Zildo Gallo
Em Sobre Ética e Economia Amartya Sen (1999, p. 19) aponta duas
origens diferentes para a economia; uma ligada à ética, que remonta a
Aristóteles, e outra ligada à engenharia, que se localiza num período menos
distante, no século XIX. Ele (1999, p. 18) também avalia como surpreendente o
contraste entre o caráter “não ético” da economia atual e sua evolução
histórica, em larga medida, como um ramo da ética.
Ao analisar a obra de Sen,
Ignacy Sachs (2004, p. 13) lembra que a economia e a ética estiveram interligadas,
desde Aristóteles, por duas importantes questões de fundo: o problema da
motivação humana (como devemos viver?) e a avaliação das conquistas sociais.
Entretanto, a outra origem da ciência econômica, voltada mais às questões
logísticas, o que Sen chama de “abordagem de engenharia”, tem predominado,
possibilitando o abandono da ética. Tal predomínio tem levado Sen a insistir na
reaproximação entre ética e economia.
Em Ética a Nicômaco, Aristóteles
(2004, p. 22) associa as questões da economia aos fins humanos: “Quanto à vida dedicada a ganhar
dinheiro, é uma vida forçada, e a riqueza não é, obviamente, o bem que
procuramos: trata-se de uma coisa útil, nada mais, e desejada no interesse de
outra coisa”. O filósofo grego compreende a busca da riqueza como meio para
se atingir objetivos mais importantes. Então, o estudo da economia, ainda que
imediatamente relacionado à produção da riqueza, às “questões logísticas”, em
um nível mais profundo liga-se a outros estudos tão ou mais importantes,
relacionando-se, em último caso, ao estudo da ética e da política.
Em Filosofia Econômica, Joan
Robinson (1979, pp. 9-10) sustenta que uma sociedade não tem como existir sem
que seus membros tenham sentimentos comuns sobre as formas corretas de conduzir
seus problemas. Para ela, existe uma necessidade biológica da moralidade
porque, para a sobrevivência das espécies, cada animal deve ter, por um lado,
uma dose de egoísmo, um impulso para conseguir alimentos e
defender os meios de sobrevivência; e também, estendendo o seu egoísmo à
família, de lutar pelos interesses da companheira e dos filhos. Por outro lado,
a vida social torna-se impossível quando a busca pelos interesses próprios não
é mitigada pelo respeito e compaixão pelos outros.
As considerações de
Robinson trazem à luz a existência de dois movimentos antagônicos: uma
sociedade baseada só no egoísmo não sobrevive e um indivíduo que não defende
seus interesses também não. A permanente existência deste embate entre forças
contrárias suscita a necessidade de um conjunto de regras para conciliá-las.
Por acreditar que os impulsos egoístas são mais fortes que os altruístas, a
autora entende que “as
exigências dos outros precisam ser impostas a nós” (ibid., p.10). Para ela, o
mecanismo pelo qual tais exigências são impostas é o senso moral ou a consciência individual. Até tempos recentes, na maioria das
sociedades, a educação moral era ministrada pela religião. Muitos
representantes das religiões organizadas ainda argumentam que elas são
fundamentais à harmonia social. As pessoas que não são religiosas, por sua vez, buscam derivar o sentimento moral da razão, outra fonte importante
da ética, segundo a autora (ibid., p.12).
Leonardo Boff (2003, p.
28), assim como Robinson, também identifica duas fontes que orientam ética e
moralmente as sociedades até hoje: as religiões e a razão crítica. A economista
britânica e o teólogo brasileiro estão de acordo sobre essa questão.
Entretanto, Boff (ibid., p.19) avalia que esses dois paradigmas, ainda não
invalidados pelas crises que atingem o mundo atual, precisam ser enriquecidos
para que sejam atendidas as demandas éticas produzidas pela realidade
globalizada.
