sábado, 20 de agosto de 2016

CONSUMO RESPONSÁVEL: UMA CONVERSA NECESSÁRIA

Zildo Gallo

Este artigo foi publicado originalmente em 21 de novembro de 2014 com o seguinte título: Consumo responsável para a sustentabilidade e para a cidadania. Trata-se de uma rápida introdução sobre o tema que republico hoje, 20 de agosto de 2016, por considerá-lo pertinente em função da importância que tem o consumidor nos dias de hoje para a solução das questões ambientais que se colocam cada vez mais como críticas. Nunca antes a humanidade e muitas outras formas de vida correram tanto risco como agora. A reprodução do "modo de vida" dos EUA para todo o planeta é absolutamente insustentável e, na minha compreensão, os norte-americanos deveriam dar o exemplo e diminuir o seu consumo predatório e ostentatório. Ao artigo.


A abundância de bens de consumo produzidos continuamente pela indústria é vista, com frequência, como um símbolo do sucesso das economias capitalistas modernas. Entretanto, de algumas décadas para cá, esta abundância começou a ser vista com olhares negativos, já que o consumismo passou a ser considerado um dos problemas das sociedades modernas.

O início do século XX viveu a utopia da abundância a partir da indústria e do desenvolvimento tecnológico. A escassez e a pobreza seriam definitivamente fatos históricos superados. Decorrido um século de progresso material, o que temos no início do século XXI é a riqueza como privilégio, concentrada, e milhões de pessoas excluídas, famintas mesmo.

A abundância de bens de consumo é possível para todos, indistintamente? A questão do apartheid relacionado ao acesso ao consumo insta-nos a perguntar: é possível fornecer a toda a humanidade um padrão de vida, em termos de consumo material, como o dos Estados Unidos, por exemplo? A resposta é não, a capacidade de suporte ambiental do planeta aponta contra isso. O que fazer, então, com as utopias do século XIX e início do século XX, que pregavam um mundo de iguais? A riqueza tornou-se definitivamente um privilégio?

Cristovam Buarque (1993) apresenta uma solução para ser apreciada. Ele coloca uma nova utopia: a retirada das pessoas do nível de pobreza absoluta, rompendo com a ideia da igualdade absoluta, ainda que por um tempo longo, e substituindo-a pela ideia da igualdade básica. A nova igualdade não exigiria o acesso ao consumo de “supérfluos”, mas exigiria o compromisso de resolver o problema do fornecimento dos bens básicos a todos os povos.

O acesso à alimentação saudável, saúde, educação, habitação, informação, transporte coletivo e a garantia de trabalho digno e bem remunerado devem ser buscados por todas as nações. O nível de consumo dos ricos já é elevado e a produtividade da indústria e da agricultura é muito grande, tornando possível o atendimento das necessidades básicas dos povos sem  grandes “sacrifícios” para o consumo dos ricos, que deveriam diminuir o seu consumo ostensivo, ostentatório e desnecessário, de forma compensatória.

Hoje, vivemos numa sociedade de consumo, onde toda a economia está orientada para o consumidor e as suas regras são bem simples e as consequências muito claras:
  • Consumir o máximo no menor de tempo possível;
  • O consumo não deve exigir o aprendizado de nenhuma habilidade especial, bastando um mínimo de leitura;
  • A satisfação deve ser imediata, abrindo espaço para uma nova necessidade, um novo desejo, para que a sociedade de consumo se perpetue;
  • Consequências: depredação dos recursos naturais e montanhas de lixo são os resultados mais visíveis deste consumismo desenfreado;
  • O consumo é essencial à vida humana. O problema não é o consumo em si, mas os seus padrões e efeitos sobre o meio ambiente e a sociedade é que são questionáveis.

   Um dos  problemas refere-se ao fato de o consumo mundial ter se desenvolvido num perfil de desigualdade elevado, suscitando a necessidade emergencial de uma mudança nos padrões  comportamentais da sociedade. Conforme Feldmann (2005),  20% da população do planeta nos países mais ricos totalizam 86% das despesas de consumo privado, e os 20% mais pobres, apenas 1,3%. Detalhando: os 20% mais ricos consomem 45% de toda a carne e peixe (os 20% mais pobres, 5%), 58% da energia total (os 20% mais pobres, menos de 4%), têm 74% das linhas telefônicas (os 20% mais pobres, 1,5%), consomem 84% de todo o papel (os 20% mais pobres, 1,1%), possuem 87% da frota de veículos (os 20% mais pobres, menos de 1%).

Até a década de 70, numa abordagem neomalthusiana, a  crise ambiental era atribuída ao crescimento populacional dos países pobres. A partir da Conferência de Estocolmo (1972), as raízes da crise deslocaram-se para o sistema produtivo dos países industrializados. Mais adiante, durante os preparativos da Rio 92, começou a ficar mais clara a contribuição desigual para os problemas ambientais dos diferentes “estilos de vida” e de consumo.

