quinta-feira, 30 de abril de 2015

O roubo da bola de capotão

Zildo Gallo



Devia ser o ano de 1966, já faz muito tempo, é difícil precisar a data depois de tantos anos decorridos. Éramos um grupo de meninos, todos bem crianças mesmo, nem púberes éramos ainda. O que nos ligava eram as muitas brincadeiras de rua e o futebol, muitas vezes jogado nas ruas também. Para esse esporte improvisávamos bolas quando não as tínhamos, enchendo meias velhas com trapos, dando-lhes uma forma o mais arredondada possível.
O município de Americana (SP) era pequeno naquela época e, apesar de não muito distante do centro da cidade, o lugar onde morávamos poderia ser visto como periférico. Outra coisa que nos ligava era a pobreza, pois poucos escapavam dessa condição naquela vizinhança. Havia muitos meninos no nosso grupo, muitos mesmo, e, num dado momento, não sei exatamente porque e como, desejamos montar um time de futebol, para disputarmos partidas com outros times infantis que existiam na cidade. Achávamo-nos bons de bola o suficiente. Só precisávamos de uma boa bola de capotão.
Um desejo não atendido ou, melhor, impossibilitado de ser atendido, pode levar-nos a fazer coisas não recomendadas pela moral e os bons costumes. Na infância, quando a personalidade está em construção, quando a noção de certo e errado é ainda muito movediça, o "Diabo pode atentar", como diziam os mais velhos. Um dia ele chegou e atentou. Alguns garotos, às escondidas do restante do grupo, foram até o centro da cidade atrás de uma bola, mas só um deles teve a coragem de fazer o combinado. Ele dirigiu-se até a porta de uma loja de produtos esportivos e, quando notou que ninguém estava olhando, pegou uma bola que estava em exposição perto da porta e sumiu, sem que ninguém percebesse.
No mesmo dia ele apareceu no terreno onde brincávamos como uma bola velha, caindo aos pedaços, como costumeiramente fazíamos. Chegou todo orgulhoso, ostentando a bola de capotão de tamanho oficial, acho que era uma Drible; a cor, eu tenho certeza, era branca. Contou-nos o ocorrido e pediu segredo, acho que tinha receio de que seus pais soubessem. Foi assim que conseguimos a nossa bola, de uma forma nem um pouco convencional e lícita. Muito mais tarde é que fui compreender que o nosso silêncio colocou-nos como cúmplices. Este é um aprendizado mais refinado e eles vem com o tempo, com o amadurecimento.
Já tínhamos a bola, mas faltava o jogo de camisas. Quanto a esse objetivo, agimos coletivamente e fizemos uma campanha na vizinhança, pedindo ajuda a todos os nossos conhecidos e parentes, juntando um pouco aqui, um pouco ali. Deu certo, muitos contribuíram e conseguimos comprar o jogo de camisas na loja onde a bola foi roubada. Fizemos isso sem pensar. Talvez fosse a única loja que vendia jogos de camisas, talvez... não sei... Viramos um time, de fato. Adotamos como nome do time o nome do nosso bairro, se não me falha a memória, já se vão cinquenta anos.
O garoto que conseguiu a bola era o nosso melhor jogador, um craque mesmo, era o que eu achava. O tempo foi passando, passando e passou. O nosso time já não mais existia, tornei-me adolescente e cursava o ginásio. Nessa época, num dia qualquer, tomei um baita susto com uma notícia que me chegou, não me lembro exatamente como. Aquele nosso craque foi pego em flagrante furtando dinheiro do escritório onde trabalhava como office-boy. Lembro que a minha cabeça girou: será que deveríamos ter contado aos seus pais sobre o delito cometido? será que seus pais realmente não sabiam? será? será? Confesso que senti alguma culpa, culpa mesmo, pois isso nunca me saiu da cabeça. Caramba! que bela bola era aquela... Como devolvê-la? Como perder o nosso objeto desejado? Será que o Diabo morava nos nossos desejos, como acreditavam os mais velhos? Com o passar dos anos eu fui percebendo que eles tinham razão.
