Zildo Gallo
Este artigo foi publicado originalmente em 21 de novembro
de 2014 com o seguinte título: Consumo
responsável para a sustentabilidade e para a cidadania. Trata-se de uma
rápida introdução sobre o tema que republico hoje, 20 de agosto de 2016, por
considerá-lo pertinente em função da importância que tem o consumidor nos dias
de hoje para a solução das questões ambientais que se colocam cada vez mais
como críticas. Nunca antes a humanidade e muitas outras formas de vida correram
tanto risco como agora. A reprodução do "modo de vida" dos EUA para
todo o planeta é absolutamente insustentável e, na minha compreensão, os
norte-americanos deveriam dar o exemplo e diminuir o seu consumo predatório e
ostentatório. Ao artigo.
A abundância de bens de consumo produzidos continuamente
pela indústria é vista, com frequência, como um símbolo do sucesso das
economias capitalistas modernas. Entretanto, de algumas décadas para cá, esta
abundância começou a ser vista com olhares negativos, já que o consumismo
passou a ser considerado um dos problemas das sociedades modernas.
O início do século XX viveu a utopia da abundância a partir
da indústria e do desenvolvimento tecnológico. A escassez e a pobreza seriam
definitivamente fatos históricos superados. Decorrido um século de progresso
material, o que temos no início do século XXI é a riqueza como privilégio,
concentrada, e milhões de pessoas excluídas, famintas mesmo.
A abundância de bens de consumo é possível para todos,
indistintamente? A questão do apartheid relacionado ao acesso
ao consumo insta-nos a perguntar: é possível fornecer a toda a humanidade um
padrão de vida, em termos de consumo material, como o dos Estados Unidos, por
exemplo? A resposta é não, a capacidade de suporte ambiental do planeta aponta
contra isso. O que fazer, então, com as utopias do século XIX e início do
século XX, que pregavam um mundo de iguais? A riqueza tornou-se definitivamente
um privilégio?
Cristovam Buarque (1993) apresenta uma solução para ser
apreciada. Ele coloca uma nova utopia: a retirada das pessoas do nível de
pobreza absoluta, rompendo com a ideia da igualdade absoluta, ainda que por um
tempo longo, e substituindo-a pela ideia da igualdade básica. A nova igualdade
não exigiria o acesso ao consumo de “supérfluos”, mas exigiria o compromisso de
resolver o problema do fornecimento dos bens básicos a todos os povos.
O acesso à alimentação saudável, saúde, educação,
habitação, informação, transporte coletivo e a garantia de trabalho digno e bem
remunerado devem ser buscados por todas as nações. O nível de consumo dos ricos
já é elevado e a produtividade da indústria e da agricultura é muito grande,
tornando possível o atendimento das necessidades básicas dos povos sem
grandes “sacrifícios” para o consumo dos ricos, que deveriam diminuir o seu
consumo ostensivo, ostentatório e desnecessário, de forma compensatória.
Hoje, vivemos numa sociedade de consumo, onde toda a
economia está orientada para o consumidor e as suas regras são bem simples e as
consequências muito claras:
- Consumir o máximo no menor de tempo possível;
- O consumo não deve exigir o aprendizado de nenhuma habilidade especial, bastando um mínimo de leitura;
- A satisfação deve ser imediata, abrindo espaço para uma nova necessidade, um novo desejo, para que a sociedade de consumo se perpetue;
- Consequências: depredação dos recursos naturais e montanhas de lixo são os resultados mais visíveis deste consumismo desenfreado;
- O consumo é essencial à vida humana. O problema não é o consumo em si, mas os seus padrões e efeitos sobre o meio ambiente e a sociedade é que são questionáveis.
Até a década de 70, numa abordagem neomalthusiana, a
crise ambiental era atribuída ao crescimento populacional dos países
pobres. A partir da Conferência de Estocolmo (1972), as raízes da crise
deslocaram-se para o sistema produtivo dos países industrializados. Mais
adiante, durante os preparativos da Rio 92, começou a ficar mais clara a
contribuição desigual para os problemas ambientais dos diferentes “estilos de
vida” e de consumo.
Daí para diante, o debate sobre a relação entre consumo e
meio ambiente ganhou outra dimensão. Tornou-se uma vertente para se pensar a
sustentabilidade. Todavia, é preciso tomar cuidados; conforme Fátima Portilho
(2005), o consumo “não é uma simples manifestação de preferências
individuais, assim como o consumidor não é simples vítima passiva e manipulada
pelas estratégias de marketing elaboradas na esfera produtiva” .
Nunca se deve perder de vista as motivações que levam ao
consumo, os desejos que o estimulam. Por que uns consomem em excesso e outros nada
consomem? O que fazer para os primeiros consumirem menos para que os outros
possam também consumir sem aumentar os impactos ambientais? Isto seria
factível?
