Zildo Gallo
A humanidade vive
assombrada por muitas sombras milenares que a acompanham desde os primórdios da
civilização. Neste artigo eu pretendo discursar sobre as três que considero
mais importantes, pois elas são três elementos basilares do patriarcado: a
exploração do trabalho alheio (escravatura, jornadas excessivas, baixas
remunerações, trabalho infantil, insalubre etc.); a violência contra a mulher,
nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, exploração sexual
etc.) e; a apropriação privada do território por poucos em detrimento da
maioria (propriedade privada do espaço de produção da existência).
Para entendermos esta
questão e, sobretudo, a necessidade de se superar as três sombras, temos que,
de antemão, compreender de que homens estamos falando. Que tipo de distorções
levaram a humanidade a produzir, penetrar e perder-se nesta escuridão milenar?
Para tanto, precisamos compreender três dimensões importantes que moldam o ser
humano, que transformam o primata em homem. Estamos falando do homo economicus, do homo sapiens e do homo
religiosus - o homem que
transforma a natureza, o homem sábio que pensa a si e a natureza e o homem que
transcende a sua própria natureza.
O homo economicus é a dimensão mais primitiva do ser
humano e diz respeito à sua sobrevivência material. Imbuído da razão, o homo sapiens consegue pensar a sua sobrevivência
material e, a partir deste pensar, elaborar estratégias diversificadas e
criativas para ela. O homo
religiosus deseja ir além da
sua sobrevivência material e transcender a sua própria natureza humana ou, quem
sabe, realizar-se efetivamente como homem, num patamar acima da sua animalidade.
Na pré-história, do
paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo sapiens) tinham como
preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. No
paleolítico, o uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou
uma convivência mais tranquila com o meio. A seguir, no neolítico, a introdução
da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as
relações sociais pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do
trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Nos primórdios das
cidades a situação se modifica, com o surgimento do trabalho escravo, do
patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis
femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos do
território dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade
trevosa que comanda a humanidade desde então.
Numa situação indefesa,
com conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é bastante compreensível o
surgimento da tríade obscura. Travou-se uma luta entre "fortes" e
"fracos" que perdura até hoje e a questão central da luta passou a
ser a sobrevivência das famílias dentro das cidades. Contudo, com o passar do
tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da
expansão crescente do conhecimento sobre a natureza, mas, ao mesmo tempo, ela
entrou num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não
proprietários, entre homens e mulheres e entre as nacionalidades tornou-se uma
constante, tornou-se a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que
nem tudo dava para todos, embalada no medo permanente da escassez.
No correr da história, os
povos também sonharam utopias, imaginaram mundos movidos pela abundância e onde
houvesse abundância haveria paz. Imaginavam que a "providência
divina", em algum momento os tiraria do sofrimento. Imaginavam uma
transcendência dessa condição humana, dessa que pensam ser a condição humana,
marcada pela dor e pela miséria. O desejo de transcender os limites da matéria,
o círculo vicioso do sofrimento sem fim, acabou conduzindo, muitas vezes para a
possibilidade de transcendê-lo numa vida post
mortem. Isso ensejou a expansão das grandes religiões, que
institucionalizaram a dimensão transcendental do ser humano. Para os cristãos,
por exemplo, o princípio da igualdade é plenamente possível na outra vida e
acreditou-se, durante muito tempo, que só ai ele seria possível. Somos todos
iguais, mas neste mundo é muito difícil materializar tal principio; esta é uma
crença muito arraigada ainda. Modernamente, a Teologia da Libertação enfrentou
esta questão e colocou a igualdade como possibilidade no mundo material, mas
ela enfrenta resistências no seio da própria Igreja Católica, de onde ela
surgiu.
O ser humano, enquanto homo sapiens, imbuído da sua
razão, também imagina sociedades, mundos, onde os flagelos produzidos pela
ideia da escassez, que produz as diferenças entre os iguais, desapareça ou,
minimamente, diminua; aí entra a política como um instrumento de uma
transcendência no campo material. Então, a política é um campo aberto à utopia,
ao desejo de um mundo de iguais. Todavia, ocorre que a ideia da diferença
cristalizou-se entre os homens a ponto de muitos, senão grande a maioria,
acreditarem-se efetivamente diferentes; são melhores nascidos, mais fortes,
mais puros, adeptos da verdadeira religião, habitam o país mais civilizado
etc., o que contribui para lançar água no moinho (moto contínuo) da separação e
das guerras.
Ocorre ainda outra
situação naturalmente adversa, porém mais sutil: por mais que a sociedade possa
ser igualitária, a vida na matéria é frágil, perecível e finita e também
sujeita a muitas intempéries e acidentes. Assim, o desejo latente por uma
transcendência para além da matéria atua nos homens como um elemento
estabilizador da sua personalidade, criando o espaço da espiritualidade, que
está posto num local atemporal, acima das religiões, no inconsciente coletivo
da humanidade. Então, o homo
religiosus é um importante
elemento constitutivo da psique humana. Reprimir tal aspecto da existência
(intolerância religiosa), como muitas vezes aconteceu e como ainda acontece,
basta observar o fundamentalismo religioso contemporâneo, é um ato pernicioso
ao desenvolvimento pleno das potencialidades humanas.
