Zildo Gallo
Com o objetivo
de facilitar a compreensão dos meus leitores, eu juntei numa única publicação todos
os artigos sobre a questão da gestão dos recursos hídricos e sobre a crise hídrica
do Estado de São Paulo, mantendo uma ordem decrescente de data de publicação. Espero que,
com isto, aqueles que estão mais interessados no assunto tenham uma facilidade
de acesso à informação. Considero o acesso à informação essencial neste
momento, pois estamos vivendo um processo que apresenta duas problemáticas
fundamentais: 1) o Estado de São Paulo passa por uma estiagem grave, como não
vivia há várias décadas; 2) a gestão dos recursos hídricos no Estado foi muito displicente,
pois há muito tempo as questões relativas aos recursos hídricos estavam sendo
claramente colocadas aos governantes pelos vários especialistas, faltou
planejamento. Leiam os artigos a seguir, de preferência na sequência
apresentada; acredito que eles podem lançar luzes
de esclarecimento sobre o tema em questão.
08 de maio de 2015
A guerra pela água: Grande São Paulo versus Região de Campinas
Em 1995, no resumo da minha dissertação de mestrado com o título "A
Proteção das Águas, um Compromisso do Presente com o Futuro: o Caso da Bacia do
Rio Piracicaba", defendida no Instituto de Geociências da UNICAMP, escrevi
o seguinte: "O ponto de partida da gestão dos recursos hídricos é a
questão dos seus usos múltiplos e dos conflitos que deles decorrem". No
capítulo I da dissertação eu afirmei: "a elevada demanda de água e a sua
baixa disponibilidade, em várias regiões, provocaram disputas intensas pela sua
utilização".
Na minha dissertação também afirmei: "O problema da disponibilidade
de água, para algumas bacias do Estado de São Paulo, nos anos mais recentes,
tem se colocado de forma ostensiva. Além da Bacia do Piracicaba, as bacias do
Capivari, do Jundiaí, do Alto Tietê e da Baixada Santista enfrentam este tipo
de problema". Em seguida, eu apontei as causas desse problema, que, na
verdade, trata-se de uma escassez relativa e de forma alguma absoluta, pois São
Paulo não se localiza no semiárido nordestino: "A intensa industrialização
que se faz acompanhar por um processo de urbanização não menos vigoroso é a
causa desse fenômeno"; é muita gente para a água disponível, é
bem simples assim.
No capítulo IV da dissertação, onde falei sobre a necessidade de conservação
e melhoria da base de recursos hídricos, eu registrei que, num estudo elaborado
pela COBRAPE (Companhia Brasileira de Projetos e Empreendimentos) a serviço do
Consórcio PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí), em 1992, existia a proposta de
construção de uma barragem de regularização de vazão. Tal barragem visaria o
atendimento da demanda de água no futuro, destacadamente nas estiagens anuais.
Havia dois locais previstos: no rio Jaguari e no rio Camanducaia, com
capacidade para regularizar vazões firmes de 8,5 e 9,0 m3/s,
respectivamente.
De 1992 a 2015, passaram-se 23 anos e muita coisa aconteceu nesse tempo,
inclusive a defesa do meu doutorado na UNICAMP no ano 2000, com a tese "A
Defesa da Qualidade das Águas da Bacia do Rio Piracicaba: o Papel da CETESB e
de Todos Nós", mas nenhuma barragem foi construída para aumentar a
capacidade de armazenamento do Sistema Cantareira. Por sua vez, a
industrialização e a urbanização da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e
da Região Metropolitana de Campinas RMC) prosseguiram conforme as previsões.
Conclusão óbvia: independente da grande estiagem vivida neste momento pelo
Estado de São Paulo, a disponibilidade de água para atendimento das regiões
atendidas pelo Sistema ficou comprometida; a estiagem apenas adiantou uma
tragédia há muito anunciada.
Confirmando a ideia de que gerenciar recursos hídricos significa
gerenciar conflitos, em 6 de maio de 2015, o jornal Correio Popular, de
Campinas, estampou a seguinte manchete: "Sabesp dá início a
'guerra' pela água: empresa quer manter captação de 31 m3/s para a
Grande SP, deixando a região com apenas 5 m3/s". Conforme
a matéria, os 5 m3/s serão "insuficientes para as necessidades
de abastecimento". A proposta da estatal paulista reacendeu ou, melhor,
agravou o conflito pelo uso dos recursos hídricos entre as duas regiões, um
conflito bastante antigo.
Na verdade, a proposta da Sabesp é, no mínimo, um contrassenso, pois
começou o período de estiagem e o Sistema Cantareira continua operando dentro
do volume morto. Em 4 de maio de 2015, retirando o volume morto que, neste
momento, representa 19,8% da capacidade total de armazenamento, o Sistema
operava no "vermelho", com 9,5% negativos, abaixo do seu volume útil.
O volume morto vai baixar e não haverá água para a RMSP e nem para a RMC. A
saída, enquanto as obras de transposição da bacia do Paraíba do Sul e de novos
reservatórios previstos, não sejam concluídas é o racionamento. Não dá para
contar com milagres, pois na estiagem chove pouco mesmo.
Resumindo, esclarecendo e acrescentando sugestões:
1) Conflitos pelo acesso e uso são normais e de fato
acontecem, quando os recursos naturais tornam-se escassos; os recursos hídricos
escassearam-se na Grande São Paulo e na Região de Campinas por conta do
expressivo crescimento das cidades;
2) Os conflitos precisam ser mediados e, no caso das águas, o Sistema
Integrado de Gerenciamento dos Recursos do Estado de São Paulo, criado pela Lei
7663/91, prevê as instâncias e os mecanismos necessários para a mediação; isto
garante minimamente um debate dentro de marcos civilizatórios;
3) Houve falhas na execução do planejamento do uso das águas pelo
Governo do Estado de São Paulo, sócio majoritário da SABESP, que administra o
Sistema Cantareira, pois a situação de escassez era conhecida e a
necessidade de obras públicas estava apontada há muito tempo;
4) Os municípios da RMSP e da RMC terão que conseguir a diminuição do
consumo de água estimulando o fim do desperdício e investindo na eliminação das
perdas de água nos seus sistemas de abastecimento;
5) Enquanto as obras de engenharia não acontecem, situações de
racionamento não estarão descartadas, pois a não adoção de práticas de
contingencimento pode agravar ainda mais a situação que já é muito grave;
6) Os municípios da RMC poderiam diminuir a dependência do Sistema
Cantareira, construindo reservatórios nos seus territórios, como já acontece em
Santa Bárbara D'Oeste e Nova Odessa, por exemplo; isto implica em planejamento,
é lógico.
Para concluir este artigo eu reproduzo aqui o meu texto "José
do Egito, a Crise Hídrica e a SABESP", publicado neste blog, que
considero, apesar da ironia que lhe é peculiar, bastante esclarecedor no que
diz respeito à concepção de planejamento. O planejamento pode seguir os
seguintes passos: elaboração de um diagnóstico prévio; a partir do diagnóstico
são pensadas alternativas; das alternativas são elaborados projetos; a faze
seguinte é a execução dos projetos escolhidos. Após a execução, ainda cabe uma
avaliação dos resultados. No caso em questão, não se avançou além do elencagem
de alternativas. Vamos à releitura do artigo.
A passagem bíblica de José do Egito no antigo testamento ensina-nos algo
importante: a importância de armazenar alimentos para o futuro, para atender a
épocas de pouca produção ou de perdas por intempéries. Ele interpretou um sonho
do faraó da seguinte forma: depois de sete anos de abundância, com grandes
safras agrícolas, seguirão sete anos de seca. Com isso, o faraó providenciou o
armazenamento de cereais em todo o Egito durante os tempos de abundância,
garantindo assim que não houvesse fome nos sete anos seguidos de escassez. É
bom lembrar que armazenar alimentos preventivamente tornou-se uma atividade
comum a todos os povos, desde a pré-história.
Em relação à água, a humanidade aprendeu a armazená-la há muito tempo
também. A construção de reservatórios e cisternas para guardar água tornou-se
uma atividade ampla e necessária para enfrentar os períodos de estiagens
cíclicas. Os seres humanos tornaram-se armazenadores de víveres e de água, há muito
tempo, o que ajudou a garantir a sua sobrevivência e a sua expansão por todo o
planeta Terra.
Nos tempos de José, a previsão climática cabia aos videntes, pois a
ciência do clima, que produz previsibilidade em relação aos fenômenos naturais,
surgirá muito depois, muitos séculos à frente. A meteorologia, nos dias de
hoje, tem muita informação acumulada e dispõe de avançada tecnologia para
garantir informações cada vez mais seguras para a população e para os
governantes.
