Zildo Gallo
Leio
hoje, dia 24 de junho de 2015, no portal G1, pertencente à Rede Globo, a
seguinte matéria: Menina vítima de
intolerância religiosa diz que vai ser difícil esquecer pedrada (1). Transcrevo abaixo o conteúdo
da matéria e a seguir alguns comentários postados por leitores, sobre os quais
já adianto um parecer: são minimamente muito lamentáveis. Muitas vezes eu tenho
a impressão de que estamos vivendo um novo tempo de trevas, de muita
ignorância, em pleno século XXI, quando já se vão quase cinco décadas da
caminhada dos astronautas americanos sobre o solo da Lua e quando os cientistas
conseguiram observar, em 2014, o Bóson de Higgs, a partícula responsável pela
massa da matéria. À matéria do G1, depois tecerei alguns comentários sobre o
assunto.
A marca da violência está
na cabeça da menina de 11 anos que foi agredida no Subúrbio do Rio por
intolerância religiosa, mas esta não é a maior cicatriz. “Achei que ia morrer.
Eu sei que vai ser difícil. Toda vez que eu fecho o olho eu vejo tudo de novo.
Isso vai ser difícil de tirar da memória”, afirmou Kailane Campos, que é
candomblecista e foi apedrejada na saída de um culto. Ela deu a declaração em
entrevista ao RJTV desta terça-feira (16).
A garota foi agredida no
último domingo (14) e, segundo a avó, que é mãe de santo, todos estavam
vestidos de branco, porque tinham acabado de sair do culto. Eles caminhavam
para casa, na Vila da Penha, quando dois homens começaram a insultar o grupo.
Um deles jogou uma pedra, que bateu num poste e depois atingiu a menina.
“O que chamou a atenção foi que eles
começaram a levantar a Bíblia e a chamar todo mundo de ‘diabo’, ‘vai para o
inferno’, ‘Jesus está voltando’", afirmou a avó da menina, Káthia Marinho.
Na delegacia, o caso foi registrado como
preconceito de raça, cor, etnia ou religião e também como lesão corporal,
provocada por pedrada. Os agressores fugiram num ônibus que passava pela
Avenida Meriti, no mesmo bairro. A polícia, agora, busca imagens das câmeras de
segurança do veículo para tentar identificar os dois homens.
A avó da criança lançou uma campanha na
internet e tirou fotos segurando um cartaz com as frases: “Eu visto branco,
branco da paz. Sou do candomblé, e você?”. A campanha recebeu o apoio de amigos
e pessoas que defendem a liberdade religiosa. Uma delas escreveu: "Mãe
Kátia, estamos juntos nessa".
Iniciada no candomblé há mais de 30 anos,
a avó da garota diz que nunca havia passado por uma situação como essa.
Transcrevo
a seguir alguns comentários, exatamente como foram escritos, cheios de erros de
português, sobre a matéria do portal G1, que considero, inclusive, bem difícil
de serem comentados por conta da profunda ignorância existente na densa matéria
de suas feituras:
·
Sei que isso que fizeram com a
menina foi errado. Mas eu não consigo ter pena de gente que frequenta uma droga
de ceita [seita
com c?] onde sacrificam animais.
·
PELO QUE EU TO VENDO AQUI NOS
COMENTÁRIOS, ESSE SITE DA GLOBO TA CHEIO DE PARÇAS DO DEMÔNIO EM SÓ DA NEGO
APOIANDO OS SATANISTAS!!! JESUS TA VENDO ISSO EM, NO DIA DO JUIZO FINAL NÃO VAI
ADIANTAR PEDIR CLEMENCIA NÃO EM NEGADA!
·
É muito fácil criticar o rapaz
que atirou a pedra, ninguém aqui sabe se a menina mereceu levar a pedrada!
·
Não é só eles não os LGBT e esse
Jean Wiliam [Jean
Wyllis?] tem culpa também violência gera
violência.
·
A maioria dos pais de santo é
gay.
·
Ninguém leva uma pedrada de
graça, é preciso ver o que essa menina fez para merecer isso.
É
óbvio que a cada um desses comentários, surgiram outros no sentido contrário e,
repetindo o que já se tornou algo comum, o site virou um palco de guerra. É uma
pena, mas é difícil não reagir a tanta sandice. Pelo que tenho observado em
várias matérias com teor parecido, o preconceituoso não o é em apenas um
assunto, mas em vários, geralmente em todos. A mesma pessoa que não tolera as
religiões de origem africana, não toleram os homossexuais, são a favor da
diminuição da maioridade penal, a favor da pena de morte etc. etc. etc. O
comentário "A maioria dos pais de santo é gay" dispensa qualquer
comentário e exemplifica o que estou dizendo. Como comentar isso?
Durante
as eleições de 2014, todo esse detrito veio à tona, trazido pela maré da
suprema ignorância. No Estado de São Paulo a coisa ganhou dimensões mais
absurdas ainda, pois surgiu com muita força um ódio aos pobres e aos
nordestinos como nunca tinha sido visto antes. Assim, aos preconceitos por
conta da religião, da raça e da sexualidade, somam-se os preconceitos sociais.