Depois desse episódio nunca mais tive notícias do garoto bom de bola. Pelo que sei ele, que era menor de idade à época, parou por aí. Nunca mais tivemos notícias de nenhum outro acontecimento ilegal. Acho que o susto de ser pego e o fato de ficar à disposição e vigiado pelo Juizado de Menores por algum tempo serviu para corrigir os desvios de caráter. Ainda bem. Naqueles tempos Americana era uma cidade tranquila, com baixo nível de criminalidade. Lembro-me que andávamos à pé pelas madrugadas, voltando de festinhas e nunca corríamos perigos. Fatos como o que relatei eram bem raros e muito mais raros eram os episódios envolvendo violência; quando acontecia algum, era uma espantosa comoção pública.
O tempo foi passando, passando e chegamos aos dias atuais. Hoje, Americana conta com uma estrutura desportiva ampla e pública esparramada pela cidade, o que não acontecia na minha infância. Assim, acredito que o grande desejo dos meninos da cidade não deve ser uma bola de futebol, pois vejo que muitos têm e, quando não têm, a Prefeitura tem e todos podem jogar. Na minha infância, ter uma boa quadra desportiva, um bom campo de futebol e uma boa bola era o máximo. Poucos tinham acesso, só as crianças oriundas de famílias mais ricas de fato tinham, já que elas frequentavam clubes privados, inacessíveis à maioria da população.
E daí, acabaram-se os desejos? Não, de jeito nenhum. Vivemos numa sociedade que produz desejos, muitos desejos, um após o outro. Todo dia um novo desejo é criado, sem que nos demos conta. Hoje as crianças desejam tênis de marca, vídeo games, celulares etc. Os desejos são criados de forma bem mais ostensiva que nos anos sessenta do século passado, quando ainda não éramos, de fato, uma autêntica "sociedade de consumo". Os desejos são criados, mas o acesso a eles ainda não é para todos. O acesso só é possível aos que têm renda, isso que Keynes (economista britânico) chamou de demanda efetiva. Assim, o sonho de ter um tênis bacana na infância não é para todos. Quem nunca ouviu falar de um menino que se viu obrigado a tirar seu tênis por "meninos de rua" e voltar descalço para casa? Eu já, várias vezes.
A criação contínua de desejos, os mais variados possíveis, pela propaganda a serviço da indústria numa sociedade muito desigual como a nossa não pode ser considerada uma coisa boa e, de fato, não é. O aumento da violência, com destaque para os furtos praticados por menores de idade, é um bom exemplo disso. Exigir que crianças, seres em formação, sublimem seus desejos, quando eles são diuturnamente enfiados nas suas pequenas cabeças pelos meios de comunicação, parece-me no mínimo um contrassenso. Na verdade, considero uma grande hipocrisia, pois tentam inculcar a culpa nas vítimas. A hipocrisia é a marca, a grife mais conhecida, da sociedade de consumo.
Quando escrevo estas palavras, sei que muitos entre aqueles que nunca se sentiram privados do acesso aos bens de consumo talvez não consigam compreendê-las. Para compreendê-las é preciso que saiam do seu mundo protegido, indo além dos seus bunkers, os condomínios fechados e os shopping centers protegidos, e se coloquem no lugar dos excluídos, dos muitos excluídos. Eles são muitos mesmo. Não é uma tarefa fácil em tempos tão individualistas, egoístas mesmo, como os tempos atuais, mas é uma tarefa necessária. O colocar-se no lugar dos que sofrem é um ato de caridade, é a verdadeira caridade propugnada pelo cristianismo, que encontra as suas raízes na compaixão. Estamos num país majoritariamente cristão, ou não? Será que somos como aqueles fariseus, aos quais Jesus chamava de sepulcros caiados, que agem como zeladores prestimosos dos bons costumes, das leis, que são belos na aparência e podres por dentro? Aliás, o que conta na sociedade de consumo é a aparência; trata-se de uma sociedade farisaica. Alguém discorda?