Hoje, 2014 d. c., mais de 3500 anos depois da passagem de José pelo
Egito, o Estado de São Paulo, no Brasil, vive uma grande seca. Esta seca não
foi prevista por nenhum vidente, que se saiba, mas foi antevista pela ciência,
pelos "magos do clima" com seus equipamentos modernos, que observam a
Terra do alto, das alturas celestes.
A empresa responsável pelo Sistema Cantareira que abastece tanto a
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) como a Região Metropolitana de
Campinas (RMC), as duas mais populacionalmente adensadas do Estado de São
Paulo, é a SABESP, uma estatal com ações na Bolsa de Valores. Trata-se de uma
instituição moderna e preparada tecnicamente para cuidar dos recursos hídricos
e do saneamento, não há dúvidas a respeito. É ela a responsável por estocar
água no período chuvoso para garantir o abastecimento na estiagem.
As informações estatísticas sobre as precipitações anuais e sobre as
vazões dos rios são antigas e constituem uma série histórica adequada para a
consulta com objetivo de planejar o abastecimento presente e futuro da
população das duas regiões metropolitanas. As estatísticas sobre o
consumo urbano, agrícola e industrial também formam uma série histórica apta à
consulta. Em relação ao consumo, particularmente em relação ao uso urbano,
observa-se, ano a ano, um aumento contínuo, que guarda relação com a evolução
da população. O crescimento demográfico ainda é uma realidade nas duas regiões.
Outras informações são importantes e uma delas muito importante,
trata-se da eficiência do sistema, do índice de perdas de água na rede. A rede
de água na cidade de São Paulo, por exemplo, é muito antiga e carece de
manutenção permanente, incluindo aí a substituição do encanamento danificado.
Outra informação importante é o consumo per capita, que diz respeito aos
hábitos de uso, que podem ser mais parcimoniosos ou mais pródigos.
Ao setor público cabe o papel de instruir os usuários sobre o consumo de água.
Em 1995, quando defendi a minha dissertação de mestrado no Instituto de
Geociências da UNICAMP, constatei que, já naquela época, os cientistas
apontavam para um risco de escassez de água e sugeriam que algumas medidas
fossem tomadas: redução das perdas nas redes, construção de novos
reservatórios, recuperação da vegetação das nascentes, das margens dos rios e
dos topos de morros etc. Em 2000, na defesa do meu doutorado, as mesmas
preocupações estavam presentes e já se apontava um aumento do risco. Naquela
época, nas estiagens, as vazões a jusante do Cantareira, para a RMC, diminuíam
e prejudicavam o abastecimento em várias cidades. Contudo, o atendimento da
RMSP ficava garantido com a retirada firme de 30 m3 por
segundo. O paulistano, ao contrário do piracicabano, do americanense, citando
dois exemplos, vivia uma sensação de abundância. Havia a sensação de uma
cornucópia jorrando água sem cessar para os municípios da Grande São Paulo.
Passaram-se os anos e o investimentos apontados acima não ocorreram.
Então, chegou a grande estiagem. Emergencialmente, pelo menos, dever-se-ia ter
organizado alguma forma de racionamento, mas isso também não aconteceu. Ao
contrário, o governo estadual propagou a ideia de que não havia risco de abastecimento.
Tal irresponsabilidade, como já é amplamente sabido, deu-se por motivos
meramente eleitoreiros, mas não nos aprofundemos nesta questão, apenas
registremos a nossa indignação, já basta...
Uma consideração importante deve ser feita: numa se deve esquecer
que a água é um bem público e, portanto, um direito de todos. E, deste
modo, a segurança hídrica é uma tarefa que cabe ao setor público, aos
governantes. Todavia, os governantes trataram os recursos hídricos como mera
mercadoria, um produto comercializável da SABESP. Assim, a SABESP vendeu toda a
sua mercadoria e ganhou muito dinheiro, é óbvio, e, por decisão de seu maior
acionista, o governo de São Paulo, distribuiu os lucros (dividendos) entre
todos os acionistas, deixando de lado os investimentos apontados como
necessários há mais de 20 anos. Trata-se de um erro grave contra a segurança
hídrica e agora é muito tarde. As obras necessárias demorarão para serem
construídas e seus efeitos serão sentidos só bem mais adiante. Parece que o
racionamento veio para ficar por um bom tempo, infelizmente.
Sem nenhuma "ciência" e com muito menos tecnologia, mas com
grande espírito público, o faraó do antigo Egito, acreditando nas previsões de
um adivinho, de um judeu que interpretava sonhos, garantiu a sobrevivência do
seu povo durante os sete anos de seca, estocando os alimentos produzidos nos
sete anos de abundância. Com muita "ciência" e com muita tecnologia,
mas desprovidos de espírito público e de sabedoria, os governantes do Estado de
São Paulo não se precaveram enquanto havia abundância de água, não deram
ouvidos aos cientistas e às suas previsões certeiras. Será que eles não
acreditam na ciência? Será que eles, enquanto "liberais", ligam-se
apenas ao curto prazo, aos ganhos imediatos, deixando o longo prazo à
"providência divina"? Não acreditam na necessidade do planejamento? O
que será? O que será?
24 de março de 2015
A crise hídrica, o Sistema
Cantareira e o desserviço da imprensa
Choveu bem durante o mês de fevereiro e está
chovendo bastante neste mês de março de 2015. No dia 23/03/2015 o portal G1, da
Rede Globo, estampou a seguinte manchete:"Sistema Cantareira segue
subindo e nível passa de 16,6% para 17,1%". Pelo título da matéria
parece que estamos entrando no melhor dos mundos em relação à situação hídrica
para a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e para a Região Metropolitana
de Campinas (RMC). A imprensa escrita também segue o mesmo caminho. O jornal
Correio Popular, de Campinas, no dia 23/03/2015, fez uma chamada na sua capa
com o seguinte teor:"Cantareira: nível sobe a 16,6% na 16a alta
seguida". Só faltou soltarem rojões, numa queima de fogos apoteótica.
As chuvas
constantes nos dois meses são mais que bem-vindas, mas elas estão longe de
recompor o volume das águas do Sistema Cantareira, colocando-o numa situação
confortável. Apesar das elevações, a situação ainda é crítica. Há um ano, o
nível estava em 14,6% do volume útil, que já era muito baixo, e ainda não
contava com os dois volumes mortos, adicionados em maio e outubro de 2014. A
chuva dos últimos meses conseguiu recuperar apenas a segunda cota do volume
morto. Para cobrir a primeira cota do volume morto, o armazenamento de água do
sistema precisa chegar a 29,2%, o que completaria o conjunto do volume morto e
chegaria à situação de 0% do volume útil (desconsiderando o volume morto, que é
uma espécie de "reserva técnica"). Após atingir os 29,2% e, a partir
daí, ultrapassando-o, indo além do volume morto, da "reserva
técnica", é que efetivamente se pode considerar que tudo caminha rumo a
uma real melhora (ver gráfico).
CANTAREIRA: nível, em % (com a
capacidade total sem o volume morto)
Prelo gráfico acima, é possível ver que, na
verdade, quando se retira o volume morto, em 23/03/2015, que representa os
17,1% festejados pela imprensa, chega-se a uma situação de cerca
de -20% (vinte por
cento negativos), ou seja, o sistema está devendo, está no
vermelho. Isto parece muito aquela melhora de um paciente terminal, pois é
preciso lembrar que o período da estiagem está chegando. Tudo parece caminhar
no sentido de que adentraremos o tempo seco numa situação pior que 2014.
Antes da crise, o Sistema Cantareira abastecia 8,8
milhões de pessoas na Grande São Paulo e hoje produz água para 5,6
milhões. O sistema conseguiu recuperar apenas o equivalente à segunda cota do
volume morto. O Cantareira cortou 56% na vazão em relação a fevereiro de 2014.
A quantidade fornecida passou de 31,7 mil litros/segundo para 14 mil
litros/segundo. Pela gravidade do quadro, o fornecimento deveria ser ainda
menor, mas o Governo do Estado, sócio majoritário da SABESP, parece não querer correr
riscos, é o que parece à primeira vista. Medidas mais sérias de racionamento
deveriam ser tomadas. É óbvio que isso não é agradável, mas não devemos esperar
por milagres, por uma não estiagem. Pode até acontecer, mas não tem nenhuma
racionalidade nisso.