Além da desigualdade, há um componente cultural complexo
que se manifesta na universalização de estilos de vida, que se caracteriza pelo
criação de permanentes aspirações de consumo através da pesquisa de mercado e
da propaganda. Adam Smith (1999), no século XVIII, em Teoria dos
Sentimentos Morais, dá uma dica para a compreensão da suscetibilidade dos
indivíduos à propaganda: ser notado, servido, tratado com simpatia,
complacência e aprovação são todos os benefícios a que podemos aspirar. É a
vaidade, não o bem-estar ou o prazer que nos interessa. Mas a vaidade sempre se
funda sobre a crença de que somos objeto de atenção e aprovação.
Hoje já se tem uma percepção mais clara sobre as motivações
humanas em relação ao consumo. O consumismo, estaria, em larga medida,
associado ao status relativo que se adquire
através dele. Esta compreensão pode trazer elementos para as estratégias a
serem utilizadas para o desenvolvimento de um consumo e de um consumidor
responsáveis.
Hoje também está ficando cada vez mais claro que o
desenvolvimento econômico não é mais uma opção tão aberta, com as mais amplas
possibilidades para todos. A aceitação da ideia de desenvolvimento sustentável
é uma indicação de que se fixou um limite (superior) para o progresso. Esta
aceitação coloca um novo desafio para a humanidade: como
reduzir ou eliminar a pobreza, sem desrespeitar os limites da capacidade
de sustentação da Terra? A nova tarefa da ciência
e dos cientistas é explicar como o desenvolvimento sustentável pode ser
alcançado. O tipo de desenvolvimento que foi construído nos últimos duzentos
anos não se sustenta mais.
Não está claro para o cidadão o papel que ele pode ter
como consumidor, ou seja, o poder político que lhe é conferido em relação
às suas escolhas. Ele está atordoado diante do leque de possibilidades de
consumo posto à sua frente e não compreende as suas repercussões. Contudo, ele
pode politizar as práticas do consumo, cobrando dos produtores práticas sociais
e ambientais responsáveis.
Segundo Feldmann (2005), hoje, os indivíduos têm
diante de si, no campo do consumo, muitas microescolhas. Entretanto, as
macroescolhas determinam o contexto das microescolhas, a exemplo das políticas
públicas macroeconômicas, de transporte, saúde, educação etc. Até há
pouco tempo, as macroescolhas inseriam-se mais no contexto dos países. Agora,
com a globalização muitas coisas mudaram: votamos no presidente do Brasil, mas
somos afetados pelas decisões do presidente norte-americano, por exemplo.
Todavia, a globalização, vista de forma otimista, pode trazer novas
alternativas democráticas que apontem para a solução do mal-estar por ela
provocado.
Uma das alternativas é a politização do consumo, ou
seja, dar às microdecisões uma percepção positiva que leve à construção
de um consumo sustentável. Há que se fazer um esforço no sentido de diminuir a
ignorância do consumidor sobre as repercussões das suas escolhas para torná-lo
ciente dos seus impactos.
Neste sentido, Fritjof Capra (2005) fala sobre a
importância de uma “alfabetização ecológica”. Ela ajudaria a compreender as
consequências das microescolhas. Ele também fala sobre a necessidade de uma
definição operacional de sustentabilidade. Para ele, não é preciso “inventar
as comunidades humanas sustentáveis a partir do zero”, pois é
possível “moldá-las de acordo com os ecossistemas naturais, que são
comunidades sustentáveis de plantas, animais e micro-organismos”.
A principal característica da biosfera é a sua capacidade
de reproduzir e sustentar a vida. Então, uma comunidade humana sustentável deve
ser organizada de modo que os seus estilos de vida, suas atividades econômicas
e tecnologias não prejudiquem a capacidade da natureza de manter a vida. Tal
concepção de sustentabilidade coloca como primeiro passo necessário à
construção de comunidades sustentáveis o entendimento dos princípios
organizativos desenvolvidos pelos ecossistemas “para manter a teia
vida” (alfabetização ecológica).
Referências
BUARQUE, Cristovam. O pensamento
em um mundo Terceiro Mundo. In: BURSZTIN, Marcel (org.). Para pensar o
desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
CAPRA, Fritjof. Alfabetização
ecológica: o desafio para a educação do século 21. In: TRIGUEIRO, André
(coord.). Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da questão
ambiental nas suas áreas de conhecimento. Campinas, SP: Armazém do
Ipê (Autores Associados), 2005.
FELDMANN, Fábio. A parte que nos
cabe: consumo sustentável. In: TRIGUEIRO, André (coord.). Meio
ambiente no século 21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas
áreas de conhecimento. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados),
2005.
PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade
ambiental, consumo e cidadania. São Paulo: Cortez Editora, 2005.
SMITH, Adam. Teoria dos
sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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