso material, embora ele ainda não esteja muito palpável. Esta aceitação coloca um novo desafio para a humanidade, conforme aponta Cavalcanti (2003, p. 166):
Nosso desafio é como reduzir substancialmente ou eliminar a miséria, sem desrespeitar os limites da capacidade de sustentação da Terra. Po­demos querer empurrar o crescimento além desses limites. Mas devemos ter cons­ciência do fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmesis da natureza.
A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a própria medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante) eram imediatamente fulminados por Nêmese. O aquecimento global é um dos sinais de que a própria medida pode estar sendo ultrapassada e, aparentemente, a reação da deusa parece estar começando.
O dever dos estudiosos, dos homens e mulheres da ciência, daqui adiante, é explicar como o desenvolvimento poderá tornar-se sustentável. Uma ideia amplamente aceita hoje em dia é a de que o tipo de crescimento econômico que o mundo construiu nos últimos duzentos anos, em particular depois da Segunda Guerra Mundial, não mais se sustenta. Não se propõe aqui, é claro, uma volta à sociedade tribal. Trata-se, antes de tudo, de propor uma ruptura com aquilo que Celso Furtado (1974), chamou de mito do desenvolvimento, que tem a ver com a possibilidade de todos os pobres do mundo desfrutarem das mesmas formas de vida dos povos mais ricos do planeta, com seu consumo ostentatório e, em larga escala, supérfluo. Maria Lúcia Azevedo Leonardi (2003, pp. 204-205) esclarece um pouco mais a questão levantada por Cavalcanti:
Em segundo lugar, graves problemas ambientais – talvez os piores – como o efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, o esgotamento dos recursos naturais, a acumulação do lixo tóxico são provocados pelas so­ciedades ri­cas e desenvolvi­das, não pelas pobres. Se o modelo de desen­volvimento do Primeiro Mundo, ar­duamente perseguido pelo Terceiro Mundo, conseguir ser atingido, com níveis de produção e consumo equi­valentes, aí sim a si­tu­ação ambiental se agravará, mesmo se a população parar de crescer. Atu­almente, menos de um quarto da população mundial consome 80% dos bens e mercadorias produzidos pelo homem (Martine, 1993: 25). A tragédia do desenvolvimento explica a “agonia planetária” (conceito criado por Morin & Kern, 1993: 73). Ou, como já foi colocado há tempo, o desenvol­vimento necessita criar o subdesenvolvimento. É seu componente antitético.
Referências
CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação Joaquim Na­buco, 2003.
______. Sustentabilidade da economia: paradigmas alternativos de realização eco­nômica. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
MARTINE, George (org.). População meio ambiente e desenvolvimento. Campi­nas: Editora da UNICAMP, 1993.
LEONARDI, Maria Lúcia Azevedo. A sociedade global e a questão ambiental. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.).Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação Joaquim Na­buco, 2003.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974.
MORIN, Edgar & KERN, Anne Brigitte. Terre-Patrie. Paris: Seuil, 1993.


sexta-feira, 27 de maio de 2016

É JUSTO? (5)

ZILDO GALLO

Garimpar imagens na imensidão da internet e observá-las pode ser um bom exercício para compreender o mundo nos dias de hoje. Muitas vezes as imagens falam por si mesmas, como nas fotografias de Sebastião Salgado, mas elas podem (servem) para ilustrar crônicas e poemas como é o caso do meu poema "Água: um Poema à Consciência", que fiz em homenagem ao povo de semiárido brasileiro. As imagens podem ajudar na compreensão de textos, podem? Elas podem falar mais que os textos. Às imagens e ao poema!

TENHO SEDE, MUITA SEDE.

É A ÁGUA QUE NOS RESTA.

ÁGUA: UM POEMA À CONSCIÊNCIA

Zildo Gallo

Desapercebido cidadão,
Anestesiado cidadão,
Próspero e pacato cidadão,
Com que direito lanças nas águas
Os teus restos intestinais,
Restos de finas iguarias,
Sem ao menos te incomodar
Com que a tua urbe não as purifique
Para que abaixo outros como tu,
Também desapercebidos, anestesiados
E pacatos cidadãos,
Possam apanhá-las
E usá-las como usas,
Incomoda-te cidadão!

