Zildo Gallo
Enfim
um grande documento da Igreja Católica sobre a questão ambiental, a encíclica
do Papa Francisco: Lettera Enciclica Laudato Si' del Santo Padre
Francesco sulla Cura della Casa Comune (Carta Encíclica Laudato
Si' do Papa Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum). O grande avanço desse
documento é a adoção do conceito de ecologia
integral, que avança para além do discurso antropocêntrico predominante na
maioria dos meios de comunicação e nos discursos dos governos e de instituições
internacionais como a ONU, por exemplo.
A visão da ecologia integral é o
que ela tem que ser, de fato: sistêmica.
Isto significa que ela vê todas as coisas participando de um mesmo todo, dentro
do qual tudo existe e tudo se movimenta, todos os seres, humanos e não humanos,
indistintamente. A visão antropocêntrica afasta o ser humano da natureza e,
pior ainda, coloca-o como um ser dominador sobre os demais, não como um
convivente. Esta visão biocêntrica inerente à concepção de ecologia integral
coloca para os homens, por conta da sua atual situação privilegiada nos
ecossistemas planetários, um novo papel, o de cuidadores.
Os papas anteriores abordavam a
ecologia de forma fragmentada, pontual, não muito diferente das abordagens não
religiosas predominantes. Com Francisco a abordagem tornou-se sistêmica,
encaixando-se dentro de um novo paradigma, que vem sendo construído há mais ou
menos um século, a partir da biologia, da física quântica e da filosofia. Ele
colocou a Igreja Católica definitivamente dentro do debate urgente e
necessário, mais que necessário, sobre a questão sobrevivência da humanidade e
de todas as formas de vida, que se encontram ameaçadas pelas mazelas provocadas
pela forma predatória de exploração econômica do planeta Terra, que tem
produzido desastres ambientais e sociais de grande monta.
Um ponto tem que ser destacado na
Encíclica: a afirmação da verdade científica sobre o aquecimento global, que
vive sendo negada por agentes da ciência a serviço do grande capital. O grande
capital já sentiu o golpe e está reagindo, principalmente nos Estados Unidos,
mas agora estão diante de um agente que tem alcance global, como as suas
corporações; um gigante entrou no combate por um planeta melhor dos pontos de
vista social e ambiental. Como um minúsculo combatente das causa socioambientais,
sinto-me fortalecido com a entrada do Papa na arena e acho que muitos outros
(opositores ao tipo de economia que destrói o ambiente e cria exclusão social
quando produz riqueza) sentiram o mesmo.
Agora, para fazer justiça à
Igreja Católica, há que se mostrar aqui que a sua defesa das questões
ambientais é bem antiga. Como professor do Curso de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado) do Centro
Universitário de Araraquara (UNIARA), orientei o Padre Jorge João Aparecido
Nahra na sua dissertação de mestrado que tem o seguinte título: Ética e meio ambiente: considerações sobre
os textos-base das campanhas da fraternidade de 1979 e 2011, defendida em
2012. Uma versão resumida da pesquisa elaborada e defendida por Padre Jorge foi
publicada na Revista UNIARA, v. 17, n.
2, dez/2014, com o título: A Igreja
Católica e o meio ambiente: considerações sobre os textos-base da Campanha da
Fraternidade a Partir do Concílio Vaticano II. Tanto a dissertação como o
artigo estão disponíveis online nos endereços apontados no rodapé deste artigo.
No artigo da revista, está
ressaltado que, devido à tarefa central da Igreja (evangelização), ela quer
oferecer através de suas campanhas contribuições para que a sociedade possa
viver uma vida melhor. No Brasil, ela se faz presente na Campanha da
Fraternidade, organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
que propõe reflexões para despertar as consciências dos homens sobre os temas
abordados a cada ano. As questões ambientais foram abordadas de formas diretas
e indiretas em várias campanhas, que serão elencadas a seguir.
A Campanha da Fraternidade
enfocou diretamente a questão ambiental nos seguintes anos com os seguintes
temas: 1979, Por um mundo mais humano -
Preserve o que é de todos; 2004, Água,
Fonte de vida; 2007, Vida e missão
neste chão; 2011, Fraternidade e a
vida no Planeta. Especialmente em 2011 ela apresentou também um lema: A criação geme em dores de parto (RM 8,22).
Comparativamente, é possível
afirmar que a Campanha de 2011 foi a que trabalhou com maior profundidade o
tema meio ambiente, pois seu texto-base apresentou o seguinte objetivo geral: "Contribuir para a conscientização das
comunidades cristãs e pessoas de boa vontade sobre a gravidade do aquecimento
global e das mudanças climáticas e motivá-las a participar dos debates e ações
que visam enfrentar o problema e preservar as condições de vida no planeta".
Pode-se dizer que a Campanha de 2011 é um prenúncio da Encíclica do Papa
Francisco pela atualidade das questões abordadas.
Outras Campanhas da Fraternidade
trataram de forma indireta o meio ambiente: 1984, Para que todos tenham vida; 1985, Pão para quem tem fome; 1986, Terra
de Deus, Terra de irmãos; 1991, Solidários
na dignidade do trabalho; 1993, Onde
moras?; 1998, A serviço da vida e da
esperança; 2000, Dignidade humana e
paz; 2002, Por uma terra sem males;
2005, Felizes os que promovem a paz; 2008, Escolhe, pois a vida (Dt 30, 19);
2009, A paz é fruto da justiça; 2010,
Vocês não podem servir a Deus e ao
Dinheiro. Todos os textos dessas Campanhas tocaram em alguns aspectos da
questão ambiental. Por exemplo, a de 2010 falou da transformação da água em
mercadoria e sobre a degradação do meio ambiente. As referências bibliográficas
completas sobre os textos das Campanhas estão disponíveis na dissertação de
mestrado e no artigo publicado na Revista UNIARA (links no rodapé).
