ZILDO GALLO
Com a Lettera Enciclica Laudato Si' del Santo Padre Francesco sulla Cura della Casa Comune (Carta
Encíclica Laudato Si' do Papa
Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum), o Papa Francisco lançou uma visão de
ecologia integral, que enxerga todos os seres, humanos e não humanos, indistintamente,
interligados e se movimentando. A visão antropocêntrica que afastou o ser humano
da natureza e colocou-o como dominador sobre os demais, não como um convivente,
precisa ser superada e, neste sentido, a Encíclica papal é muito bem vinda, já
que ela coloca a vida no centro de tudo. Ela é biocêntrica na sua essência. Todavia,
para se compreender melhor a questão, é conveniente um retorno rápido no tempo,
bem rápido, para se entender a evolução do antropocentrismo predominante.
Em particular no período pré-socrático, os gregos
da antiguidade olhavam para a natureza e a viam tomada por deuses. Toda a
natureza e todos os fenômenos naturais eram manifestações divinas. Com o avanço
da ciência, particularmente a partir da revolução científica, que acontece em
seguida ao Renascimento, e do Iluminismo (movimento filosófico do século XVIII),
a natureza perdeu definitivamente a sua sacralidade, que vinha sendo lentamente
deteriorada desde os tempos da Grécia clássica, pós-Sócrates. Do século XIX
para diante, até os dias de hoje, a natureza foi totalmente dessacralizada. A
partir do filósofo francês René Descartes (1596-1650), que pôs Deus fora da
natureza e distante dos homens, a natureza tornou-se o que é hoje, um estoque
de matérias primas a ser explorado, bem ao gosto do capitalismo em expansão.
Para ele a vida consistia em três entidades separadas: um corpo mecânico, um
espírito pensante e, acima, o espírito de Deus.
Com Descartes, o espírito pensante dos seres
humanos estava livre para se apropriar da natureza e ele o fará com todas as
suas forças, pois estava liberado para tanto. Assim, consolidou-se com
Descartes o movimento antropocêntrico iniciado no Renascimento. Então, a Terra,
com todos os seres nela existentes, tornou-se em definitivo propriedade dos
homens. Tornou-se propriedade definitiva de todos os homens? Não, só daqueles
que tinham poder e riqueza acumulada para explorá-la. Naqueles tempos os ricos
e poderosos residiam em alguns países europeus, com destaque para a Inglaterra,
Espanha, Portugal, Holanda e França.
Spinoza, um filósofo contemporâneo de Descartes,
por sua vez, combina em uma só as três entidades. Deus não está acima de nós,
mas dentro de cada um de nós. O corpo, a inteligência e o espírito são três
aspectos de uma realidade única. O mundo é o corpo de Deus, o pensamento que o
contempla é a Sua inteligência, e a energia que o movimenta é o Seu espírito.
Deus é tudo: a substância, a ideia e o movimento do mundo. Nós humanos e todos
os seres, incluindo os menores e até os mais "insignificantes",
participamos igualmente da divina essência. Podemos chamar isso de
biocentrismo, em contraposição ao antropocentrismo cartesiano; o centro é toda
a vida e não apenas a vida dos homens. Ao contrário da visão cartesiana, a
espinosiana não triunfará.
Por que as ideias de Spinoza não tiveram a mesma
projeção que as cartesianas? Por que o Ocidente aceitou tão facilmente a ideia
da separação? O fato de Baruch de Spinoza ser filho de judeus em um mundo
cristão pode ter contribuído para tanto, trata-se de uma considerável
possibilidade. Contudo, o pensamento cartesiano estava em melhor acordo com o
mundo que surgia da Idade Média, pragmático e centrado na ciência, pronto para
dominar a natureza e colocá-la a serviço das forças produtivas em expansão, do
capitalismo em expansão. Então, o antropocentrismo vitorioso legitimará em
definitivo a capacidade humana de dominar a natureza, preparando o caminho para
a primeira Revolução Industrial e para toda a posterior expansão do capitalismo
industrial em nível mundial, que ainda continua, apesar de todas as recorrentes
crises, com a permanente superexploração da natureza que o caracteriza.
Hoje, 2015, com o gigantesco processo de
urbanização, decorrente da industrialização e da "modernização da
agricultura", a famosa e festejada "revolução verde"
(responsável pela derrubada das florestas, pelo envenenamento e empobrecimento
do solo, pela morte dos animais, pela poluição e escassez das águas etc.), o ser humano afastou-se quase que por completo
da natureza, tornando-se muito ignorante dos seus processos, do seus ciclos. No
atual estágio de degradação ambiental, os homens e mulheres estão sendo
chamados a uma grande tarefa: mudarem da situação de exploradores para a de
cuidadores, de jardineiros da criação. É preciso recuperar o que foi destruído
e preservar o que ainda existe, garantindo a existência de meios de vida para
as gerações futuras de todos os seres vivos, não apenas dos humanos, rompendo
definitivamente com a visão antropocêntrica e caminhando para uma visão
centrada em toda vida, biocêntrica.
