sexta-feira, 8 de maio de 2015

A guerra pela água: Grande São Paulo versus Região de Campinas

Zildo Gallo


Em 1995, no resumo da minha dissertação de mestrado com o título "A Proteção das Águas, um Compromisso do Presente com o Futuro: o Caso da Bacia do Rio Piracicaba", defendida no Instituto de Geociências da UNICAMP, escrevi o seguinte: "O ponto de partida da gestão dos recursos hídricos é a questão dos seus usos múltiplos e dos conflitos que deles decorrem". No capítulo I da dissertação eu afirmei: "a elevada demanda de água e a sua baixa disponibilidade, em várias regiões, provocaram disputas intensas pela sua utilização".
Na minha dissertação também afirmei: "O problema da disponibilidade de água, para algumas bacias do Estado de São Paulo, nos anos mais recentes, tem se colocado de forma ostensiva. Além da Bacia do Piracicaba, as bacias do Capivari, do Jundiaí, do Alto Tietê e da Baixada Santista enfrentam este tipo de problema". Em seguida, eu apontei as causas desse problema, que, na verdade, trata-se de uma escassez relativa e de forma alguma absoluta, pois São Paulo não se localiza no semiárido nordestino: "A intensa industrialização que se faz acompanhar por um processo de urbanização não menos vigoroso é a causa desse fenômeno"; é muita gente para a água disponível, é bem simples assim.
No capítulo IV da dissertação, onde falei sobre a necessidade de conservação e melhoria da base de recursos hídricos, eu registrei que, num estudo elaborado pela COBRAPE (Companhia Brasileira de Projetos e Empreendimentos) a serviço do Consórcio PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí), em 1992, existia a proposta de construção de uma barragem de regularização de vazão. Tal barragem visaria o atendimento da demanda de água no futuro, destacadamente nas estiagens anuais. Havia dois locais previstos: no rio Jaguari e no rio Camanducaia, com capacidade para regularizar vazões firmes de 8,5 e 9,0 m3/s, respectivamente.
De 1992 a 2015, passaram-se 23 anos e muita coisa aconteceu nesse tempo, inclusive a defesa do meu doutorado na UNICAMP no ano 2000, com a tese "A Defesa da Qualidade das Águas da Bacia do Rio Piracicaba: o Papel da CETESB e de Todos Nós", mas nenhuma barragem foi construída para aumentar a capacidade de armazenamento do Sistema Cantareira. Por sua vez, a industrialização e a urbanização da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e da Região Metropolitana de Campinas RMC) prosseguiram conforme as previsões. Conclusão óbvia: independente da grande estiagem vivida neste momento pelo Estado de São Paulo, a disponibilidade de água para atendimento das regiões atendidas pelo Sistema ficou comprometida; a estiagem apenas adiantou uma tragédia há muito anunciada.
Confirmando a ideia de que gerenciar recursos hídricos significa gerenciar conflitos, em 6 de maio de 2015, o jornal Correio Popular, de Campinas, estampou a seguinte manchete: "Sabesp dá início a 'guerra' pela água: empresa quer manter captação de 31 m3/s para a Grande SP, deixando a região com apenas 5 m3/s". Conforme a matéria, os 5 m3/s serão "insuficientes para as necessidades de abastecimento". A proposta da estatal paulista reacendeu ou, melhor, agravou o conflito pelo uso dos recursos hídricos entre as duas regiões, um conflito bastante antigo.
Na verdade, a proposta da Sabesp é, no mínimo, um contrassenso, pois começou o período de estiagem e o Sistema Cantareira continua operando dentro do volume morto. Em 4 de maio de 2015, retirando o volume morto que, neste momento, representa 19,8% da capacidade total de armazenamento, o Sistema operava no "vermelho", com 9,5% negativos, abaixo do seu volume útil. O volume morto vai baixar e não haverá água para a RMSP e nem para a RMC. A saída, enquanto as obras de transposição da bacia do Paraíba do Sul e de novos reservatórios previstos, não sejam concluídas é o racionamento. Não dá para contar com milagres, pois na estiagem chove pouco mesmo.