Despreocupado cidadão,
Egocêntrico cidadão,
Cuja montanha de abundâncias te impede,
Como um denso véu,
De enxergar do outro lado
O menino que escava o árido solo
À procura do líquido escuro,
Fétido
E salobro,
Única via para saciar a secura
Da sua sede miserável,
Enxerga cidadão!

Sossegado cidadão,
Acomodado cidadão,
Que ao girar da torneira
Enxerga e ouve
O doce jorrar do líquido,
Pequena cascata transparente,
Inodora
E sem sabor,
Nem imaginas que muitos outros
Cidadãos como tu
Caminham léguas e léguas,
Em rotineira saga,
Na busca do diamante líquido,
A maior riqueza da Terra,
Nosso Planeta Água,
Condoa-te cidadão!


quinta-feira, 26 de maio de 2016

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: O PAPA

Zildo Gallo

Continuando o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 26 de maio de 2016, num dia frio de outono, um poema sobre a minha percepção da carta número 5 (cinco) do Tarô de Marselha, o Papa. Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais contemporâneas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. O Papa é a quinta carta da jornada arquetípica do Tarô e, após ela, continuarei publicando um poema por semana e, ao cabo de 22 semanas, que teve início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.


O PAPA

Senhor que liga os mundos
Celestial e terreno
E que, com sua mão direita, nos entrega
As bênçãos divinas que passam pelo seu cetro,
Sustentado em sua mão esquerda
Como uma antena apontada para o alto,
Ao infinito,
A captar as vibrações mais sutis,
Ainda imperceptíveis
Aos nossos sentidos comuns de mortais,
Humildemente, com os joelhos ao chão,
Pedimos:

Traga-nos o Reino de Deus
À nossa Terra,
Às nossas moradas,
Aos nossos corações,
Câmaras secretas onde se encontram
Os tronos divinos
Da diamantina e indivisível Unidade,
Para que seja feita a Sua vontade.

A vontade divina é que mereçamos
E tenhamos todos,
Grandes e pequenos,
O pão nosso de cada dia,
Que nos alimenta a carne,
E o pão do Espírito Santo,
Que nos dá força
Para transcendermos a nossa condição
De simples humanos,
Nascidos do húmus,
Humildemente,
Do solo (colo) fértil de Gaia,
A nossa mãe Terra.


sexta-feira, 20 de maio de 2016

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: O IMPERADOR

Zildo Gallo

Continuando o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 20 de maio de 2016, num dia um pouco frio de outono, um poema sobre a minha percepção da carta número 4 (quatro) do Tarô de Marselha, o Imperador. Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais contemporâneas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. O Imperador é a quarta carta da jornada arquetípica do Tarô e, após ela, continuarei publicando um poema por semana e, ao cabo de 22 semanas, que teve início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.


O IMPERADOR

Senhor do poder
Deste mundo material,
Dimensão masculina do Divino
Aqui na Terra,
Consorte da Grande Mãe da criação,
Com o seu olhar posto à esquerda,
A perscrutar o passado,
Que presente se faz na longínqua
Construção do seu Império,
Que no presente rege com seu cetro
Ereto na sua mão direita,
Ligando o Céu (Urano)
Com a Terra (Gaia),
União simbolizada na cruz
Que o encima,
Guie-nos em paz!