sexta-feira, 24 de abril de 2015

GUERRILHA AGROECOLÓGICA

Zildo Gallo
Além de horticultor doméstico (ver: "Meditações a partir da horta doméstica da minha casa" (http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2015/02/meditacoes-partir-da-horta-domestica-da.html), há muito tempo considero-me um militante da causa agroecológica.
Nas minhas aulas no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado) do Centro Universitário de Araraquara (UNIARA), onde sou professor, costumo falar sobre os muitos porquês da minha opção pela agroecologia, que considero importante tanto para a saúde da natureza como a dos seres humanos, já que ela não adota o uso de defensivos agrícolas e adubos químicos.
No ano de 2009, o Ministério da Agricultura produziu uma cartilha (O olho do consumidor) bem detalhada, para divulgar o novo selo para produtos orgânicos, com ilustrações do cartunista e escritor Ziraldo. Diante da possibilidade de ter os seus interesses contrariados, a empresa Monsanto, fabricante de agrotóxicos e de sementes transgênicas, conseguiu, através da justiça, embargar a sua distribuição, que seria naquele momento de 620 mil exemplares. Com a proibição, muitos defensores da agricultura orgânica passaram a divulgá-la pela internet. Acredito que, de lá até hoje, a divulgação pelo meio eletrônico tem sido eficiente.
Como hoje eu tenho o meu blog e também tenho uma cópia da cartilha em PDF, resolvi disponibilizá-la para os meus leitores. Quem desejar uma cópia pode pedi-la pelo meu e-mail (zildogallo@gmail.com), que prontamente enviarei. A cartilha, que faz uma boa introdução sobre os produtos orgânicos para os leigos no assunto, ficou muito bonita do ponto de vista artístico e precisa ser amplamente divulgada, pois a causa é muito justa e relevante para todo o nosso planeta.

Veja a capa da cartilha.


PS.: também é possível consegui-la no endereço: http://www.redezero.org/cartilha-produtos-organicos.pdf

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Um apelo contra a aprovação da diminuição da maioridade penal para 16 anos.

Zildo Gallo



Ofereço este poema que escrevi em 13/11/2001 àqueles que, insensíveis, distanciados dos seus próprios corações, acreditam que a solução para a violência dos nossos dias seja a criminalização dos nossos jovens/crianças, transformando-os, de vítimas da exclusão, do individualismo e do egoísmo, em culpados pelos males e medos que real ou imaginariamente atingem a todos. É tão mais fácil culpabilizar os mais fracos, aqueles que têm poucos recursos para reagir... Acho isso um ato de muita covardia. À poesia! que ela faça o seu trabalho...

A OUTRA GUERRA

Um espectro ronda os nossos dias,
Arrasta-se corrosivamente,
Em silêncio.
Uma guerra sem tanques e bombas,
Sem soldados e batalhas abertas.
Uma guerra perto de nós,
Que só conseguem vê-la
Aqueles que têm o coração nos olhos,
Os que cultivam compaixão.
Uma guerra suja.
São limpas as guerras?
Batalhas travadas nas sarjetas,
Semáforos e terrenos baldios,
Nas favelas e cortiços.
Uma guerra da qual somos todos partícipes
Pela nossa indiferença
E ignorância.
Uma guerra que nos põe a erguer muralhas
Contra inimigos invisíveis.
Uma guerra que atira crianças na rua,
Crianças famintas,
Embrutecidas,
Armadas,
Desamadas.
Anjos deserdados em revolta.
Crianças que ainda sonham...
Embalados pela fumaça que enevoam
Os caracóis dos cérebros entorpecidos,
Brumas entorpecentes...
Brumas entorpecentes...
Brumas entorpecentes...
Imaginam-se em tênis coloridos,
Camisas estampadas,
Em aventuras fantásticas,
De vídeo games,
E desejam todos os doces das vitrines.
Crianças que intuem,
Que pressentem
A brevidade do seu tempo.
A qualquer momento,
Nesta guerra de guerrilhas,
Silenciosa e prolongada,
Num beco,
Uma faca ou bala...
Um enterro sem honras militares,
Sem toque de silêncio,
Só silêncio,
Solitário,
O funeral dos que não foram tocados
Pelas mãos invisíveis do Mercado,
Do Smithiano Mercado,
O deus dos nossos tempos,
O deus que a tudo regula
E a todos oferece
Nesgas de esperanças,
Um deus que se posta fora dos nossos corações.