As Campanhas da Fraternidade não
se fundamentam em cima do nada e nem apenas na vontade dos membros da CNBB. Os
documentos do Vaticano e as Encíclicas papais são as âncoras onde eles se
firmam. Neste sentido, há um acúmulo de informações e contribuições que
remontam ao Concílio Vaticano II. A partir dele, a preocupação social da Igreja
avançou e também teve início uma preocupação de caráter ambiental. Na Gaudim et Spes (1965), por exemplo, já constou que é preciso
"prever o futuro, estabelecendo justo equilíbrio entre as necessidades atuais
de consumo, individual e coletivo, e as exigências de inversão de bens para as
gerações futuras" (GS 70); eis o prenúncio do conceito de
"desenvolvimento sustentável", cujo fundamento está na preservação
dos recursos naturais para as futuras gerações.
A partir do Concílio Vaticano II,
todos os papas (Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) expressarão suas
preocupações sobre as questões ambientais. Neste sentido, aconteceu um acúmulo
importante de informações e intenções, sem quebras de continuidade. Os documentos citados neste pequeno artigo estão todos disponíveis em publicações de editoras católicas brasileiras e no
site do Vaticano (www.vatican.va). Só para se ter uma ideia da riqueza de
ideias acumuladas, transcreve-se aqui um trecho da fala do Papa Paulo VI para a
Conferência sobre Meio Ambiente de Estocolmo, de 1972:
"Mas
como se hão de ignorar os desequilíbrios provocados na biosfera, devidos à
exploração desordenada das reservas físicas do planeta, até com o propósito de
produzir bens úteis, como, por exemplo, o desperdício dos recursos naturais não
renováveis, a poluição do solo, da água, do ar e do espaço, com os consequentes
atentados contra a vida vegetal e animal?" (Paulo VI, 1972).
A
construção de caminhos para uma cultura de preservação e recuperação do meio
ambiente degradado é tarefa que deve ser feita por muitas mãos. As famílias, as
escolas, os governos, as empresas, as organizações da sociedade civil etc. têm importantes
papéis a cumprir neste processo. A Igreja Católica já vinha fazendo a sua
parte, mas com a Encíclica do Papa Francisco ela foi além, deu um salto
quântico. Se os milhões de católicos abraçarem a causa, mudanças importantes
poderão ocorrer. O Papa argentino tem surpreendido positivamente o mundo. Há
pouco tempo ele mediou o encontro histórico entre o presidente de Cuba, Raul Castro,
e o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama; só para lembrar de um feito
nada pequeno. Que ele tenha muita saúde e uma longa vida!
Referências
NAHRA,
J.J.A. Ética e meio ambiente:
considerações sobre os textos-base das campanhas da fraternidade de 1979 e 2011.
Dissertação (Mestrado). Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio
Ambiente, Centro Universitário de Araraquara - UNIARA, 2012.
<http://www.uniara.com.br/arquivos/file/cursos/mestrado/desenvolvimento_regional_meio_ambiente/dissertacoes/2012/jorge-joao-aparecido-nahra.pdf>
NAHRA,
J.J.A; GALLO, Z.; SOSSAE, F.C.; BAPTISTA, K.A. A Igreja Católica e o meio
ambiente: considerações sobre os textos-base da Campanha da Fraternidade a
partir do Concílio Vaticano II. Revista
UNIARA, v. 17, n. 2, dezembro/2014.
<http://www.uniara.com.br/legado/revistauniara/pdf/33/artigo_05.pdf>
PAULO
VI. Mensagem à Conferência sobre Meio
Ambiente de Stockolm: As preocupações ecológicas e as exigências do
desenvolvimento. Roma: Osservatore Romano, 18/06/1972.
PS.: Dois dias depois de escrever este artigo, quando cheguei na secretaria do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente em Araraquara, encontrei no meu escaninho uma correspondência endereçada a mim. Tratava-se de um livro: Carta Encíclica Laudato Si" - Sobre o Cuidado da Casa Comum, do Papa Francisco, uma edição em português, da Paulinas. Foi um presente enviado pelo meu ex-orientando, Padre Jorge. Fiquei muito contente, é óbvio, pela agradável sincronicidade. Tive acesso anteriormente a uma edição italiana que baixei pela internet e, a partir dela e da leitura de alguns comentaristas, escrevi o presente artigo. Transcrevo aqui a gentil missiva do Padre Jorge:
Matão, 29 de junho de 2015
Estimado Prof. Dr. Zildo Gallo
Quando o Papa Francisco manifestou o desejo de escrever uma Carta Encíclica sobre o meio ambiente, o meu pensamento voltou-se para o Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente do qual participei.
Assim, tomei a liberdade de enviar um exemplar da Carta Encíclica do Papa Francisco - Sobre o Cuidado da Casa Comum.
Espero que esse documento possa colaborar com os objetivos do curso, bem como para o seu conhecimento.
Mais uma vez agradeço toda a atenção e colaboração recebida durante o curso. Muito obrigado!
Abraço fraterno,
Jorge João Ap. Nahra
Transcrevo aqui também o primeiro parágrafo da Carta Encíclica, apenas para registrar o seu singelo e, ao mesmo tempo, majestoso início:
1. "Laudato si', mi' Signori - Louvado sejas, meu Senhor", cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmão, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras" (Cantico delle creature).