Pai terreno,
Que descansa seu escudo ao lado,
Mas sempre ao seu pronto alcance,
Enquanto reina a paz,
A necessária paz,
A desejada paz,
Garantida pela força
Do espírito livre da águia do seu escudo
Que voa alto e do alto tudo vê,
Desde as montanhas
Até os vales,
Para assim assegurar,
Com sua onipresença e força,
Que as sementes lançadas ao solo
Pelas mãos generosas e férteis
Da sua Imperatriz
Vicejem e produzam frutos,
Garanta-nos a segurança do “pão nosso de cada dia”
E dai-nos a paz.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

A HORA DA AVE MARIA


Uma tristeza desce à tarde,
Inexplicável,
Lenta feito garoa fina,
Ao som da Ave Maria
E do repicar de sinos distantes,
Sons quase perdidos
Nas profundezas imemoriais
Da alma cansada.
Dói uma saudade,
Suave Melancolia,
De algo distante,
Muito distante,
Irreconhecível,
Algo que não se apreende
Pela razão,
Apenas o sente o coração.
Nada a fazer,
Nada a pensar,
Apenas sentir...
E seguir o coração.

O sol põe-se no horizonte
E, sozinho,
Apenas eu,
Órfão degredado nas profundezas
Deste vale de lágrimas,
Clamo pela minha Mãe,
Pela minha Grande Mãe,
A mãe de toda vida,
Que se esconde na noite
Dos tempos,
Retirada deste mundo
Masculinamente embrutecido.
Salve Rainha,
Mãe da Misericórdia,
Da Divina Misericórdia,
Da Eterna Misericórdia,
Acenai-me com a esperança,
Etérea esperança...


sexta-feira, 13 de maio de 2016

OS ARCANOS MAIORES DO TARÔ EM POEMAS: A IMPERATRIZ

Zildo Gallo

Continuando o proposto em 26 de abril de 2016, um dia outonal nublado, eu publico hoje, 13 de maio de 2016, num dia frio de outono, um poema sobre a minha percepção da carta número 3 (três) do Tarô de Marselha, a Imperatriz. Relembrando, desde 1990 eu estudo as mais diferentes versões do Tarô, desde a mais antiga, Tarô de Marselha, até as mais contemporâneas, como o Tarô dos Orixás, por exemplo. A Imperatriz é a terceira carta da jornada arquetípica do Tarô e, após ela, continuarei publicando um poema por semana e, ao cabo de 22 semanas, que teve início em abril de 2016, terei passado uma visão completa em forma de poesia sobre todos os arcanos maiores.


A IMPERATRIZ

Senhora do mundo material,
Senhora da prosperidade,
Da abundância
E do alimento.
Senhora de tudo que nasce e cresce.
Só a Senhora,
No seu recolhimento alquímico,
Constrói a vida,
Partindo da minúscula semente,
E, ao término da sua tarefa,
Lança-a à luz do sol,
Como um arqueiro que atira flechas
No vazio do espaço,
Esperando que ele seja preenchido.

Grande Mãe,
A Grande Mãe
Dos nossos remotos ancestrais,
Que souberam reconhecê-la
Em cada ser vivente
Neste solo por onde caminhamos,
Este solo que é seu colo
Que nos acolhe,
Sem que disso demos conta,
Hoje,
Como filhos ingratos que nos tornamos.

Como mãe dos deuses e de todos os seres,
O seu desejo mais profundo
E verdadeiro
É que todos tenham em abundância
Tudo aquilo que é de verdade necessário,
O verdadeiramente necessário
À Caminhada de cada um
Neste planeta que leva seu nome:
Terra, Gaia, Gayatri...

Como toda mãe,
A Senhora sofre ante o sofrimento
E ante os tropeços enganosos de cada filho seu,
Mas sabe que eles foram atirados
Como flechas ao mundo,
Ao livre arbítrio,
Para que façam o seu próprio caminho
Ao caminhar.
Muitas delas pousam em terrenos hostis
E acabam por se perder
E seu desejo é que elas encontrem
Um bom caminho
Ao caminhar.

Seus filhos já não lhe reconhecem
E ferem o seu colo
Acolhedor
E, não satisfeitos,
Escavam as feridas que sangram
Como lágrimas escorrendo,
Mas nem mesmo assim os abandona,
Pois, no seu derradeiro momento,
Acolhe cada um,
Em seu substrato material,
No seu generoso colo,
No seu útero cósmico.