terça-feira, 14 de abril de 2015

A riqueza e a diversidade: uma discussão sobre o valor das florestas na economia de mercado

Zildo Gallo


        
A profusão de plantas da Mata Atlântica brasileira favorece a sobrevivência de uma grande variedade de animais; a variedade produz variedade. As florestas das regiões frias, caracterizadas pela presença de poucas espécies, destacando as coníferas, como os pinheiros, não propiciam a mesma variedade de vida animal que a das nossas matas. As nossas matas do Cerrado também têm mais variedade que as das regiões frias, apesar de apresentarem menor diversidade que a Mata Atlântica. Esta discussão quantitativa é muito complicada, pois cada bioma tem a sua riqueza e a sua importância ambiental dentro do nosso planeta.
Contudo, podemos ver no Brasil muitas florestas homogêneas. São as florestas plantadas para o fornecimento de matérias primas para a indústria de transformação, como as de eucaliptos, para a produção de celulose e papel, e as de pinheiros, para a produção de móveis. No Estado de São Paulo também existem florestas plantadas de seringueiras, que fornecem matéria-prima para a indústria de artefatos de borracha. Nessas florestas a diversidade de vida animal é ínfima, quando comparadas com as florestas nativas: Mata Atlântica e Cerrado.
Andar no meio da Mata Atlântica, não é tarefa fácil para os habitantes do meio urbano, pois o emaranhado de árvores, arbustos e cipós dificulta sobremaneira a caminhada e é muito fácil perder-se no meio dela. Por sua vez, andar numa plantação de eucaliptos é muito fácil: as árvores são militarmente enfileiradas e debaixo delas não nascem espécies vegetais que compitam com elas; geralmente entre as fileiras os corredores permanecem livres o suficiente para se caminhar sem atropelos.  Então, é só caminhar em linha reta que se atravessa para o outro lado.
Qual floresta tem maior valor? a da Mata Atlântica? a de eucaliptos? Depende de que tipo de valor estamos falando. Se for do ponto de vista do mercado, a de eucaliptos é a mais valiosa. Se for do ponto de vista da biologia, a Mata Atlântica é a mais valiosa. As florestas naturais têm grande variedade de espécies vegetais e elas sustentam uma grande variedade de espécies animais (a variedade produz variedade). As plantadas têm uma única espécie e, assim, sustentam uma pequena variedade de espécies animais; todavia elas oferecem um retorno financeiro imediato que as florestas naturais não fornecem. As florestas plantadas são importantes do ponto de vista econômico e as naturais são importantes do ponto de vista do equilíbrio ecossistêmico.
O que estou querendo dizer? Estou mostrando que mercado e meio ambiente são conflitantes. A riqueza da variedade conflita com a riqueza financeira da monocultura. No Brasil, durante os anos da ditadura militar, prevaleceu a concepção utilitarista da economia mercantil em detrimento da ideia de equilíbrio ecossistêmico. Hoje, pelo menos, é possível manifestar-se contra a visão economicista da natureza. Também hoje ficou claro que as questões ambientais precisam estar regulamentadas, muito bem regulamentas, e que só isso não basta, pois há uma necessidade de monitoramento constante em defesa da preservação da qualidade ambiental.
Relembrando a história: pela Lei 4.771, de 15 de setembro de 1965, foi instituído um novo Código Florestal. Uma boa parte da legislação dizia respeito ao controle do corte indiscriminado das áreas florestais do país. Pelo Código, as florestas existentes no território nacional passaram a ser reconhecidas como de interesse comum a todos os habitantes do país. Havia uma preocupação com o reflorestamento, mas com a falta de uma descrição sobre quais espécies poderiam ser utilizadas, o Código Florestal de 1965 deu abertura a uma série de irregularidades no processo de liberação de créditos para o replantio de árvores.
Como não foi estipulado que o replantio deveria ser feito com espécies nativas, o reflorestamento passou a ser feito com espécies exóticas e também com árvores frutíferas. As espécies exóticas como o Pinus ssp e o Eucalyptus foram preferidas por sua maturidade precoce quando comparadas com as espécies nativas. Apoiados na legislação, muitos produtores agrícolas conseguiram financiamentos e reflorestaram nos moldes da monocultura e obtiveram ganhos financeiros com isso. Por sua vez, a natureza perdeu em termos de biodiversidade. Prevaleceu a ideia da riqueza financeira, propiciada pelo monocultivo, em detrimento da riqueza como variedade natural. Assim é o mercado: imediatista e reducionista.
No ano de 1965, o Brasil estava no seu segundo ano da ditadura militar. Será que o esquecimento sobre as espécies arbóreas a serem utilizadas no reflorestamento foi algo meramente acidental? Tenho a impressão que acreditar nisso é uma ingenuidade, ou não? Os ignorantes sobre a história do Brasil, que estão pedindo a volta da ditadura militar, talvez acreditem na ingenuidade dos governos militares: "eles erraram, mas eram bem intencionados", diriam eles, desculpando-os. Para esses vale o dito popular: "de boa intenção o inferno está cheio".