Está chovendo muito e é bom que chova muito. Será
bom se no mês de abril as chuvas continuarem com toda força. Torçamos para
isso. Contudo, temos que ser realistas. Muita gente, vendo as águas caírem,
podem ter relaxado. Isso é normal, pois ninguém gosta de ficar num permanente
mal-estar, mas a vigilância é necessária neste momento. Relaxemos na medida do
possível, mas fiquemos alertas O papel da imprensa deveria ser o de alertar
permanentemente a população sobre o quadro real e sobre os riscos futuros.
Quando ela não faz isso adequadamente, ela produz um desserviço.
Durante muito tempo permanecerá a necessidade de um
contingenciamento do consumo de forma mais rígida, enquanto as obras de
engenharia para aumentar a capacidade de armazenamento do sistema estiverem em
andamento. A SABESP e os serviços municipais de água e esgoto têm que correr
contra o tempo. Trata-se de recuperar o tempo perdido. Há anos os técnicos
alertavam sobre a necessidade de investimentos no setor e eles não foram
levados a sério.
Alguns municípios da Região de Campinas (RMC), que
está ligada ao Sistema Cantareira, possuem represas e, assim, conseguem
uma autonomia. É o caso de Nova Odessa, que conseguiu aumentar a capacidade de
três barragens da cidade através do seu desassoreamento. Outros municípios da
região pretendem fazer o mesmo. Municípios que não têm represas deveriam pensar
em tê-las e construí-las leva tempo. É tempo de correr atrás do prejuízo, não
dá para relaxar.
O Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba,
Capivari e Jundiaí (PCJ) começará a elaborar projetos para o desassoreamento de
represas municipais com o objetivo de aumentar a capacidade de armazenagem de
água. Os sedimentos dos fundos das represas são compostos basicamente por areia
e a areia é uma matéria prima importante da construção civil. A areia retirada
poderia ser vendida, o que reduziria o custo da empreitada do desassoreamento.
O PCJ está considerando essa possibilidade no seu planejamento. Será melhor
para a região de Campinas precisar o menos possível da vazão do Sistema
Cantareira, pois as obras necessárias para ampliar a sua capacidade de
estocagem são de médio e longo prazos.
Agradeçamos pelas chuvas, mas não soltemos rojões.
O racionamento está longe de ser descartado. Uma diminuição drástica do
consumo continuará sendo necessária por um longo período, principalmente na
Grande São Paulo (RMSP), onde a situação é mais crítica.
16 de março de 2015
Gestão de recursos hídricos: porque imitamos os franceses
O estado
de São Paulo inspirou-se na experiência francesa de gestão de águas para criar
O Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos pela Lei 7663/91. Em
nível federal, a Lei 9433/97 também inspirou-se nela. As experiências
internacionais são balizas interessantes a serem observadas, pois são, em
relação ao resto do mundo, mais antigas e têm obtido sucessos. A despoluição do
rio Sena, na França, e do Tâmisa, na Inglaterra é o retrato disso.
A experiência internacional na gestão das águas é muito variada, sendo
difícil a identificação de regras generalizantes. Entretanto, algumas
características comuns tendem a se estabelecer como diretrizes necessárias ao
estabelecimento de um bom sistema de gestão: a bacia hidrográfica como unidade
administrativa, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e a participação dos
usuários entre os responsáveis pela gestão. Todavia, se por um lado existem
grandes princípios a serem seguidos, por outro a forma como se estrutura a
gestão está mais ligada às características ambientais, às formas de uso das
águas, ao histórico das experiências institucionais do país, ao tipo de
organização política e social vigente etc.
De fato, no que se refere à gestão das águas, os países adotam arranjos
institucionais os mais variados possíveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, há
grande diversidade de arranjos. Lá, as comissões de bacias tanto podem ser
fruto de composições entre Estados e Federação, como entre agências de bacias,
totalmente locais ou ainda totalmente federais.
Japão e a Holanda também adotam arranjos diversos. Nestes dois países,
a altíssima importância atribuída aos recursos hídricos acabou implicando na
instituição de diferentes níveis de centralidade da gestão. O Governo Central
Holandês atribui a si mesmo a responsabilidade pelos rios nacionais e
internacionais e canais relevantes, como o de Amsterdã, por exemplo. Cursos
d’água menos importantes são gerenciados pelas províncias, que podem delegar
responsabilidades a agências regionais. Existem, ainda, organizações autônomas
e locais. No Japão as agências podem estar vinculadas ao governo central ou às
prefeituras, conforme a importância do curso d’água.
É importante notar que, de qualquer maneira, apesar da diversidade,
prevalece uma tendência, não muito recente, de se estruturar sistemas que
permitem a gestão de forma regionalizada, por bacias hidrográficas. Isso tem
propiciado na França, por exemplo, considerável autonomia financeira e política
às agências regionais de gerenciamento das águas.
A experiência alemã na gestão das águas: o caso da bacia do Ruhr - Na Alemanha, ao
contrário da França, como se verá mais adiante, não existe um único formato
para todo o país para a gestão dos recursos hídricos. Apenas no Estado do Norte
do Reno-Westfália (Nordeshein-Westfalen) são encontradas instituições
semelhantes a da França. As associações de bacias, nesse Estado, remontam ao
início do século XX, sendo a do rio Emscher fundada em 1904 e a do Ruhr em 1911.
A legislação atual do Norte do Reno-Westfália obriga os usuários à
participação nas associações e ao cumprimento com as obrigações dos pagamentos
pelo uso das águas. A cobrança pelo uso das águas dá-se tanto pelo lançamento
de efluentes como pela derivação de água pelos usuários. Os recursos
arrecadados destinam-se às associações de bacia, que são autarquias
controladas pelo governo estadual, mas que são dotados de autonomia administrativa.
Nos outros estados da Alemanha, a água derivada não é objeto de cobrança,
apenas o lançamento de efluentes é onerado. Os recursos auferidos são
revertidos ao estado, para um fundo específico, cuja utilização vincula-se a
programas de despoluição. Esses recursos são, então, emprestados aos
municípios e consórcios de municípios, que são responsáveis pelo tratamento de
esgotos. A reunião de municípios em consórcios é necessária para melhorar a
eficiência econômica e gerencial dos projetos, obras e ações.
O Ruhrverband, associação da bacia do rio Ruhr, ao contrário da agência
de bacia francesa, executa obras, opera reservatórios e estações de tratamento,
responsabiliza-se pelo controle e monitoramento de efluentes etc. São
associados do Ruhrverband todos os que poluem a bacia do Ruhr, assim como as
empresas públicas de abastecimento de água. Internamente ele está estruturado
em departamentos e seções para projetar, supervisionar construções e operar
todas as instalações técnicas.
O Ruhrverband desenvolve seu sistema de cobrança pelo uso da água há décadas,
distribuindo os custos da associação entre seus associados, de acordo com a
poluição causada ou conforme os benefícios recebidos, como no caso das empresas
públicas de abastecimento de água. A partir de 1976, foi criada uma tarifa federal
de efluentes a ser paga por todos os proprietários de estações de tratamento de
efluentes. A taxa é paga de acordo com a poluição residual do efluente e, sobre
ela, é necessário tecer alguns comentários: ressalta-se que não se compra uma
licença para poluir ao pagar a taxa de lançamento de efluentes; requisitos
mínimos de qualidade deverão ser cumpridos em todos os casos, em todo o
território alemão; há apenas a possibilidade de se negociar o
período de tempo a ser concedido a determinada empresa para que ela adapte ou
expanda suas instalações a fim de alcançar os padrões obrigatórios; em caso de
águas receptoras sensíveis, as condições poderão ser bastante rigorosas.
A experiência francesa na gestão dos recursos hídricos - Na França, assim
como no Brasil vários órgãos e instituições atuam na área dos recursos
hídricos. O Ministério do Meio Ambiente é responsável pelo planejamento e
regulamentação, cuidando da compatibilização do desenvolvimento econômico com
o meio ambiente e a gestão das águas. Outros ministérios também atuam, ainda
que setorialmente, sobre as águas, como Saúde (normas sanitárias), Transporte
(navegação) e Indústria (eletricidade).
Todos os protagonistas que atuam na questão das águas, os municípios, a
indústria, os agricultores, o turismo, a pesca profissional e amadora, as
associações preservacionistas, com seus distintos interesses podem se
expressar graças aos dispositivos da Lei das Águas, de 12 de dezembro de 1964.
Devido a esta legislação a França dispõe hoje de um sistema de gestão
descentralizado e eficaz.
Até o começo dos anos 1960, a gestão francesa dos recursos
hídricos baseava-se num conjunto de textos e regulamentos que se
transformaram, ao longo dos anos, num labirinto jurídico. Havia uma grande
dispersão de responsabilidades, assim como no Brasil e no Estado de São Paulo.
A regulamentação sobre o combate à poluição era incompleta, esparsa e setorial.