As crises criam novas
oportunidades e, neste momento, elas possibilitam mergulhos na instância onde,
segundo Boff (pp. 29-30), os valores são continuamente formados. Segundo o
autor, a ética “deve brotar da
base última da existência humana”. Ela não se localiza na razão, como
sempre desejou o Ocidente. A razão não é a essência da existência e por isso
não pode explicar e nem abranger tudo. A essência do existir está em “algo mais elementar e ancestral: a
afetividade”. Então, contrariando Descartes, a experiência basilar não é “penso, logo existo”, mas,
segundo Boff, “sinto, logo
existo”. Assim, na raiz de todas as coisas não está a razão (logos),
mas a paixão (pathos). “Pela
paixão captamos o valor das coisas (...) Só quando nos apaixonamos vivemos
valores. E é por valores que nos movemos e somos”. Neste ponto, Boff (2003,
p.21) observa o surgimento de uma dramática dialética entre razão e paixão: Se a razão reprimir a paixão,
triunfa a rigidez, a tirania da ordem e a ética utilitária. Se a paixão
dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões e a ética hedonista, do puro
gozo das coisas. Mas, se vigorar a justa medida, e a paixão se servir da razão
para um autodesenvolvimento regrado, então emergem as duas forças que sustentam
uma ética promissora: a ternura e o vigor.
Leonardo Boff (2003, p.
32) considera que dessas premissas pode surgir uma ética que será capaz de
incluir toda a humanidade. Essa nova ética deve estruturar-se em torno de
valores fundamentais ligados à vida, ao seu cuidado, ao fazer humano, às
relações cooperativas e à cultura da não violência e da paz. “É um ethos que ama, que cuida, se
responsabiliza, se solidariza e se compadece”.
Uma especulação curiosa:
estaria o teólogo Boff retomando antigas questões que se perderam nas noites
dos tempos para um grande número de economistas? Joan Robinson (1979, p.10)
extrai um parágrafo revelador da obra Teoria
dos Sentimentos Morais, publicada pela primeira vez em 1759, pelo
economista e filósofo Adam Smith (1723-1790), onde ele aponta que a moralidade
tem a sua origem nos sentimento de compaixão:
Por mais egoísta que se
suponha que é o homem, há evidentemente alguns princípios em sua natureza que
fazem com que se interesse pela sorte dos outros, e que tornam necessária para
si mesmo a felicidade alheia, embora nada lhe advenha disso, a não ser o prazer
de ver os outros felizes. É dessa espécie a piedade ou compaixão, a emoção que
sentimos com a miséria dos outros, tanto quando a vemos como quando somos
levados a concebê-la de uma forma bastante real. Que constantemente derivamos a
nossa tristeza dos outros, é tão óbvio que não precisamos exemplos para prová-lo;
pois esse sentimento, tal como todas as outras paixões originais da natureza
humana, não está de forma alguma ao alcance apenas dos virtuosos e
humanitários, embora eles possam talvez senti-lo com uma sensibilidade mais
apurada. O mais infame dos homens, o mais empedernido violador das leis da
sociedade, não é inteiramente destituído dele.
Adam Smith publicou em 1776
a sua maior
obra, A Riqueza das Nações:
Investigações Sobre sua Natureza e suas Causas, onde teceu grandes
exaltações ao comportamento individualista, considerando que os interesses dos
indivíduos quando livremente desenvolvidos seriam harmonizados, numa abordagem
quase teológica, pela “mão invisível” do mercado e resultariam no bem-estar de
toda a sociedade. Essa apologia do interesse individual e a rejeição da
intervenção do estado na economia, outra marca do pensamento smithiano,
transformaram-se nas teses centrais do liberalismo econômico.
Amartya Sen (1999, pp.
43-44) considera que uma interpretação, posterior, errônea da postura complexa
de Smith sobre a motivação individual e os mercados e o recorrente “descaso por sua análise ética dos
sentimentos e do comportamento refletem bem o quanto a economia se distanciou
da ética com o desenvolvimento da economia moderna”. As referências às partes
da obra de Smith que analisam a natureza das trocas mercantis e a importância
da divisão do trabalho têm sido profusas e exuberantes. Para Sen, por outro
lado, as outras partes da sua obra sobre sociedade e economia, “que contêm observações sobre a miséria,
a necessidade de simpatia e o papel das considerações éticas no comportamento
humano, particularmente o uso de normas de conduta, foram relegadas a um relativo esquecimento à medida que essas
próprias considerações caíram em desuso na economia”. Então, sem as balizas da
ética, o mercado mais parece uma guerra de todos contra todos e nenhuma “mão
invisível” consegue mediar tal conflito. Assim, instrumentos reguladores
fazem-se necessários, o que sem dúvida contraria a visão dos liberais mais
empedernidos.