sexta-feira, 10 de abril de 2015

O monge, o menino, os animais e o papagaio que surgiu do nada

Zildo Gallo

          

Nesta crônica, procurei abordar um assunto que ainda é polêmico. Trato de um aspecto da crueldade humana, a crueldade em relação aos outros animais. Para me tornar o mais claro possível faço a seguinte trajetória: 1) lanço mão da sabedoria oriental, mais especificamente do budismo; 2) relembro de como era a relação com os outros animais na minha infância, nos anos sessenta do século XX e, por último; 3) relato uma experiência vivida por mim e por Claudia, minha companheira, no final do mês de janeiro de 2014, uma experiência bem recente e ainda muito presente na nossa memória.
Começo o artigo citando um trecho do filme do diretor sul-coreano Kim ki-Duk (2003), Primavera, verão, outono, inverno... e primavera: um monge vive com seu jovem aprendiz em um monastério flutuante, onde transmite a ele a filosofia budista. Num dia qualquer, o menino vai à floresta e faz crueldades contra um peixe, um sapo e uma cobra. Amarra uma pedra no corpo de cada um desses animais e se diverte observando o desespero deles enquanto tentam libertar-se. À noite, enquanto o jovem dormia, o seu mestre amarra uma pedra pesada em suas costas. Quando acorda, o menino sente dificuldade para caminhar com a pedra presa no seu corpo. Então, ele se dirige  ao monge e pede para ele retirar a pedra.
Transcrevo aqui o diálogo entre mestre e discípulo conforme traduziu Angela Guida em seu belo artigo A poética da crueldade: um olhar no humano e no não humano: "Ela [a pedra] o incomoda? Sim, mestre. Você fez o mesmo com os peixes? Sim, mestre. Você não fez o mesmo com o sapo? Sim, mestre. Não fez a mesma coisa com a cobra? Sim, mestre. Levante-se! Ande um pouco por aí. Não consigo andar. É muito pesada. Como acha que o peixe, o sapo e a cobra aguentaram? Foi errado o que eu fiz. Vá procurar os animais e os liberte das pedras e eu o libertarei também. Mas se algum deles: peixe, sapo ou cobra estiver morto... você carregará uma pedra em seu coração pelo resto de sua vida". O jovem aprendiz, após a conversa com o mestre, sai em busca dos animais, porém consegue libertar apenas o sapo, pois o peixe e a cobra já tinham morrido. A partir daí o aprendiz carregará na sua consciência, despertada pelo ensino do mestre, o peso da sua crueldade.
Aí está um ensinamento profundo sobre a crueldade humana. Não faça aos demais seres, não só aos seres humanos, o que não gostaria que fizessem contigo. Um aspecto bom desse filme é que ele alarga o conceito de alteridade, incluindo nele todos os outros seres, indo além de ser humano. Às vezes, as ações cruéis não têm conserto para as vítimas. Este é um duro aprendizado para os agentes da crueldade. A compreensão do "não dá para voltar atrás" tem um aspecto curativo; a dor presente na consciência poderá inibir futuras crueldades, ela tem um papel civilizatório, humanizador, é o famoso "aprendizado pela dor".
Hoje, para a maioria dos humanos, a crueldade em relação a outro ser humano já é bem compreensível. Todavia, em relação aos outros animais, a situação é bem diferente ainda, apesar dos avanços que vêm acontecendo há décadas. Na minha infância, nos anos sessenta do século passado, o sofrimento dos outros seres viventes não estava muito presente no nosso dia-a-dia, acho que nem um pouco presente.