Neste sentido, transcrevo aqui um comentário sobre o que agora escrevo, que foi
postado nessa matéria do G1: "Parabéns Aécio, Malafaia, Bolsonaro,
Felicciano e Olavo de Carvalho pela campanha de ódio disseminada, estão
colhendo os resultados... Brasil de paz e respeito entre as demais religiões é
pedir muito?" Será que o comentarista tem alguma razão?
Todavia,
para provar que nem tudo está perdido, na contramão da ideia de que a
humanidade é um projeto que não deu certo, no meio de todos os comentários, eis
que surge um de um cristão adventista que merece ser citado: "Sou
adventista do sétimo dia e quero manifestar a minha profunda tristeza e
indignação para com a agressão sofrida pela menina Kailane Campos. Essa ação
merece repúdio e prisão. Essas não são pessoas cristãs. Não merecem essa
denominação. Cristo assentou-se junto aos desvalidos e não impôs Seu
pensamento. Deixou a cada um a escolha. O Deus que conheço é de amor,
tolerância, respeito ao livre arbítrio e não da perseguição covarde, da
imposição do pensamento, da tirania. Apesar da escolha dela ser diferente da
minha, não cabe a ninguém impor a sua religião em detrimento da dos
outros".
"Não
cabe a ninguém impor a sua religião em detrimento da dos outros", eis a
essência da tolerância religiosa e todos já sabem que ela é fundamental para a
boa convivência social. Muito violência já aconteceu e ainda acontece no mundo
por conta da falta de tolerância religiosa. Tudo está registrado nos livros de
história, numa infinidade deles. Aos religiosos fica uma sugestão: busquem outras leituras, indo além da Bíblia, do Corão e da Torá (textos sagrados para
as religiões de origem abraâmicas).
Eles
não precisam ir muito longe atrás de escritos. A literatura cristã está repleta
de informações sobre as diferentes formas de intolerância. Se o evangélico
apedrejador tivesse alguma informação sobre o primitivismo do seu ato à luz do
cristianismo, ele deveria cair de joelhos aos pés de Kailane e pedir-lhe
perdão.
O apedrejamento,
também conhecido como lapidação,
conforme se deduz da leitura do Levítico (24:15,16), era uma forma de aplicar a
pena de morte pelos hebreus. Para os olhos de hoje, os procedimentos tendem a
ser considerados bárbaros para a maioria dos povos: arrancavam todas as roupas
do condenado à lapidação, exceto uma faixa, que lhe cingia os rins; um primeiro
apedrejador lançava uma primeira pedra para atingi-lo no peito, acima do
coração; se esta primeira pedrada não lhe desse a morte, as outras pessoas ali presentes o cobririam de pedradas,
até o momento da sua morte. Fecho os olhos e consigo visualizar a fúria e a
satisfação mórbida da turba enfurecida, um horror!
O apedrejador carioca deveria saber que no Novo
Testamento é revisto o uso da lapidação, ou melhor, da pena capital. É por
demais conhecida a passagem do evangelho onde Jesus rejeitou o apedrejamento de
uma mulher adúltera. No judaísmo da época o adultério era um crime gravíssimo e
deveria ser punido com a morte. Que eu saiba, não existe nenhuma passagem no
Novo Testamento que indique a lapidação como pena a ser adotada para os não
cristãos. O comentário do cristão adventista, acima, serve para confirmar o que
escrevo aqui.
Parece
que o carioca atirador de pedras tentou ressuscitar o espírito das leis farisaicas,
anteriores à ascensão do cristianismo, que hoje não são mais praticadas pelo
judaísmo. Desconheço a existência de casos de judeus atirando pedras nos
pecadores hoje em dia. Se alguém souber de algum, conte para mim.
Neste
momento, é bem vinda a lembrança de que muitos cristãos dos primeiros tempos
foram lapidados e que São Paulo comandava aquelas execuções, pois era um fariseu
poderoso e zeloso das tradições do judaísmo, que estava incumbido de perseguir,
prender e matar a pedradas os seguidores de Jesus. O caso mais famoso de
lapidação foi o de Santo Estevão, o primeiro mártir da cristandade. Estevão
fazia parte da primeira comunidade cristã de Jerusalém e era um dos judeus
helenistas (dominava a língua grega) provenientes da diáspora, que foram os
primeiros a se afastar da cidade para difundir o Evangelho.
Não
vou relatar aqui porque é por demais conhecido o episódio da conversão de Paulo
ao cristianismo, mas é importante lembrar que, a partir dela, ele se arrependeu
de verdade do seu papel de verdugo dos cristãos. Então, ele se tornou um
pacifista, assim como todo bom cristão. O cristianismo nasceu e cresceu nos seus
primeiros tempos sob a bandeira da paz. É sempre bom lembrar disso, pois na sua
longa trajetória ele acabou cometendo o mesmo pecado da intolerância dos
fariseus, inclusive com o mesmo nível de violência. Em pleno século XXI,
assistir episódios de intolerância, como este relatado aqui, é muito triste.
Todavia, há que se ter muita compaixão pelos ignorantes: "perdoai-os Pai,
eles não sabem o que fazem".
(1)
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intolerancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html#
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