Por outro lado, Cristovam
Buarque (1993, p.21), em A Desordem do Progresso: o Fim
da Era dos Economistas e a Construção do Futuro, não tem uma percepção tão
benevolente sobre Adam Smith ao afirmar que foi necessário um professor de
ética para libertar a ciência econômica da ética, afastando-a da explicação dos
vários processos econômicos, do complexo de relações produtivas e
distributivas. Buarque (ibid. p. 22) constata que, após ter produzido Teoria dos Sentimentos Morais,
um clássico da ética, Adam Smith fundou as bases de uma teoria econômica que
eliminaria as considerações éticas, definindo “uma
racionalidade independente, com leis neutras, como aquelas que Newton, cem anos
antes, havia descoberto para explicar o movimento do cosmo”. Independente dessas
controvérsias, como se verá mais abaixo, Buarque, assim com Sen, percebe a
necessidade de uma ética reguladora para a ciência econômica.
É absolutamente correto
afirmar que uma aproximação maior entre ética e economia pode ser benéfica
tanto para a economia como para a ética. Muitos problemas éticos estão ligados
a questões logísticas, como o problema da fome e da exploração do trabalho
infantil, por exemplo. As soluções passam, muitas vezes, por abordagens de
engenharia econômica, da engenharia econômica como instrumento para a
realização de um objetivo maior, ético: o bem-estar social. Sobre o bem-estar
social, John Kenneth Galbraith (1996, p.2) explicita, em A Sociedade Justa:
uma Perspectiva Humana, a sua profundidade e a sua abrangência:
A responsabilidade pelo
bem-estar econômico e social é de todos, é transnacional. Seres humanos são
seres humanos. Onde quer que vivam, a preocupação com seu sofrimento pela fome,
por outras privações e por doenças não cessa porque os afligidos estão do lado
de lá de uma fronteira internacional. É exatamente isso que ocorre, embora
nenhuma verdade elementar seja tão sistematicamente ignorada ou, em certas
ocasiões, tão fervorosamente atacada.
Buarque (1993, pp. 28-29)
registra, em particular, a responsabilidade dos economistas, apontando que a
observação da realidade, ao término do século XX, provoca “uma profunda crise de consciência em uma parte dos economistas” e vai mais longe, tecendo considerações sobre as insuficiências da
economia como ciência:
Exatamente como nas demais
ciências, o próprio êxito da ciência econômica começa a mostrar seus limites.
Nos países desenvolvidos o crescimento levou a crises existenciais, a um
elevado nível de poluição, ao consumo de drogas químicas e de drogas econômicas
do consumo, a uma forma de produzir ecologicamente desequilibrante quanto à
disponibilidade de recursos naturais. Nos países em desenvolvimento, o
crescimento ampliou a dependência, a desigualdade, a instabilidade em todos os
níveis, além de provocar os mesmos desequilíbrios ecológicos dos países ricos.
No conjunto, os países se dividiram ainda mais em um mundo com uma ordem
claramente irracional e instável.
Buarque (1993, p. 29) não
vê nisso o fim da economia como ciência. O que deve ser percebido é a
necessidade de uma ética reguladora que deve submeter a economia a
condicionantes, a exemplo do que aconteceu com a física a partir de 1945, após
as explosões de bombas nucleares ao término da Segunda Guerra Mundial. Contudo,
pondera ele, ao contrário “das
ciências físicas, onde a ética é vista como reguladora externa, na ciência
econômica será necessário incorporar a ética como parte da própria
essencialidade da economia”.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo:
Editora Martin Claret, 2004.
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os
fundamentos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2003.
BUARQUE, Cristovam. A desordem do progresso: o fim da
era dos economistas e a construção do futuro. São Paulo: Editora Paz e
Terra, 1993.
GALBRAITH, John
Kenneth. A sociedade
justa: uma perspectiva humana. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1996.
ROBINSON, Joan. Filosofia
econômica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente,
sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2004.
SEN,
Amartya. Sobre ética e economia. São
Paulo: Companhia da Letras, 1999.
Artigo originalmente publicado em 14 de novembro de 2014.