Neste começo do século
XXI, dos pontos de vista da produtividade da economia e do conhecimento sobre a
natureza, é possível afirmar que a pobreza extrema, a fome, a carência de
moradias salubres, a falta de educação escolar entre outras questões mais
afeitas ao homo economicus,
já poderiam estar plenamente superadas. Em vez disso, o que temos? Ainda há
fome, doenças de veiculação hídrica, analfabetismo, favelas etc. e, sobretudo,
uma brutal e injustificável concentração de renda. A humanidade ainda se
encontra enredada no círculo vicioso do medo primitivo da escassez, que
continua engendrando diferenças sociais e alimentando a concepção do modo
"natural" de ser da humanidade, muitas vezes justificado por
estúpidas concepções sociais neodarwinistas, que separa os seres humanos em
mais e menos aptos. Só muita falta de visão, provocada pelas brumas da
ideologia liberal dominante, eivada de individualismo e utilitarismo, para
conceber uma luta permanente por comida num mundo repleto de desperdícios
injustificados e de crescente obesidade mórbida, não só a dos Estados Unidos,
mas também a de países emergentes como o Brasil, por exemplo.
Outra questão incompreensível
no estágio de desenvolvimento da economia no século XXI é a superexploração do
trabalho ainda persistente. O estágio atual do acúmulo tecnológico já
permitiria jornadas mais reduzidas e flexíveis de trabalho. Estaríamos já bem
próximos da sociedade do ócio imaginada por Paul Lafarge, mas esta está longe
de ser uma realidade. A exploração excessiva do trabalho humano ainda prevalece
e se faz acompanhar das baixas remunerações que não garantem uma vida digna aos
trabalhadores. Esta ainda é uma grande sombra que ainda assombra a humanidade,
principalmente nos países pobres, com destaque para os africanos.
A inferiorização da mulher
no século XXI ainda é muito presente e, em muitos países, ela chega à beira da
irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo
amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra
mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior
e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil
de exploração da mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o
corpo feminino transforma-se em valiosa mercadoria. Por exemplo, as revistas
eróticas são um grande negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o
inverso do que acontece com a remuneração das mulheres nas fábricas e nas
fazendas. O mercado conseguiu uma grande façanha: transformou a liberdade
sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século passado em
mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a sexualidade humana
continuam ainda hoje envoltas por uma grande sombra.
Diante do exposto, a
questão central que se coloca é a seguinte: o ser humano para se desenvolver,
para conseguir atingir o potencial inato imanente nas suas três dimensões
(econômica, racional e transcendental) necessita de liberdade. A dimensão
econômica serve como alicerce das outras duas. Contudo, conforme estudos de
Thomas Piketty (O capital no século XXI), a renda nunca esteve tão
concentrada como está agora e, consequentemente, a propriedade privada dos
meios de produção. A concentração da riqueza permanece, no correr dos séculos,
como uma grande sombra a obstar as luzes necessárias à expansão do espírito
humano. Uma sociedade com distribuição da riqueza mais justa pode garantir
maior acesso ao conhecimento e à cultura, liberando o ser racional especulador
e criativo de cada membro seu, libertando-a da ignorância que agora funciona
como um véu a encobrir as verdadeiras causas dos flagelos por ela vividos. Uma sociedade
liberta da faina incessante pela sobrevivência e que garante a liberdade aos
indivíduos de buscarem realizações além do mundo material pode contribuir para
a expansão da sua dimensão transcendental.
Assim, a liberdade para
criar é fundamental, pois a criação, com destaque para a criação artística, tem
enorme potencial transformador. A arte costuma falar com uma linguagem que
extrapola a razão e que coloca os seres humanos diante de outras possibilidades,
possibilidades não materiais, mas, ao contrário, sensíveis, que se colocam mais
nos campos intuitivo e afetivo e que podem tornar os homens mais sensíveis e
compassivos.
E, falando de homens mais
compassivos: a compaixão é a essência mais profunda do ser humano e ela se
apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do
espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do
outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro um igual e, ao mesmo
tempo, um diferente e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro
você mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da
alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave-mãe
Terra. A partir daí, o homem abandona o seu papel de conquistador, de
guerreiro, e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da
criação.
PS.: este
texto foi produzido originalmente para o Grupo de Estudos de Ecologia Profunda
do Curso de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) do Centro Universitário de
Araraquara, do qual eu participei entre os anos de 2011 e 2012.
Artigo publicado originalmente neste blog em 12 de maio de 2015
sob o título "A humanidade assombrada".
Excelente publicação!!
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