COMPLEMENTO
Em complemento ao poema, reproduzo aqui o artigo "Saber Cuidar: a Essência do Humano", que publiquei em 8 de dezembro de 2014, neste blog, onde aparece a mãe Terra (Gaia) na fábula-mito do Cuidado, que trata da criação do ser humano e da sua profunda ligação com a Grande Mãe que, no Tarô de Marselha, eu a reconheço na carta da Imperatriz.

SABER CUIDAR: A ESSÊNCIA DO HUMANO

Zildo Gallo

Cuidado é o tema principal do livro Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra, de Leonardo Boff, onde ele resgata a fábula-mito do Cuidado ou Fábula de Higino. Caio Júlio Higino, em latim Gaius Julius Higinus, foi um escritor da Roma Antiga (primeiro século a.C.). Sua principal obra chama-se Fábulas ou Genealogias. Trata-se da recompilação de 300 lendas, histórias e mitos da tradição greco-latina. Eis a fábula:
Certa vez, depois de atravessar um rio, o deus Cuidado viu uma porção de barro. Então, teve uma inspiração. Tomou um pouco de barro e deu-lhe uma forma. Enquanto contemplava a sua obra, apareceu Júpiter, o senhor de todos os deuses. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele, o que Júpiter fez com satisfação. Todavia, quando Cuidado quis dar um nome a sua  criatura, Júpiter o proibiu, exigindo que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e  Cuidado discutiam, surgiu a deusa Terra. Ela quis também dar o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, que era material do seu próprio corpo, provocando com isso uma discussão generalizada. Como não chegavam a um acordo, chamaram Saturno para que funcionasse como árbitro da questão. Procurando ser justo, Saturno tomou a sua decisão: "Você, Júpiter, deu-lhe o espírito e, por isso, recebê-lo-á de volta quando a criatura morrer. Você, Terra, deu-lhe o corpo e recebê-lo-á de volta quando da sua morte. Cuidado, como você foi quem moldou tal criatura, ela deverá ficar sob seus cuidados enquanto viver. E, já que vocês não chegam a um acordo sobre o seu nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.
O ser humano nasceu, assim como todos os seres, do corpo da Terra. Conforme a lenda, nasceu de uma terra fértil, do húmus da terra, que foi trabalhada com esmero e muito cuidado pelo deus Cuidado. A palavra humilde também deriva de húmus e, desta forma, ser humilde significaria reconhecer-se filho da Terra, da sua fertilidade, assim como todos as demais criaturas que também são filhas da mesma mãe, que também se formaram a partir do mesmo corpo, do mesmo barro.
A partir da fábula-mito do cuidado, podemos elaborar uma linha de raciocínio que pode levar-nos a entender o propósito maior da existência, o do cuidado necessário com o ser humano, que deve refletir-se no cuidado com a própria Terra, que é ao mesmo tempo nossa mãe e nossa casa, cuja maternidade e abrigo dividimos com todos os seres vivos, nossos irmãos. Reconhecer-se filho da mesma mãe significa compreender e respeitar a teia da vida que foi sendo  construída lentamente, durante milhões e milhões de anos no nosso planeta.
O mito do cuidado é mais que pertinente nos dias de hoje, pois faz com que nos relembremos da nossa íntima ligação com a Terra, o nosso planeta, instando-nos a que humildemente nos religuemos a ela, pois, neste momento, ela também necessita dos nossos cuidados. Trata-se, metaforicamente, da necessidade de uma volta para casa. Ele também pode servir como uma metáfora de caráter educativo, pois serve para despertar naquele que lê uma reflexão sobre a necessidade de cuidar dos seres humanos que sofrem e também de transformar o cuidado recebido pelo deus Cuidado, sob as ordens de Saturno, no cuidado com todos os outros seres viventes, com a própria Terra, por extensão.
O cuidado surge quando a situação de existir de alguém tem importância para outro alguém também existente, trata-se de uma relação, de um conjunto de relações. Alguém sai de si mesmo e conecta-se a outros, que, reciprocamente, também fazem o mesmo movimento. Por outro lado, a palavra cuidado significa preocupação, inquietação, sentido de responsabilidade, pois aquele que cuida sente-se envolvido e afetivamente ligado ao outro. Então, o cuidado é algo que se liga àquilo que é a essência primitiva, a essência primeira, do ser humano, que não é a razão, mas o afeto. O afeto antecede a razão; ele se encontra naquela situação de proteção que cada ser humano recebe nos primeiros dias da sua vida, naqueles momentos em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao mundo que o cerca, naquele momento em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao outro.