No bairro onde morava, Vila Jones, no município de Americana (SP), muitas crianças tinham o hábito de caçar e engaiolar passarinhos. A minha rua ficava próxima ao sítio da família Jones, que contava com uma plantação de eucaliptos e com a mata ciliar da microbacia do córrego Pyles. Essa situação ambiental possibilitava uma vida silvestre até que diversificada, especialmente em relação aos pássaros. Diante da diversidade de aves, vários meninos de meu convívio armavam arapucas e muitos passarinhos caíam nelas. Os mais visados eram os de plumagens coloridas e os de belos cantos. Os pardais, que não se encaixavam em nenhuma das categorias, quando caíam nas armadilhas, eram soltos em seguida; a beleza trazia uma sina ruim. Alguns meninos caçavam e vendiam os exemplares caçados, havia um comércio visível e aceito, não questionado; naqueles tempos, ninguém era repreendido pelos pais por praticarem essas atividades, que hoje são consideradas ilícitas, inclusive.
Pior que a prisão em gaiolas, era a caça com estilingues, outra prática normal na minha infância. A caça com estilingues era crueldade pura, era um mórbido prazer, o prazer de tirar a vida. Eu nunca engaiolei e nem matei passarinhos, mas não tinha juízo de valor sobre a questão, de tão normal que eram as práticas. Tive estilingues, mas usava-os para aperfeiçoar minha pontaria, usando latinhas como alvos. Costumávamos pegar argila no córrego Pyles para fazer bolinhas do tamanho de bolas de gude, que endurecíamos no fogo. Essa arte cerâmica primitiva funcionava e produzíamos um tipo de munição muito dura e fatal para as frágeis avizinhas. Naquela época, caçar e prender pássaros não me atraía, pois estava muito envolvido com gibis e futebol, de onde tirava a minha diversão.
Comecei a me preocupar verdadeiramente com a crueldade em relação aos animais na minha adolescência, quando cursava o ginásio, e foi algo que aconteceu por conta própria, a escola não ajudou neste sentido, pois me lembro que, nas feiras de ciência, sapos eram expostos com as vísceras à mostra e com os órgãos funcionando (coração, pulmão etc.); aquilo já me causava um certo mal-estar. Com o tempo passei a defender os animais da crueldade humana, embora não seja efetivamente um ativista da questão. Inclusive, admiro muito os que fazem esse tipo de ativismo. Procuro manter uma coerência neste sentido, por exemplo, nunca presenciei um rodeio, por conta dos maus tratos infringidos aos cavalos e touros e sempre que posso, nos minhas aulas, exponho a minha visão sobre o assunto.
Agora, dando um salto para os tempos atuais, vou relatar uma experiência vivida por mim e por Claudia, no final de janeiro de 2014, quando chegamos de uma longa viagem pela Europa. Antes do relato, acho conveniente desenhar o cenário do acontecido: a minha residência fica num condomínio de casas, com muita área verde, no Distrito de Barão Geraldo, no município de Campinas (SP), muito próximo da Mata de Santa Genebra, um fragmento de bom tamanho da Mata Atlântica que sobreviveu ao imenso crescimento urbano da região e que é legalmente protegida nos dias de hoje.
Na noite do dia da nossa chegada da viagem, num dado momento, abri as duas folhas envidraçadas da porta da nossa sala de jantar e notei alguma coisa verde que se movimentava no quintal. Quando me aproximei, vi que era um papagaio. Andava com dificuldade e parecia machucado. Muito surpreso, peguei-o sem que ele oferecesse resistência e o levei para dentro de casa. Mostrei-o à minha companheira que também expressou grande surpresa e comecei a observá-lo para ver se tinha algum machucado. Não tinha nenhum, mas estava muito fraco. Notei que tinha as asas aparadas, o que indicava que ele era um animal "doméstico". Era tarde da noite e não sabíamos o que fazer naquele momento. Arrumamos um abrigo numa caixa de papelão e colocamos alguns grãos de cereais, alguns pedaços de frutas e água. O bichinho comeu sem parar. No dia seguinte, ele estava com outro ânimo, o mal dele era fome, muita fome.