Havia, até mesmo, contradições entre as ações de diferentes administrações, o
que não permitia encontrar solução para alguns problemas.
A crescente diminuição de fontes de abastecimento com qualidade adequada,
provocada pelo aumento substancial dos poluentes, obrigou o legislador a
modificar esse sistema de gestão. Naquele tempo, duas opções foram analisadas:
1) ignorar a organização administrativa anterior e entregar a gestão a uma única
administração nova, dotada dos instrumentos regulamentares necessários ou 2)
manter a organização anterior para o essencial e criar dispositivos inovadores
para dar à gestão dimensões técnica, política, econômica e financeira,
simultaneamente. A segunda opção foi adotada pela Lei das Águas de 1964.
A nova dimensão técnica consiste em administrar as águas não mais setorialmente,
mas considerando seus problemas em nível de bacia hidrográfica. A dimensão
política consiste em se decidir os trabalhos de despoluição necessários pelos
próprios usuários dos recursos hídricos, agrupados em organismos denominados
comitês de bacias. A dimensão econômica e financeira busca incitar à
despoluição através do princípio poluidor-pagador: os poluidores são penalizados
por cotizações obrigatórias a um fundo de investimento, onde os encargos são
fixados em função dos trabalhos a realizar e dos inconvenientes que sua
poluição ocasiona; os que executam os trabalhos de despoluição são financiados
por esse fundo. Comitês de bacia e agências da água foram criadas em cada uma
das seis grandes bacias hidrográficas francesas: Adour-Garonne, Loire-Bretagne,
Rhône-Mediterranée-Corse, Siene-Normandie, Artois-Picardie e Rhin-Meuse.
O comitê de bacia é o organismo que decide a política da água a vigorar
na bacia. Trata-se de um “Parlamento das Águas”, que se organiza da seguinte
forma: 20% dos membros são representantes do estado e os outros 80% são representantes
dos municípios e dos usuários dos recursos hídricos, seja como consumidores
ou como poluidores.
A agência da água é uma entidade pública descentralizada e dotada de
autonomia financeira. A sua finalidade é dar suporte técnico e financeiro ao
comitê e às empresas, públicas ou privadas, que executam serviços, operações e
obras necessárias ao controle da poluição. A gestão de cada agência está a
cargo de um conselho de administração indicado pelo comitê. Os seus recursos
financeiros provêm da cobrança pelo uso das águas, que se dá na proporção da
água utilizada e pela contaminação produzida no meio receptor.
A cobrança pelo uso da água é, no sistema francês, um instrumento importante
na política de luta contra a poluição das águas. Sua originalidade está em
estimular os que poluem a observar o interesse coletivo, dando-lhes condições
de opinarem sobre o destino dos recursos arrecadados. Outra originalidade está
em garantir a obtenção de um recurso estável para o financiamento dos
programas. Uma terceira originalidade está na criação de um gerente único e
independente da administração do estado.
Existem poucas controvérsias a propósito de o modelo francês ser a
principal fonte de inspiração dos sistemas institucionais que estão em
implantação no Brasil, seja a conformação geral delineada pela Lei Nacional no 9.433/97
ou as variações sobre o tema aplicadas pelas unidades federativas, à luz de
suas especificidades regionais. A formação de comitês de bacia e de agências
de água adquiriu uma grande força; tornaram-se unanimidade, o que sem dúvida,
com o passar do tempo deverá contribuir para o sucesso o modelo de gestão das
águas, no Brasil e no Estado de São Paulo.
Considerações finais - Em relação ao planejamento do uso dos
recursos hídricos, pode-se dizer que ele foi marcado, até a década de 1980,
pela forte centralização e pela excessiva setorização, como era na França até
1964. Os planos tinham a sua eficácia comprometida pela parcialidade dos
enfoques que os geravam, dado que acabavam desconsiderando os conflitos
sociais, econômicos e políticos que sempre acompanham o uso das águas. Não
resultavam de negociações entre os diversos usuários das águas.
A forte centralização do poder de decisão no Brasil começou a ser
rompida com a Constituição de 1988. Contudo, não se completou, ainda o ciclo de
adaptação do aparato institucional. Os municípios e as regiões ainda não
assumiram de forma integral as atribuições normativas e fiscalizadoras que
agora lhes são permitidas e a sociedade civil ainda tem uma participação muito
tímida.
A partir do novo quadro legal, que possibilita novos arranjos
institucionais, começa a se construir uma nova forma de planejar a economia e o
uso dos recursos naturais, entre eles os recursos hídricos. A nova forma
pressupõe uma postura democrática e, portanto, deverá estar alicerçada em mecanismos
institucionais de articulação de órgãos públicos (municipais, federais e
estaduais) e de representantes de toda a sociedade. Assim, o planejamento não
deverá ser apenas a concretização de trabalhos técnicos bem estruturados , mas
também o resultado de debates e negociações com os diversos setores sociais e
econômicos.
A participação pública e dos atores sociais é uma ferramenta
extremamente importante nas tomadas de decisão e na diminuição dos conflitos
inerentes ao processo de gestão integrada dos recursos hídricos. A participação
oferece a comunidade à oportunidade de exercer seus direitos, assim como, de
reconhecer suas responsabilidades. A participação nos Comitês de Bacia são a
garantia de que os interesses da maioria estarão garantidos e de que as
melhores decisões possíveis serão adotadas.
Em 25 de agosto de 1993, em cumprimento à Lei 7663/91, no Estado de São
Paulo, foram empossados os integrantes do CRH - Conselho Estadual de Recursos
Hídricos. Em novembro do mesmo ano foi implantado o primeiro Comitê de Bacia, o
Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. A
implantação do comitê consistiu num marco da estrutura da Política Estadual de
recursos Hídricos. A partir, os demais comitês foram paulatinamente sendo implantados
e, paulatinamente, a descentralização da gestão das águas começou a se
efetivar. Também, aos poucos, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos vai
sendo implantada, seguindo os passos da experiência francesa.
Referências
GALLO, Zildo. A defesa da qualidade das águas da bacia do rio
Piracicaba: o papel da CETESB e de todos nós. 2000. Tese (Doutorado) –
Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
222p.
______. A proteção das águas, um compromisso do presente com o
futuro: o caso da bacia do rio Piracicaba. 1995. Dissertação
(Mestrado) – Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 1995. 151p.
24 de fevereiro de
2015
Cadê o córrego do Gallo na
vila Gallo?
O título deste artigo não é nenhuma brincadeira, é sério. Havia um
córrego do Gallo na vila Gallo no município de Americana/SP. É Gallo com dois
eles mesmo. Não se trata do macho das galinhas, que se escreve com um ele só,
aquela ave que canta no alvorecer de cada dia. Este Gallo que é grafado como o
meu sobrenome significa gaulês (originário da Gália). Pelo jeito, sou um
descendente de Asterix e de Obelix, como todos os demais cidadãos portadores do
mesmo sobrenome.
Os americanenses mais novos talvez nem imaginem onde se localiza o
córrego em questão, mas, com certeza sabem onde fica a Avenida Prefeito Abdo
Najar. O córrego fica em baixo dessa avenida. A nascente e todo o córrego estão
soterrados. Estranho? Não, nem um pouco. Era e ainda é, em muitos lugares, uma
prática comum a canalização de córregos. Trata-se de um atentado à natureza, um
dos muitos atentados praticados contra ela no meio urbano. Ali, na avenida,
deveria correr um regato com a sua mata ciliar, o que poderia ser uma bela
imagem do ponto de vista paisagístico e as cidades carecem de áreas verdes e de
belas paisagens para suavizarem a brutalidade da selva de concreto, Americana
não foge ao caso.
O cronista carioca Stanislaw Ponte Preta escreveu a obra Febeapá
(Festival de besteiras que assola o país), que foi muito lida nos anos setenta,
nos tempos da minha adolescência. Toda cidade precisaria de um Stanislaw Ponte
Preta para registrar as besteiras praticadas pela gestão municipal, com o apoio
e o aplauso de muitos munícipes. A canalização dos córregos está no rol das
besteiras de muitas cidades. O município de São Paulo é o campeão nesse tipo de
asneira. Quem sabe que o Vale do Anhangabaú em São Paulo era o vale do rio Anhangabaú?
Sobre esse corpo d'água passa uma larga avenida. Essa situação se repete em
muitas cidades do Brasil. Não se trata, todavia, de uma exclusividade
brasileira; muitos outros países também necessitam de cronistas que registrem
os seus febeapás.
