Zildo Gallo
Estávamos
na segunda metade do ano de 1974, já caminhando para o fim do ano, quando, num
fim de tarde, um rapaz bem cabeludo e barbudo, com uma mochila enorme nas
costas, trajando uma jaqueta jeans surrada pelo uso, subiu as escadas da sede
da União Estudantil Americanense - UEA (1), entidade da qual eu fui um dos
dirigentes, localizada em frente à Praça Comendador Muller, no centro da
cidade, num sobrado onde poucos anos antes funcionou a Câmara Municipal. Rapidamente
ele foi reconhecido pelos presentes e eu era um deles; tratava-se de Narciso,
um jovem de Americana (SP) que, há mais ou menos um ano, resolveu sair vagando
pelo Brasil como hippie, algo que era bastante comum naqueles tempos.
Contou-nos
resumidamente sobre as suas andanças, que foram muitas e, em seguida rumou à
residência de sua mãe, que se tratava de um apartamento localizado na região
central da cidade, se não me engano, é muito tempo para a minha memória. A
passagem de hippies por Americana era bastante comum à época. O mais
corriqueiro era eles apearem na estação ferroviária e seguirem a pé até a Praça
Comendador Muller, onde estendiam panos no chão para exporem os seus
artesanatos, que consistiam, na maioria das vezes, de bijuterias feitas com
fios de cobre. Rapidamente, juntavam-se pessoas no entorno deles,
principalmente pessoas do sexo feminino, interessadas nos artefatos à venda.
Não foi assim com Narciso, que não estava de passagem, pois ele voltava para
casa, abandonando a sua vida nômade. A sede da UEA foi a sua primeira parada na
cidade antes que ele rumasse a sua antiga moradia.
Os
dias que se seguiram é que foram interessantes. Nas suas andanças pelo país,
Narciso acabou passando algum tempo com seguidores da Sociedade Internacional para a
Consciência de Krishina,
ou simplesmente ISKCON (International Society for Krishna
Consciousness), conhecida popularmente como "Movimento
Hare Krishina", no Estado do
Rio de Janeiro. Ele nos contou sobre o Movimento e o que aprendeu sobre
Krishina e o hinduísmo. Narciso era um bom contador de histórias, admito. Tudo
aquilo, principalmente naquela época, era muito estranho para mim e para meus companheiros
da União Estudantil. O Oriente era um imenso mistério.
A coisa não parou por
aí, pois ele trouxe na sua mochila uma boa quantidade de incenso. Foi a
primeira vez que vi incensos de vareta, antes só conhecia o incenso da igreja
católica, aquele que era queimado no turíbulo. A partir dos seus incensos e do
mantra que Narciso nos ensinou (Hare
Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare/ Hare Rama, Hare Rama, Rama
Rama, Hare Hare), começamos a realizar
um ritual antes de nossas reuniões, acedendo incensos e repetindo o mantra 108
vezes, marcados nas contas do Japa Mala (rosário indiano com 108 contas) do
nosso amigo. Fazíamos isso dançando em círculos. Confesso que era muito
agradável, é o que a minha memória indica, apesar da já significativa
longevidade temporal. Fizemos o ritual muitas vezes e acho que deixamos de
fazê-lo por conta do término dos incensos. Naquela época não havia em Americana
uma lojinha de produtos "esotéricos".
No ano de 1974, eu li
pela primeira vez um romance do escritor alemão Hermann Hesse (1877 - 1962). Tinha
lido Demian, escrito em 1917, e aquele pequeno contato com a Índia, através do
jovem Narciso, levou-me a ler Sidarta (1922), que se trata de uma rica interpretação
pessoal do autor sobre as correntes filosóficas do Oriente. Hesse era filho de
pais missionários protestantes que pregaram o cristianismo na Índia. Veio daí o
seu interesse inicial pelo Oriente, mas o interesse definitivo aconteceu a
partir de sua viagem à Índia em 1911. Algum tempo depois, ele teve contato com
a psicologia analítica por meio de um discípulo de Carl Gustav Jung. Então, estas duas influências seriam decisivas no posterior
desenvolvimento da obra de Hermann Hesse. Eu, por minha vez, no ano de 1974,
tornei-me leitor fervoroso do escritor alemão e através dele fui desenvolvendo minhas
impressões sobre o Oriente.
Este meu breve relato foi o meu primeiro
contato com o mundo oriental. A partir daí outros surgirão, todos de forma
inusitada, até que, no ano de 2007, farei a minha primeira viagem à Índia, que
será uma experiência também inusitada, inusitada mesmo. Interrompo a minha
narrativa por aqui, pois pretendo relatar as várias experiências anteriores à
primeira viagem e as que acontecerão na sequência, nos anos posteriores a 2007.
Aguardem!
(1)
Uma curiosidade: a UEA não foi fechada pela ditadura militar, junto com a UNE e
as diversas uniões estaduais, porque na data do fechamento ela estava sem
diretoria. Então, foi possível reabri-la em 1974, em plena ditadura. É óbvio
que éramos permanentemente vigiados e que, por conta disso, pisássemos em ovos
durante todo o tempo.
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