Assim, é necessária a redescoberta da natureza
pela maioria dos seres humanos. Para tanto, em função da imensa separação em
relação ao mundo natural e da também imensa ignorância sobre os fenômenos
naturais, faz-se necessária uma "alfabetização ecológica". Ensinar o
saber ecológico precisa tornar-se o
maior papel da educação no século XXI. A alfabetização ecológica precisa transformar-se
num tipo de obrigação para políticos, empresários, religiosos e profissionais
de todas as áreas, com destaque para os professores. Ela deve tornar-se uma
preocupação central da educação em todos os seus níveis - fundamental, médio,
universitário e profissionalizante. É tarefa urgente, pois se trata da
preservação da vida humana com qualidade e também dos demais seres que viajam
conosco na nave-mãe Terra.
Então, no sentido de contribuir para a redescoberta da
natureza, com a necessária alfabetização ecológica, neste ainda início do
século XXI, em maio de 2015, o Papa Francisco, na sua "Carta Encíclica
Laudato Si’ – Sobre o Cuidado da Casa Comum", colocou á luz do dia a sua
visão biocêntrica do mundo de uma forma muito sábia e amorosa, tomando como
ponto de partida a visão de mundo de São Francisco de Assis (1182-1226), que
tinha um olhar amoroso para com a natureza, com todas as suas criaturas. No introito
da Carta, o Papa cita o "Cântico das Criaturas", de São Francisco de
Assis, lembrando que ele comparava a Terra ora como uma irmã nossa, ora como
uma boa mãe, que nos segura nos seus braços. Conforme o Sumo Pontífice,
crescemos pensando que éramos os donos da natureza e passamos a saqueá-la com
violência. Para ele, a violência que está no coração humano "vislumbra-se
nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres
vivos". Assim, os homens esqueceram-se de que são terra, que os seus
corpos são constituídos pelos elementos químicos do planeta e que respiram o
seu ar e bebem da sua água.
Para que fique cristalina aos olhos, corações e mentes dos
leitores deste pequeno artigo, a visão de mundo de São Francisco de Assis e o
porquê de ela ser surpreendentemente contemporânea, a ponto de, mais que
merecidamente, inspirar a Carta Encíclica do Papa, reproduzo abaixo o seu
poema:
Cântico das Criaturas
Altíssimo, Omnipotente, Bom Senhor
Teus são o Louvor, a Glória,
a Honra e toda a Bênção.
Teus são o Louvor, a Glória,
a Honra e toda a Bênção.
Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as Tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol,
que clareia o dia e que,
com a sua luz, nos ilumina.
Ele é belo e radiante,
com grande esplendor;
de Ti, Altíssimo, é a imagem.
com todas as Tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol,
que clareia o dia e que,
com a sua luz, nos ilumina.
Ele é belo e radiante,
com grande esplendor;
de Ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã Lua e pelas estrelas,
que no céu formaste, claras.
preciosas e belas.
pela irmã Lua e pelas estrelas,
que no céu formaste, claras.
preciosas e belas.
Louvado
sejas, meu Senhor.
pelo irmão vento,
pelo ar e pelas nuvens,
pelo sereno
e por todo o tempo
em que dás sustento
às Tuas criaturas.
pelo irmão vento,
pelo ar e pelas nuvens,
pelo sereno
e por todo o tempo
em que dás sustento
às Tuas criaturas.
Louvado
sejas, meu Senhor,
pela irmã água, útil e humilde,
preciosa e casta.
pela irmã água, útil e humilde,
preciosa e casta.
Louvado
sejas, meu Senhor,
pelo irmão fogo,
com o qual iluminas a noite.
Ele é belo e alegre,
vigoroso e forte.
pelo irmão fogo,
com o qual iluminas a noite.
Ele é belo e alegre,
vigoroso e forte.
Louvado
sejas, meu Senhor,
pela nossa irmã, a mãe terra,
que nos sustenta e governa,
produz frutos diversos,
flores e ervas.
pela nossa irmã, a mãe terra,
que nos sustenta e governa,
produz frutos diversos,
flores e ervas.
Louvado
sejas, meu Senhor,
pelos que perdoam pelo Teu amor
e suportam as enfermidades
e tribulações.
pelos que perdoam pelo Teu amor
e suportam as enfermidades
e tribulações.
Louvado
sejas, meu Senhor,
pela nossa irmã, a morte corporal,
da qual homem algum pode escapar.
pela nossa irmã, a morte corporal,
da qual homem algum pode escapar.
Louvai todos e bendizei o meu Senhor!
Dai-Lhe graças e servi-O
com grande humildade!
Dai-Lhe graças e servi-O
com grande humildade!
São Francisco de Assis (http://www.paroquias.org/oracoes/?o=133)
Referências
GALLO,
Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia,
ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.
PAPA
FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si' -
Sobre o Cuidado da Casa Comum. São Paulo: Paulinas, 2015.
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