Por que se canalizaram os córregos? Por dois motivos: 1) com o
asfaltamento das ruas, as águas das chuvas corriam rapidamente para os córregos
e acabavam provocando inundações e; 2) o despejo do esgoto in natura nos
corpos d'água provocavam mal cheiro na vizinhança dos ribeirões, também se
alegava questões de saúde pública. São duas saídas bem complicadas. As
canalizações dificilmente resolvem as inundações, pois a melhor forma de
combatê-las é a pela existência de solo descoberto ou, melhor, coberto apenas com
vegetação, em abundância, para possibilitar a infiltração das águas no subsolo.
Mas, onde fica a especulação imobiliária, que disputa cada palmo de chão para
transformá-lo em dinheiro? Por sua vez, a melhor forma de eliminar o mal cheiro
do esgoto e os possíveis riscos à saúde é pelo seu tratamento, desconheço
outra. Em relação ao córrego do Gallo, parece-me que os dois argumentos foram
usados à época.
Em todas as cidades os argumentos são os mesmos. Hoje, vários países já
estão fazendo um tipo de engenharia reversa, estão descobrindo os rios
canalizados, retirando sua capas de concreto, mas, no Brasil, isso ainda está
longe de acontecer, quiçá um dia... As cidades cresceram em confronto com a
natureza e poucas, muito poucas, respeitaram o meio ambiente no seu processo de
expansão. Entretanto, esta é uma visão de hoje, pois até poucos anos atrás as
questões ambientais não eram colocadas na ordem do dia, pois o que contava era
o "progresso" e tudo que se colocasse contra ele era visto como atraso,
como antiquado.
Hoje, passando pela Avenida Abdo Najar, que já está toda tomada por
construções, parece difícil reverter a situação, talvez impossível. Registro
este libelo com dois objetivos: 1) como advertência para outros futuros
febeapás e; 2) como protesto pelo confinamento do ribeirão que homenageia a
imensa família Gallo de Americana, parece-me que esta é a origem do seu nome,
assim como do bairro.
12 de janeiro de
2015
O Sistema Cantareira continua secando, apesar das
chuvas. Há o que fazer?
Hoje, 12 de janeiro de 2015, recebi a informação de que o volume de água
do Cantareira caiu na sexta-feira (09/01) de 6,8% para 6,7%. Estamos no período
chuvoso, mas ainda tem chovido menos que nos outros anos.
Há que se preparar para o pior. Enquanto as obras de engenharia não
acontecem, a ordem do dia é racionamento (eufemisticamente, podemos denominar
racionalização do uso), não dá para escamotear nem dá para ficar lamentando.
Em 19/11/2014 o Jornal GGN trazia a matéria assinada por Arnaldo Pagano
que, resumidamente, dizia o seguinte: Em plena crise de abastecimento de água em São Paulo, a Sabesp deve
fechar 2014 com lucro perto de R$ 1,9 bilhão. Apenas no segundo trimestre, o
lucro líquido da companhia chegou a R$ 302,4 milhões. A crise hídrica é
inegável, mas a forma como a empresa vem fazendo a gestão de seus negócios é
questionável (http://jornalggn.com.br/noticia/em-plena-crise-sabesp-deve-lucrar-r-19-bilhao).
Não devemos questionar a necessidade de a SABESP ser uma empresa
saudável do ponto de vista financeiro, ela deve ser. O que devemos questionar,
então? Devemos lembrar, sempre lembrar, o fato de que a água não pode ser
tratada como uma mera mercadoria. Antes disso, ela é um bem essencial à vida.
Neste sentido, trata-se, antes de tudo, de um bem público e assim deve ser
considerada pela empresa estatal e pelo Governo do Estado de São Paulo, no caso
o seu sócio majoritário.
O retardamento dos investimentos necessários alimentou os lucros e, por
conseguinte, os dividendos distribuídos pela empresa. Alguém duvida disso? Há
como duvidar disso? Trata-se de uma visão de caráter mercantil e, tratar um bem
essencial de forma exclusivamente mercantil é um sério problema ético, pois
significa dar um tratamento utilitarista em benefício de poucos, no caso os
acionistas da SABESP, em detrimento da imensa maioria dos usuários da água.
Há que se resgatar o caráter da SABESP: uma empresa pública cujo produto
é um bem público essencial e cuja missão é garantir a segurança hídrica a
muitas cidades do Estado de São Paulo. Ela é uma prestadora de serviços; não
são quaisquer serviços, são serviços essenciais: fornecer água potável e tratar
dos efluentes domésticos, garantindo, a sanidade dos corpos d'água do Estado. O
seu lucro inquestionável deve derivar deste servir e não da procrastinação do
seu dever.
Esta crise hídrica talvez sirva para relembrar que a água é um bem
essencial à vida, assim como o ar e os alimentos, que é um bem público e que
deve ter o seu uso garantido a todos, da forma o mais racional possível,
independente do poder de compra de cada membro da população. Isto significa que
não se pode abrir mão do planejamento (curto, médio e longo prazos) na gestão
dos recursos hídricos. Um bem essencial não pode ser deixado à lógica de
mercado, que se movimenta no curto prazo, muitas vezes no curtíssimo prazo, no
sentido do ganho imediato.
08 de janeiro de
2015
Mais sobre a água: usos múltiplos, escassez e
cobrança pelo uso
A água apresenta várias possibilidades de uso. Além de ser um recurso
vital, serve ao aproveitamento hidrelétrico, à navegação, ao abastecimento das
cidades e indústrias, das quais recebe efluentes domésticos e industriais etc.
E, quando um curso de água se presta a diversos usos, podem surgir conflitos,
pois existem rivalidades no uso de recursos escassos. Com frequência o
crescimento das populações urbanas compete e conflita com as atividades
produtivas em relação ao uso da água. A Associação Brasileira de Recursos
Hídricos (ABRH) manifestou-se sobre a questão, em 13 de novembro de 1987,
através da Carta de Salvador:
A água, pelo importante papel que
desempenhou no processo de desenvolvimento econômico e social, é um bem
econômico de expressivo valor, sujeito a conflitos entre seus usuários
potenciais.
Assim, o País deve valorizar as oportunidades de aproveitamento de recursos
hídricos para múltiplas finalidades – abastecimento urbano, abastecimento
industrial, controle ambiental, irrigação, geração de energia elétrica,
navegação, piscicultura, recreação e outras – analisando seus empreendimentos
em contextos de desenvolvimento regional integrado, e contemplando vários
objetivos, principalmente de natureza econômica, social e ambiental.
Na primeira metade do século XX, o Código de Águas, de 1934, já tinha
enfocado a questão dos usos múltiplos, quando dispôs, nos artigos 37 e 38, que
o uso das águas públicas deveria realizar-se sem prejuízo da navegação, desde
que se destinasse ao comércio. No Artigo 143, ele dispôs os interesses a serem
considerados nos aproveitamentos de energia, que era seu principal foco: a) da
alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas; b) da navegação; c)
da irrigação; d) da proteção contra inundações; e) da conservação e livre
circulação de peixe; f) do escoamento e rejeição das águas.
Sem nunca desconsiderar a importância das leis que regem a matéria, no
estudo dos usos múltiplos, deve-se sempre levar em consideração as
particularidades das bacias hidrográficas. Não dá para adotar uma hierarquia
genérica para o uso das águas, pois cada aquífero tem características próprias.
Devem ser considerados os aspectos hidrológicos, geográficos, políticos e
econômicos. Esta é uma das razões da adoção da bacia hidrográfica como unidade
físico-territorial de gestão das águas, com a efetiva participação das
comunidades locais.
A questão da disponibilidade de água, para algumas bacias do
Estado de São Paulo, por exemplo, nos anos mais recentes, tem se colocado de
forma ostensiva. Além da bacia do Alto Tietê, a do Piracicaba, do Capivari, do
Jundiaí, e da Baixada Santista enfrentam este tipo de problema. A intensa
industrialização que se fez acompanhar por um processo de urbanização não menos
vigoroso é a causa desse fenômeno.
Exemplificando: a Região Metropolitana de São Paulo apesar de ser uma
região com chuva abundante (a precipitação média na bacia do Alto Tietê é de
cerca de 1300 mm), a área da bacia de captação dessa precipitação é pequena e
as bacias em toda a volta também são pequenas, portanto, há uma escassez
relativa pronunciada, que é agravada pelo enorme contingente populacional.
Poucas cidades do mesmo porte enfrentam o desafios vivenciados por São Paulo
em relação aos recursos hídricos.