Começamos então uma busca pela vizinhança, à procura do dono da ave perdida. O condomínio tem apenas 43 casas e, assim, a tarefa terminou logo, mas ninguém era dono do bichinho. Ele ficou muito à vontade na nossa casa e notamos que era muito dócil. À noite, quando estávamos sentados no sofá vendo televisão ele se aproximou, subiu no meu pé e começou a se roçar. Peguei-o no colo e ele se aninhou. Claudia fez o mesmo e ele repetiu o comportamento e, a seguir, ela deu-lhe um nome: Louro Antônio. A partir daquele momento ele passou a ser chamado assim. Apegar-se a um animalzinho como aquele é muito rápido. Começamos uma discussão sobre o que fazer com ele, o que não era tarefa fácil, pois sempre defendemos que as aves devem ficar soltas na natureza e não presas em residências. O que fazer?
Levantamos a hipótese de ficarmos com ele até que as asas crescessem e ele pudesse voar. Aí surgiu uma questão: ele era doméstico demais e poderia querer ficar nas proximidades e o nosso condomínio é cheio de gatos. Ele seria uma presa muito fácil. Aliás, não entendi como ele não foi comido por algum gato, pois acredito, pelo seu estado de fraqueza, que ele ficou muito tempo no nosso quintal. Como ele apareceu em casa também é um mistério, pois estava impossibilitado de voar e o nosso condomínio é todo cercado, mistério insolúvel...
Claudia teve a ideia de, no dia seguinte, irmos até a sede da administração da Mata de Santa Genebra, pois levantou a hipótese de que poderia existir lá algum trabalho de reinserção de animais silvestres nos habitats naturais. No dia seguinte, de manhã, fomos até a Mata e, por sorte, encontramos o biólogo responsável. Ele nos disse que não havia esse tipo de serviço lá, mas que eles tinham um convênio com o proprietário de um sítio em Jundiaí (SP) que recebia os animais, cuidava deles até que estivem preparados e, em seguida, soltava-os na natureza. Falou-nos também que, quando as aves domesticadas eram soltas, era muito comum elas não se afastarem da sede do sítio, em função de estarem acostumadas ao convívio com os seres humanos.
Imaginei que isso aconteceria com Louro Antônio, pois acredito que ele enfrentaria dificuldades para conseguir o próprio alimento e lá ele poderia tê-lo em abundância. Ficamos contentes com a possibilidade desse novo lar e voltamos para casa para apanhar Louro Antonio. No caminho de volta para a Mata, ele ficou um tanto estressado e começou a gritar, acho que entendeu o que estava acontecendo, pois acho que ele já nos tinha adotado como seus novos donos. Essa foi a saga de Louro Antônio, o papagaio que surgiu do nada. Acho que ele teve sorte por nos encontrar, pois acredito que mudamos positivamente o seu destino.
Ainda bem que hoje existem seres humanos preocupados em reparar os danos provocados pela crueldade em relação aos animais. Muitas espécies desapareceram por conta dela e muitas ainda correm riscos. Escrevi este artigo para honrar aqueles que militam na causa da defesa dos nossos irmãozinhos que ficaram completamente  indefesos diante da avassaladora expansão da humanidade por todo o planeta Terra e em homenagem ao Louro Antônio, que deve estar muito feliz no meio das outras aves que comungam com ele um destino parecido com o seu.