O cuidado é o modo de ser do humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano e ele é cuidado e se cuida em grupo, sendo dessa maneira um ser social. Caso não receba cuidados, desde o nascimento até a morte, ele se desestrutura, definha e morre. Ele recebe cuidados para aprender a cuidar. Ele deve aprender a cuidar de si mesmo depois da sua infância, que é bem longa se comparada com a de outros animais, para em seguida aprender a cuidar dos outros humanos e dos demais seres vivos do planeta, pois tudo que vive precisa de cuidados para viver. Esta é a regra do jogo neste mundo
Conforme a fábula de Higino, o cuidado é fundamental para a existência e, neste sentido, antecede o espírito soprado por Júpiter e o corpo esculpido por Cuidado com o húmus fornecido pela deusa Terra. O Cuidado é a essência divina, é um a priori, ele pré-existe. É aquele Eros, o puro amor, aquele deus grego que já existia na noite dos tempos, antes mesmo da criação do universo.
Sem cuidados a vida e os humanos não existiriam. Então, há que se ter cuidado com tudo. É preciso ter compaixão com todos os seres que sofrem, humanos e não humanos,  obedecendo mais o coração, seguindo mais a lógica da cordialidade do que a da competição e do uso utilitário das coisas. Há que se ter cuidado com a Terra e com a sociedade, particularmente com os excluídos, com todos, enfim.
Neste momento, em desespero, tanto a Terra quanto a humanidade clamam por cuidados essenciais. A degradação ambiental, a pobreza de milhões de pessoas e as violências de todos os tipos precisam ser enfrentadas. Enfim, a grande crise pela qual passa o planeta Terra, só pode ser enfrentada com mais cuidado, o que resulta num clamor por um novo ordenamento ético para a humanidade e para o nosso planeta.
Contudo, as crises criam novas oportunidades e, neste momento, elas possibilitam mergulhos na instância onde, segundo Leonardo Boff (2003), os valores são continuamente forma­dos. Segundo ele, a nova ética planetária “deve brotar da base última da existência humana”. Ela não está na razão, como deseja o Ocidente. A razão não é a essência da existência e por isso não pode explicar e nem abranger tudo. A essên­cia do existir está em “algo mais elementar e ancestral: a afetividade”. Então, contrariando Descartes, que é o pilar do saber ocidental, a experiência basilar não é o seu “penso, logo existo”, mas, segundo Boff, é o “sinto, logo existo”.
Assim, para Boff (2003), na raiz de todas as coisas não está a razão (logos), mas a paixão (pathos). “Pela paixão captamos o valor das coisas (...) Só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos move­mos e somos”. Neste ponto, Boff observa o surgimento de uma dramática dialética entre razão e paixão, já que ele em absoluto não menospreza o papel da razão:
Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética uti­litária. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedo­nista, do puro gozo das coisas. Mas, se vigorar a justa medida, e a paixão se servir da razão para um autodesenvolvimento regrado, então emergem as duas forças que sustentam uma ética promissora: a ternura e o vigor.
Leonardo Boff (2003) considera que dessas premissas pode surgir uma ética que será ca­paz de incluir toda a humanidade. Essa nova ética deverá estruturar-se em torno de valo­res fundamentais ligados à vida, ao seu cuidado, ao fazer humano, às relações cooperati­vas e à cultura da não violência e da paz. “É um ethos que ama, que cuida, se responsabi­liza, se solidariza e se compadece”.

Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
______. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes 1999.


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