Todavia, esse problema de escassez, é uma visão de hoje. Por certo não
foi a visão de São Paulo nos tempos de Anchieta e Nóbrega e nem mesmo até o
início do século XX. Isso tem a ver com o tamanho que São Paulo acabou
alcançando. Hoje, a Grande São Paulo, com seus 39 municípios, tem cerca de 20
milhões de habitantes, abrigando num território pequeno (8.047 Km2)
mais ou menos 10% da população nacional, e tem um PIB (Produto Interno Bruto)
de cerca de 600 bilhões de reais. É muita gente e muita atividade econômica
para a bacia do Alto Tietê; nessas condições, a água deixa de ser abundante e,
na linguagem dos economistas, por sua relativa escassez, passa a ser chamada
de recurso hídrico. Como tal passa a ser considerada como um bem econômico e
um objeto de preocupação da economia, buscando-se assegurar, assim, que seu
uso se dê da forma mais racional possível.
Contudo, no Brasil, um país de cultura urbana recente, a água
encontra-se associada fortemente à ideia de abundância. O conceito água
grátis está profundamente enraizado na cultura do povo
brasileiro. As baixas tarifas cobradas pelos serviços públicos dos
municípios que, muitas vezes, mal cobrem os custos de captação,
tratamento, distribuição da água e manutenção dos respectivos
serviços, acabam encorajando um grande desperdício e, por consequência, um
desprezo pela conservação e proteção dos recursos hídricos.
Tendo em vista a intensificação dos usos, principalmente dos consuntivos
(irrigação, abastecimento urbano e industrial), que, em larga medida, não
retornam para os corpos d’água, e da diluição de efluentes domésticos e
industriais não tratados, que tem tornado cada vez mais escassa a existência
de água de boa qualidade para consumo humano, a sua proteção faz-se cada vez
mais necessária. É neste sentido que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos
se colocou a partir da constituição de 1988 e vem sendo, aos poucos, implantada
no território nacional; trata-se de uma forma de dar alguma racionalidade ao
uso dos recursos hídricos, evitando desperdícios.
A cobrança pelo uso das águas é um instituto novo no mundo e novíssimo
no Brasil. Entretanto, o fundamento legal para a cobrança pelo seu uso remonta
ao Código Civil de 1916, quando se estabeleceu a utilização dos bens públicos
de uso comum podia ser gratuita ou retribuída. No mesmo sentido, o Código de
Águas de 1934 estabeleceu que o uso comum das águas pode ser gratuito o
retribuído. Posteriormente, a Lei 6.938 de 1981 incluiu a possibilidade de
imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar
os danos causados e, ao usuário, da contribuição pelo uso de recursos
ambientais com fins econômicos. Finalmente, em 1997, através da Lei 9.433 ficou
definida a cobrança como um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos. A
Lei 9.984/2000, que criou a Agência Nacional de Águas (ANA), atribuiu a ela a
competência da cobrança pelo uso das águas de domínio da União.
A Carta Europeia da Água, proclamada pelo Conselho da Europa em Estrasburgo,
França, em maio de 1968, em seu artigo 10, considerou que “a água é um
patrimônio comum, cujo valor deve ser reconhecido por todos” e que “cada
um tem o dever de economizá-la e utilizá-la com cuidado”. A Declaração de
Dublin, em janeiro de 1992, estabeleceu no seu princípio número quatro que os
recursos hídricos de um país são um bem de valor. A Agenda 21, que resultou da
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada
no Rio de Janeiro, em junho de 1992, também recomendou a cobrança pelo uso dos
recursos hídricos.
Para o Estado de São Paulo, a sua Constituição em vigor estabelece, no
Artigo 211, a cobrança pela utilização dos recursos hídricos, e a
Lei 7.663/91, no Artigo 3o, inciso III, considera o “recurso
hídrico como um bem público, de valor econômico, cuja utilização deve ser
cobrada, observados os aspectos de quantidade, qualidade e as peculiaridades
das bacias hidrográficas”. A Lei estabelece que, na sua regulamentação,
com relação à cobrança pelo uso ou derivação, deverão ser obedecidos os
critérios que seguem: a classe de uso preponderante em que for enquadrado o
corpo de água onde se localiza o uso ou derivação, a disponibilidade hídrica
local, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, a vazão
captada em seu regime de variação, o consumo efetivo e a finalidade a que se
destina. Para a cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes,
conforme a mesma lei, deverão ser respeitados os seguintes critérios: a classe
de uso em que for enquadrado o corpo d’água receptor, o grau de regularização
assegurado por obras hidráulicas, a carga lançada e seu regime de variação,
ponderando-se, dentre outros, os parâmetros orgânicos e físico-químicos dos
efluentes e a natureza da atividade responsável pelos mesmos.
A cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, baseada
no princípio poluidor-pagador, é um dispositivo que possui muitas
deficiências. Contudo, goza de grande popularidade, derivada da conjunção de
vários fatores: ele faz apelo à noção de justiça, recorre às regras do mercado
e não a uma burocracia especializada, prometendo uma solução ótima e
contribuindo com o mito da “racionalidade econômica”. Um problema que se coloca
é como avaliar o custo da poluição. Também parece perigoso tentar legitimar
atentados ao ambiente que comprometem o funcionamento dos ciclos ecológicos dos
quais dependem a reprodução dos recursos renováveis; se tais atentados forem
de caráter irreversível, o dano não é passível de cálculo. Contudo, o exposto
acima não inviabiliza de forma definitiva a utilização do princípio
poluidor-pagador. Ele pode ser usado no sentido de forçar a
implantação de sistemas eficientes de tratamento de esgotos. A experiência
francesa na gestão de bacias hidrográficas, que utiliza o princípio, tem
mostrado a possibilidade da sua utilização.
Referência
GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia
e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.
29 de dezembro de 2014
As águas, recomendações para o próximo ano
Hoje, dia 29 de dezembro de 2014, antepenúltimo dia do ano, recebi as
seguintes informações:
·
no dia 28/12/2014, a vazão do Rio Atibaia em Campinas/SP, cidade onde
resido, havia caído pelo segundo dia consecutivo, chegando a 10,6m3/s;
·
o nível do Sistema Cantareira, que abastece a Região Metropolitana de
São Paulo (RMSP) e regulariza a vazão a jusante, para a Região Metropolitana de
Campinas (RMC), também voltou a cair, após subir por três dias consecutivos,
indo de 7,4% para 7,3%.
A imprensa fica noticiando todos os dias sobre o sobe e desce dos
reservatórios, sobre as vazões dos corpos d'água e sobre os volumes das chuvas.
São informações importantes, pois alertam os usuários dos recursos hídricos,
para que eles façam a sua parte, utilizando os recursos moderadamente.
Contudo, considero a forma como a imprensa atua inadequada e incompleta
em diversos pontos: 1) sinto a falta de matérias com caráter mais educativo e
menos terrorista, informando formas de redução de consumo e de reuso de água,
como o aproveitamento da água da máquina de lavar roupas, por exemplo; 2)
poderiam ser feitas coberturas sobre como as prefeituras estão enfrentando ou
como pensam enfrentar a questão da escassez dos recursos hídricos nas duas
regiões em questão; 3) os jornais, as rádios e as TVs poderiam fazer matérias
de caráter mais educativo, mostrando de forma simples e rápida (é plenamente
possível) o comportamento do ciclo hidrológico, das águas subterrâneas, a
importância da vegetação e das áreas permeáveis para o armazenamento de água
etc. Entrevistas mais frequentes com especialistas ajudariam muito também.
Como um dos especialistas, percebo uma ignorância generalizada sobre a
questão dos recursos hídricos, incluindo aí a imprensa. Todavia, entendo o porquê:
até bem pouco tempo vivia-se uma sensação de abundância. De fato, havia uma
relativa abundância, pois o Estado de São Paulo encontra-se fora da parte do
Brasil que historicamente enfrenta estiagens prolongadas, como o semiárido
nordestino. Estiagens severas (esporádicas) aconteciam aqui (os agricultores a
percebiam mais nitidamente e os moradores urbanos bem menos), mas naqueles
tempos o fator urbanização não pesava tanto como agora, com destaque para as
duas regiões metropolitanas.
Além da quantidade exorbitante de usuários de recursos hídricos, as
cidades das metrópoles estão extremamente impermeabilizadas e as chuvas viram
de forma muito rápida escoamento superficial, provocando enchentes e não
alimentando as águas subterrâneas; são águas perdidas que seguem
antecipadamente rumo ao seu destino final, o oceano.