Resumindo, esclarecendo e acrescentando sugestões:
1)  Conflitos pelo acesso e uso são normais e de fato acontecem, quando os recursos naturais tornam-se escassos; os recursos hídricos escassearam-se na Grande São Paulo e na Região de Campinas por conta do expressivo crescimento das cidades;
2) Os conflitos precisam ser mediados e, no caso das águas, o Sistema Integrado de Gerenciamento dos Recursos do Estado de São Paulo, criado pela Lei 7663/91, prevê as instâncias e os mecanismos necessários para a mediação; isto garante minimamente um debate dentro de marcos civilizatórios;
3) Houve falhas na execução do planejamento do uso das águas pelo Governo do Estado de São Paulo, sócio majoritário da SABESP, que administra o Sistema Cantareira,  pois a situação de escassez era conhecida e a necessidade de obras públicas estava apontada há muito tempo;
4) Os municípios da RMSP e da RMC terão que conseguir a diminuição do consumo de água estimulando o fim do desperdício e investindo na eliminação das perdas de água nos seus sistemas de abastecimento;
5) Enquanto as obras de engenharia não acontecem, situações de racionamento não estarão descartadas, pois a não adoção de práticas de contingencimento pode agravar ainda mais a situação que já é muito grave;
6) Os municípios da RMC poderiam diminuir a dependência do Sistema Cantareira, construindo reservatórios nos seus territórios, como já acontece em Santa Bárbara D'Oeste e Nova Odessa, por exemplo; isto implica em planejamento, é lógico.
Para concluir este artigo eu reproduzo aqui o meu texto "José do Egito, a Crise Hídrica e a SABESP", publicado neste blog, que considero, apesar da ironia que lhe é peculiar, bastante esclarecedor no que diz respeito à concepção de planejamento. O planejamento pode seguir os seguintes passos: elaboração de um diagnóstico prévio; a partir do diagnóstico são pensadas alternativas; das alternativas são elaborados projetos; a faze seguinte é a execução dos projetos escolhidos. Após a execução, ainda cabe uma avaliação dos resultados. No caso em questão, não se avançou além do elencagem de alternativas. Vamos à releitura do artigo.
A passagem bíblica de José do Egito no antigo testamento ensina-nos algo importante: a importância de armazenar alimentos para o futuro, para atender a épocas de pouca produção ou de perdas por intempéries. Ele interpretou um sonho do faraó da seguinte forma: depois de sete anos de abundância, com grandes safras agrícolas, seguirão sete anos de seca. Com isso, o faraó providenciou o armazenamento de cereais em todo o Egito durante os tempos de abundância, garantindo assim que não houvesse fome nos sete anos seguidos de escassez. É bom lembrar que armazenar alimentos preventivamente tornou-se uma atividade comum a todos os povos, desde a pré-história.
Em relação à água, a humanidade aprendeu a armazená-la há muito tempo também. A construção de reservatórios e cisternas para guardar água tornou-se uma atividade ampla e necessária para enfrentar os períodos de estiagens cíclicas. Os seres humanos tornaram-se armazenadores de víveres e de água, há muito tempo, o que ajudou a garantir a sua sobrevivência e a sua expansão por todo o planeta Terra.
Nos tempos de José, a previsão climática cabia aos videntes, pois a ciência do clima, que produz previsibilidade em relação aos fenômenos naturais, surgirá muito depois, muitos séculos à frente. A meteorologia, nos dias de hoje, tem muita informação acumulada e dispõe de avançada tecnologia para garantir informações cada vez mais seguras para a população e para os governantes.
Hoje, 2014 d. c., mais de 3500 anos depois da passagem de José pelo Egito, o Estado de São Paulo, no Brasil, vive uma grande seca. Esta seca não foi prevista por nenhum vidente, que se saiba, mas foi antevista pela ciência, pelos "magos do clima" com seus equipamentos modernos, que observam a Terra do alto, das alturas celestes.
A empresa responsável pelo Sistema Cantareira que abastece tanto a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) como a Região Metropolitana de Campinas (RMC), as duas mais populacionalmente adensadas do Estado de São Paulo, é a SABESP, uma estatal com ações na Bolsa de Valores. Trata-se de uma instituição moderna e preparada tecnicamente para cuidar dos recursos hídricos e do saneamento, não há dúvidas a respeito. É ela a responsável por estocar água no período chuvoso para garantir o abastecimento na estiagem.