Daí para diante, o debate sobre a relação entre consumo e meio ambiente ganhou outra dimensão. Tornou-se uma vertente para se pensar a sustentabilidade. Todavia, é preciso tomar cuidados; conforme Fátima Portilho (2005), o consumo “não é uma simples manifestação de preferências individuais, assim como o consumidor não é simples vítima passiva e manipulada pelas estratégias de marketing elaboradas na esfera produtiva” .

Nunca se deve perder de vista as motivações que levam ao consumo, os desejos que o estimulam. Por que uns consomem em excesso e outros nada consomem? O que fazer para os primeiros consumirem menos para que os outros possam também consumir sem aumentar os impactos ambientais? Isto seria factível?

Além da desigualdade, há um componente cultural complexo que se manifesta na universalização de estilos de vida, que se caracteriza pelo criação de permanentes aspirações de consumo através da pesquisa de mercado e da propaganda. Adam Smith (1999), no século XVIII, em Teoria dos Sentimentos Morais, dá uma dica para a compreensão da suscetibilidade dos indivíduos à propaganda: ser notado, servido, tratado com simpatia, complacência e aprovação são todos os benefícios a que podemos aspirar. É a vaidade, não o bem-estar ou o prazer que nos interessa. Mas a vaidade sempre se funda sobre a crença de que somos objeto de atenção e aprovação.

Hoje já se tem uma percepção mais clara sobre as motivações humanas em relação ao consumo. O consumismo, estaria, em larga medida, associado ao status relativo que se adquire através dele. Esta compreensão pode trazer elementos para as estratégias a serem utilizadas para o desenvolvimento de um consumo e de um consumidor responsáveis.

Hoje também está ficando cada vez mais claro que o desenvolvimento econômico não é mais uma opção tão aberta, com as mais amplas possibilidades para todos. A aceitação da ideia de desenvolvimento sustentável é uma indicação de que se fixou um limite (superior) para o progresso. Esta aceitação coloca um novo desafio para a humanidade:  como reduzir  ou eliminar a pobreza, sem desrespeitar os limites da capacidade de sustentação da Terra? A nova tarefa  da ciência e dos cientistas é explicar como o desenvolvimento sustentável pode ser alcançado. O tipo de desenvolvimento que foi construído nos últimos duzentos anos não se sustenta mais.

Não está claro para o cidadão o papel que ele pode ter como  consumidor, ou seja, o poder político que lhe é conferido em relação às suas escolhas. Ele está atordoado diante do leque de possibilidades de consumo posto à sua frente e não compreende as suas repercussões. Contudo, ele pode politizar as práticas do consumo, cobrando dos produtores práticas sociais e ambientais responsáveis.

Segundo Feldmann (2005), hoje, os  indivíduos têm diante de si, no campo do consumo, muitas  microescolhas. Entretanto, as macroescolhas determinam o contexto das microescolhas, a exemplo das políticas públicas  macroeconômicas, de transporte, saúde, educação etc. Até há pouco tempo, as macroescolhas inseriam-se mais no contexto dos países. Agora, com a globalização muitas coisas mudaram: votamos no presidente do Brasil, mas  somos afetados pelas decisões do presidente norte-americano, por exemplo. Todavia, a globalização, vista de forma otimista, pode trazer novas alternativas democráticas que apontem para a solução do mal-estar por ela provocado.

Uma das alternativas é a politização do consumo, ou seja, dar às microdecisões uma percepção positiva que leve à  construção de um consumo sustentável. Há que se fazer um esforço no sentido de diminuir a ignorância do consumidor sobre as repercussões das suas escolhas para torná-lo ciente dos seus impactos.

Neste sentido, Fritjof Capra (2005) fala sobre a importância de uma “alfabetização ecológica”. Ela ajudaria a compreender as consequências das microescolhas. Ele também fala sobre a necessidade de uma definição operacional de sustentabilidade. Para ele, não é preciso “inventar as comunidades humanas sustentáveis a partir do zero”, pois é possível “moldá-las de acordo com os ecossistemas naturais, que são comunida­des sustentáveis de plantas, animais e micro-organismos”.

A principal característica da biosfera é a sua capacidade de reproduzir e sustentar a vida. Então, uma comunidade humana sustentável deve ser organizada de modo que os seus estilos de vida, suas atividades econômicas e tecnologias não prejudiquem a capacidade da natureza de manter a vida. Tal concepção de sustentabilidade coloca como primeiro passo necessário à construção de comunidades sustentáveis o entendimento dos princípios organizativos desenvolvidos pelos ecossistemas “para manter a teia vida” (alfabetização ecológica).

Referências

BUARQUE, Cristovam. O pensamento em um mundo Terceiro Mundo. In: BURSZTIN, Marcel (org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: o desafio para a educação do século 21. In: TRIGUEIRO, André (coord.). Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da ques­tão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Campinas, SP: Ar­mazém do Ipê (Autores Associados), 2005.
FELDMANN, Fábio. A parte que nos cabe: consumo sustentável. In: TRI­GUEIRO, André (coord.). Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Campinas, SP: Armazém do Ipê (Autores Associados), 2005.
PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. São Paulo: Cortez Editora, 2005.
SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


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