O que fazer? Aqui vão algumas sugestões: 1) os habitantes e as empresas
dos mais diferentes tipos (fábricas, shoppings, hotéis etc.) poderiam ser
incentivados a recolher e armazenar as águas da chuva, como os nordestinos
estão aprendendo a fazer; 2) as prefeituras deveriam providenciar a ampliação
de espaços permeáveis, como os parques e jardins, por exemplo; 3) as câmaras de
vereadores poderiam, através de leis, delimitar espaços permeáveis mínimos
obrigatórios nos imóveis urbanos; 4) os engenheiros deveriam buscar formas
alternativas de calçamento das vias públicas, diferentes do asfalto, que
permitissem a infiltração da chuva, o que diminuiria as enchentes e produziria
a melhor forma de armazenamento de água, que se encontra disponível de forma
gratuita e completamente natural, que é aquela que acontece no subsolo.
24 de novembro de 2014
As
árvores, as águas, os morros e os ventos
A longa estiagem que castiga severamente a Região Sudeste do Brasil, com
destaque para o Estado de São Paulo, deixando a Região Metropolitana de São
Paulo (RMSP) e a Região Metropolitana de Campinas (RMC) em situação de grave
crise de abastecimento, pode ser muito útil se, ao menos, servir para que
pensemos um pouco sobre como tem sido a nossa relação com a natureza.
Vivemos em casas ou apartamentos nas cidades, com suas ruas pavimentadas
e arborizadas com plantas enfileiradas, a maioria de um mesmo tipo, e com
alguns parques onde observamos uma variedade um pouco maior de espécies
arbóreas, cujos nomes, populares ou científicos, na sua maioria desconhecemos.
Essas árvores, alguns animais domésticos, algumas flores nos jardins caseiros,
quando eles existem, ou em vasos resumem o nosso contato com a natureza. Ah! às
vezes, tem um zoológico na cidade e nele vemos outros bichos, de longe, e,
talvez nos perguntemos o porquê das placas "não alimentem os
animais".
Reclamamos quando chove, quando faz calor, quando faz frio e quando
venta. Também reclamamos do barro, da poeira, das folhas das árvores nas
calçadas e de muitas outras coisas, é muito desacordo... Em suma: temos uma
relação de intolerância em relação à natureza. Ela nos parece estranha e, de
fato, nos é estranha, pois dela nos afastamos há muito tempo e, assim, dela nos
esquecemos ou, melhor, esquecemo-nos há muito que dela fazemos parte, deixamos
de ser "gente do mato".
A industrialização e a urbanização produziram esse afastamento; são dois
fenômenos bem conhecidos e muito estudados. Eles criaram uma natureza à parte,
uma natureza construída com ferro e cimento, um ambiente protegido, onde
vivenciamos uma sensação de "ampla" segurança. Um exemplo em relação
aos recursos hídricos: não sentíamos a falta d'água como sentem os povos que
vivem nas regiões áridas e semiáridas, pois quando abríamos as torneiras,
víamos a água jorrar. Mas, agora, abrimos as torneiras e a água já não jorra.
Sentimo-nos inseguros e impotentes e, se observarmos com bastante atenção, de
fato, tornamo-nos impotentes, de certa forma...
Por ignorarmos muitas coisas, por não compreendermos muitos fenômenos
que nos cercam, sentimos medo e impotência. A ignorância costuma ser a mãe de
muitos medos. Apesar de sermos urbanóides, podemos fazer algumas coisas para
mudar isso, mas, para tanto, precisamos questionar inclusive algumas
"comodidades" que a vida urbana nos proporciona.
A seguir vão algumas informações para que nos tornemos um pouco menos
desinformados sobre a natureza, em particular sobre a água. Divido em três
partes o conjunto de explicações ambientais necessárias para compreender
minimamente a questão dos recursos hídricos, destacando a produção e a
conservação da água: as florestas e as águas, a água no meio urbano; a água no
meio rural.
A floresta e as águas
As florestas são essenciais no processo de produção de água doce. As
árvores retiram água do subsolo e lançam na atmosfera, trata-se de um fenômeno
conhecido como evapotranspiração. A evapotranspiração transforma-se em nuvem e
desce à terra em forma de chuva. Quanto maior a floresta maior é a
evapotranspiração e a formação de nuvens. Para exemplificar: a floresta
amazônica localiza-se sobre áreas abundantes em água subterrânea e, pelo seu
tamanho, produz muita evapotranspiração e muitas nuvens. Essas nuvens são
empurradas pelo vento para a Região Sudeste do Brasil e se transformam em
chuva.
A preservação da floresta amazônica é necessária para a produção de água
doce no Sudeste brasileiro. Então, o que nós moradores do Sudeste podemos fazer
pela Amazônia, pela sua preservação? Além de nos manifestarmos contra o
desmatamento, podemos fazer duas coisas bem práticas: diminuir muito o
consumo de carne bovina e não comprar madeira de origem amazônica não
certificada.
A expansão do consumo de carne bovina, no Brasil e no mundo, tem
provocado contínuos desmatamentos nos estados da Região Norte para a abertura
de pastagens. Assim, formou-se uma união perversa entre madeireiros e
pecuaristas que precisa ser desmontada. A criação de gado no Brasil dá-se de
forma predatória, basicamente pecuária extensiva, a cada aumento no consumo de
carne aumenta-se a área de pastagem. Após a ocupação da Região Centro-Oeste e a
consequente degradação das suas terras, acompanhada da devastação da vegetação
do cerrado, a pecuária de corte força agora seu avanço rumo ao Norte.
Por sua vez, na Região Sudeste predominam duas formações florestais, a
Mata Atlântica e o Cerrado. Ambas foram muito devastadas, restando muito pouco
das formações originais. Faz-se necessária a recuperação de boa parte delas.
Isso ajudará nas formação de nuvens que se somarão às produzidas na Amazônia,
contribuindo para a produção de chuvas. Mais adiante, quando falarei da água no
meio rural, a questão florestal do Sudeste será enfrentada com os detalhes
necessários.
A água no meio urbano
Além de fazer o uso mais racional possível dos recursos hídricos,
evitando desperdícios, os moradores das cidades precisam entender algumas
coisas simples mas muito úteis para contribuírem com a produção e a preservação
de água. O principal problema das cidades é a impermeabilização do solo, pois,
além das ruas asfaltadas, os moradores costumam cimentar os quintais. Isso
impede a penetração da água da chuva no subsolo, o que diminui, por
conseguinte, a água das nascentes. Com a impermeabilização, as chuvas
transformam-se em escoamento superficial (enxurrada) e a água vai embora para
os rios e dos rios para o mar. O ideal é ter muita água armazenada no subsolo;
o subsolo é o nosso melhor reservatório.
Além dos quintais descobertos, com jardins e hortas e, dependendo dos
seus tamanhos, também com árvores de grande porte, os municípios precisam de
muitas áreas livres e arborizadas (parques e jardins). As árvores deixam a
temperatura mais amena e o ar mais úmido, por conta da evapotranspiração. Elas
são climatizadores naturais de ar e também contribuem com a formação de nuvens.
As vias públicas também devem ser arborizadas pelos mesmos motivos elencados
acima.
Antigamente, as ruas eram pavimentadas com paralelepípedos (blocos de
granito) e os vãos entre os blocos diminuíam o escoamento superficial, pois
permitiam a infiltração da água da chuva no subsolo. Algumas cidades, como
Campinas, no Estado de São Paulo, onde resido, chegaram a colocar massa
asfáltica sobre as ruas com paralelepípedos, talvez por conta do incômodo dos
motoristas com o chacoalhar dos carros e das moçoilas com seus sapatos de salto
alto. Trata-se de uma ignorância desmedida.
A água no meio rural
Nas áreas rurais, a importância das árvores é ainda maior que nas
cidades, se é possível estabelecer uma hierarquia. Caso os proprietários rurais
cumpram a lei e reflorestem as matas ciliares nas margens dos corpos d'água e
as matas das nascentes, já estarão dando uma grande contribuição para a
produção de água. E se, além disso, criarem as suas reservas legais,
estabelecidas em percentuais diferentes conforme as regiões, boa parte da
cobertura florestal original será recuperada. Os agricultores precisam
abandonar a ideia de que as florestas diminuem as áreas agricultáveis, com a
consequente diminuição da produção agrícola. Trata-se de uma visão imediatista
e extremamente utilitarista em relação à natureza. Pode ser que a crise hídrica
contribua para a essa tomada de consciência.
Outras áreas muito importantes para a produção e o armazenamento de água
são os topos de morros, pois os morros são verdadeiras caixas d'água naturais,
são os nossos melhores reservatórios. Eles não podem ser impermeabilizados, com
a construção de imóveis, por exemplo, e necessitam de cobertura florestal. As
árvores no topo dos morros impedem que as chuvas se transformem em escoamento
superficial, e possibilitam a infiltração. A água armazenada nos morros é
liberada aos poucos nas nascentes e as nascentes se transformam em rios e lagos.