As informações estatísticas sobre as precipitações anuais e sobre as vazões dos rios são antigas e constituem uma série histórica adequada para a consulta com objetivo de planejar o abastecimento presente e futuro da população das duas regiões metropolitanas.  As estatísticas sobre o consumo urbano, agrícola e industrial também formam uma série histórica apta à consulta. Em relação ao consumo, particularmente em relação ao uso urbano, observa-se, ano a ano, um aumento contínuo, que guarda relação com a evolução da população. O crescimento demográfico ainda é uma realidade nas duas regiões.
Outras informações são importantes e uma delas muito importante, trata-se da eficiência do sistema, do índice de perdas de água na rede. A rede de água na cidade de São Paulo, por exemplo, é muito antiga e carece de manutenção permanente, incluindo aí a substituição do encanamento danificado. Outra informação importante é o consumo per capita, que diz respeito aos hábitos de uso, que podem ser mais parcimoniosos ou  mais pródigos. Ao setor público cabe o papel de instruir os usuários sobre o consumo de água.
Em 1995, quando defendi a minha dissertação de mestrado no Instituto de Geociências da UNICAMP, constatei que, já naquela época, os cientistas apontavam para um risco de escassez de água e sugeriam que algumas medidas fossem tomadas: redução das perdas nas redes, construção de novos reservatórios, recuperação da vegetação das nascentes, das margens dos rios e dos topos de morros etc. Em 2000, na defesa do meu doutorado, as mesmas preocupações estavam presentes e já se apontava um aumento do risco. Naquela época, nas estiagens, as vazões a jusante do Cantareira, para a RMC, diminuíam e prejudicavam o abastecimento em várias cidades. Contudo, o atendimento da RMSP ficava garantido com a retirada firme de 30 m3 por segundo. O paulistano, ao contrário do piracicabano, do americanense, citando dois exemplos, vivia uma sensação de abundância. Havia a sensação de uma cornucópia jorrando água sem cessar para os municípios da Grande São Paulo.
Passaram-se os anos e o investimentos apontados acima não ocorreram. Então, chegou a grande estiagem. Emergencialmente, pelo menos, dever-se-ia ter organizado alguma forma de racionamento, mas isso também não aconteceu. Ao contrário, o governo estadual propagou a ideia de que não havia risco de abastecimento. Tal irresponsabilidade, como já é amplamente sabido, deu-se por motivos meramente eleitoreiros, mas não nos aprofundemos nesta questão, apenas registremos a nossa indignação, já basta...
Uma consideração importante deve ser feita: numa se deve esquecer que a água é um bem público e, portanto, um direito de todos. E, deste modo, a segurança hídrica é uma tarefa que cabe ao setor público, aos governantes. Todavia, os governantes trataram os recursos hídricos como mera mercadoria, um produto comercializável da SABESP. Assim, a SABESP vendeu toda a sua mercadoria e ganhou muito dinheiro, é óbvio, e, por decisão de seu maior acionista, o governo de São Paulo, distribuiu os lucros (dividendos) entre todos os acionistas, deixando de lado os investimentos apontados como necessários há mais de 20 anos. Trata-se de um erro grave contra a segurança hídrica e agora é muito tarde. As obras necessárias demorarão para serem construídas e seus efeitos serão sentidos só bem mais adiante. Parece que o racionamento veio para ficar por um bom tempo, infelizmente.
Sem nenhuma "ciência" e com muito menos tecnologia, mas com grande espírito público, o faraó do antigo Egito, acreditando nas previsões de um adivinho, de um judeu que interpretava sonhos, garantiu a sobrevivência do seu povo durante os sete anos de seca, estocando os alimentos produzidos nos sete anos de abundância. Com muita "ciência" e com muita tecnologia, mas desprovidos de espírito público e de sabedoria, os governantes do Estado de São Paulo não se precaveram enquanto havia abundância de água, não deram ouvidos aos cientistas e às suas previsões certeiras. Será que eles não acreditam na ciência? Será que eles, enquanto "liberais", ligam-se apenas ao curto prazo, aos ganhos imediatos, deixando o longo prazo à "providência divina"? Não acreditam na necessidade do planejamento? O que será?  O que será?

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