Em larga escala, no Brasil, os morros foram desflorestados e necessitam que
suas árvores sejam replantadas.
Alguém desavisado pode argumentar o seguinte: as roças cultivadas pelos
agricultores não realizam o mesmo processo de evapotranspiração necessário à
formação das nuvens? Podem, mas não com a mesma eficácia das árvores. As
árvores buscam água no subsolo, pois têm raízes profundas e, mesmo nas
estiagens, realizam permanentemente o seu papel de umidificar o ar e produzir
nuvens. As roças temporárias, com plantas de raízes curtas, apenas captam água
na superfície do solo e, nos períodos do estiagem, necessitam de irrigação, o
que pode piorar a situação de escassez hídrica. As roças e as pastagens não têm
como substituir as florestas na produção de água.
Além de tudo isso, não podemos nos esquecer de que estamos sob o efeito
da aquecimento global, o "efeito estufa", que tem desregulado os
ciclos naturais. Em alguns lugares as estiagens acentuam-se, em outros as
inundações aumentam; ora faz muito frio ora faz muito calor; os ventos ora
sopram ora não sopram; tempestades violentas acontecem onde antes não
aconteciam; etc. etc. Parece o caos, mas não nos desesperemos. Isso significa
que temos que ser mais prudentes em relação ao uso dos recursos naturais. Diante
das perspectivas sombrias, de imediato, pelo menos, duas atitudes são
necessárias: 1) iniciar já a recuperação dos ecossistemas degradados, como as
matas ciliares, nascentes, topos de morro e florestas; 2) assumir uma atitude
preventiva e adotar uma forma de planejar a ocupação do território que minimize
os impactos das intervenções sobre a natureza, no curto, médio e longo prazos.
São tarefas grandes e necessitam da intervenção dos governantes. O que nós
cidadãos comuns podemos fazer? Coisas simples, como usar água com parcimônia,
cultivar plantas nos quintais, diminuir o consumo de carne bovina, consumir
produtos da agricultura orgânica, que tem uma relação positiva com a natureza
etc. Coisas bem simples...
11 de novembro de 2014
José do Egito, a crise hídrica e a SABESP
A passagem bíblica de José do Egito no antigo testamento ensina-nos algo
importante: a importância de armazenar alimentos para o futuro, para atender a
épocas de pouca produção ou de perdas por intempéries. Ele interpretou um sonho
do faraó da seguinte forma: depois de sete anos de abundância, com grandes
safras agrícolas, seguirão sete anos de seca. Com isso, o faraó providenciou o
armazenamento de cereais em todo o Egito durante os tempos de abundância,
garantindo assim que não houvesse fome nos sete anos seguidos de escassez. É
bom lembrar que armazenar alimentos preventivamente tornou-se uma atividade
comum a todos os povos, desde a pré-história.
Em relação à água, a humanidade aprendeu a armazená-la há muito tempo
também. A construção de reservatórios e cisternas para guardar água tornou-se
uma atividade ampla e necessária para enfrentar os períodos de estiagens
cíclicas. Os seres humanos tornaram-se armazenadores de víveres e de água, há
muito tempo, o que ajudou a garantir a sua sobrevivência e a sua expansão por
todo o planeta Terra.
Nos tempos de José, a previsão climática cabia aos videntes, pois a
ciência do clima, que produz previsibilidade em relação aos fenômenos naturais,
surgirá muito depois, muitos séculos à frente. A meteorologia, nos dias de
hoje, tem muita informação acumulada e dispõe de avançada tecnologia para
garantir informações cada vez mais seguras para a população e para os
governantes.
Hoje, 2014 d.C., mais de 3500 anos depois da passagem de José pelo
Egito, o Estado de São Paulo, no Brasil, vive uma grande seca. Esta seca não
foi prevista por nenhum vidente, que se saiba, mas foi antevista pela ciência,
pelos "magos do clima" com seus equipamentos modernos, que observam a
Terra do alto, das alturas celestes.
A empresa responsável pelo Sistema Cantareira que abastece tanto a
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) como a Região Metropolitana de
Campinas (RMC), as duas mais populacionalmente adensadas do Estado de São
Paulo, é a SABESP, uma estatal com ações na Bolsa de Valores. Trata-se de uma
instituição moderna e preparada tecnicamente para cuidar dos recursos hídricos
e do saneamento, não há dúvidas a respeito. É ela a responsável por estocar
água no período chuvoso para garantir o abastecimento na estiagem.
As informações estatísticas sobre as precipitações anuais e sobre as
vazões dos rios são antigas e constituem uma série histórica adequada para a
consulta com objetivo de planejar o abastecimento presente e futuro da
população das duas regiões metropolitanas. As estatísticas sobre o
consumo urbano, agrícola e industrial também formam uma série histórica apta à
consulta. Em relação ao consumo, particularmente em relação ao uso urbano,
observa-se, ano a ano, um aumento contínuo, que guarda relação com a evolução
da população. O crescimento demográfico ainda é uma realidade nas duas regiões.
Outras informações são importantes e uma delas muito importante,
trata-se da eficiência do sistema, do índice de perdas de água na rede. A rede
de água na cidade de São Paulo, por exemplo, é muito antiga e carece de
manutenção permanente, incluindo aí a substituição do encanamento danificado.
Outra informação importante é o consumo per capita, que diz respeito aos
hábitos de uso, que podem ser mais parcimoniosos ou mais pródigos. Ao
setor público cabe o papel de instruir os usuários sobre o consumo de água.
Em 1995, quando defendi a minha dissertação de mestrado no Instituto de
Geociências da UNICAMP, constatei que, já naquela época, os cientistas
apontavam para um risco de escassez de água e sugeriam que algumas medidas
fossem tomadas: redução das perdas nas redes, construção de novos
reservatórios, recuperação da vegetação das nascentes, das margens dos rios e
dos topos de morros etc. Em 2000, na defesa do meu doutorado, as mesmas
preocupações estavam presentes e já se apontava um aumento do risco. Naquela
época, nas estiagens, as vazões a jusante do Cantareira, para a RMC, diminuíam
e prejudicavam o abastecimento em várias cidades. Contudo, o atendimento da
RMSP ficava garantido com a retirada firme de 30 m3 por
segundo. O paulistano, ao contrário do piracicabano, do americanense, citando
dois exemplos, vivia uma sensação de abundância. Havia a sensação de uma
cornucópia jorrando água sem cessar para os municípios da Grande São Paulo.
Passaram-se os anos e os investimentos apontados acima não ocorreram.
Então, chegou a grande estiagem. Emergencialmente, pelo menos, dever-se-ia ter
organizado alguma forma de racionamento, mas isso também não aconteceu. Ao
contrário, o governo estadual propagou a ideia de que não havia risco ao
abastecimento. Tal irresponsabilidade, como já é amplamente sabido, deu-se por
motivos meramente eleitoreiros, mas não nos aprofundemos nesta questão, apenas
registremos a nossa indignação, já basta...
Uma consideração importante deve ser feita: nunca se deve
esquecer que a água é um bem público e, portanto, um direito de todos. E,
deste modo, a segurança hídrica é uma tarefa que cabe ao setor público, aos
governantes. Todavia, os governantes trataram os recursos hídricos como mera
mercadoria, um produto comercializável da SABESP. Assim, a SABESP vendeu toda a
sua mercadoria e ganhou muito dinheiro, é óbvio, e, por decisão de seu maior
acionista, o governo de São Paulo, distribuiu os lucros (dividendos) entre
todos os acionistas, deixando de lado os investimentos apontados como
necessários há mais de 20 anos. Trata-se de um erro grave contra a segurança
hídrica e agora é muito tarde. As obras necessárias demorarão para serem
construídas e seus efeitos serão sentidos só bem mais adiante. Parece que o
racionamento veio para ficar por um bom tempo, infelizmente.
Sem nenhuma "ciência" e com muito menos tecnologia, mas com
grande espírito público, o faraó do antigo Egito, acreditando nas previsões de
um adivinho, de um judeu que interpretava sonhos, garantiu a sobrevivência do
seu povo durante os sete anos de seca, estocando os alimentos produzidos nos
sete anos de abundância. Com muita "ciência" e com muita tecnologia,
mas desprovidos de espírito público e de sabedoria, os governantes do Estado de
São Paulo não se precaveram enquanto havia abundância de água, não deram
ouvidos aos cientistas e as suas previsões certeiras. Será que eles não
acreditam na ciência? Será que eles, enquanto "liberais", ligam-se
apenas ao curto prazo, aos ganhos imediatos, deixando o longo prazo à
"providência divina"? Não acreditam na necessidade do planejamento? O
que será? O que será?
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