Referência
GUIDA, Angela. A poética da crueldade: um olhar no humano e no não humano (httpwww.letras.ufmg.brposlit08_publicacoes_pgsEm%20Tese%201717-3TEXTO%201%20ANGELA.pdf -  Acesso em: 09/04/2015).

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O menino americano e a bola de capotão

Zildo Gallo












Muitas vivências e fatos da nossa existência, por mais longínquos que estejam no tempo, sempre permanecem na memória. Permanecem porque carregam significados singulares, especiais. Muitos deles, caso analisemos rapidamente, podem parecer sem importância, mas, caso insistamos na observação, caso não "deixemos para lá", o que corriqueiramente costumamos fazer, sempre acabaremos por achar algum significado profundo escondido. A história que relato a seguir é um caso desses.
No final dos anos 60 do século passado, quando morava em Americana (SP), à rua Frederico Pollo, na Vila Jones, numa situação de muita pobreza e dificuldades econômicas concretas (existe dificuldade econômica não concreta?), eu e vários meninos da minha rua e das proximidades, que também enfrentavam situações parecidas, uns mais outros menos, vivenciamos durante algum tempo uma história inédita, até mesmo estranha, dada as nossas condições limitadas de vida e da percepção diminuta que tínhamos do mundo, pelo menos a minha era assim. Apesar da estranheza, a história era bem agradável, tanto que grudou nas paredes da minha memória.
Antes de narrar os acontecimentos pretéritos, que são bem curtos e singelos, acho conveniente descrever o cenário do enredo e, ao mesmo tempo, acrescentar algumas informações que, com o correr do tempo, fui adquirindo sobre a história de Americana, cidade na qual vivi a maior parte da minha infância, toda a adolescência e parte da idade adulta. São informações que considero importantes para a compreensão do sincrônico encadeamento dos fatos.
O nome do bairro, Vila Jones, homenageia uma das famílias de imigrantes americanos confederados, que começaram a se instalar, entre 1865 e 1885, nas terras próximas ao ribeirão Quilombo que, posteriormente, formarão o município de Americana. Os Jones são uma família com visibilidade e importância na história local. A senhora Judith Mac Knight Jones, esposa do Dr. James Roderick Jones (Jaime Jones, assim ele era chamado pelos brasileiros), além de ter no currículo o fato de ser tia de Rita Lee Jones, nossa eterna rainha do rock, também escreveu um livro importante, que resultou de uma grande pesquisa histórica, sobre a imigração e a instalação dos imigrantes confederados no Brasil do segundo império: Soldado Descansa! uma Epopeia Norte Americana sob os Céus do Brasil.
O cenário dos acontecimentos que vou narrar foi onde hoje funciona uma escola estadual, entre quatro ruas: Rua Washington Luis, Rua Florindo Cibin, Rua Martins Fontes e Rua Guilherme de Almeida. Neste quarteirão, nos anos 60 e 70, havia um campo de futebol, o Canto do Rio. Acredito que se chamava assim porque estava localizado perto da microbacia do Córrego Pyles, que ficava no sítio dos Jones. O nome do córrego, Pyles, também homenageia uma família de imigrantes americanos.
Quando eu me mudei para Americana com minha família, em 1963, o Canto do Rio estava vivendo um processo de deterioração. Antes, ele era bem cuidado e tinha, inclusive, em todo o lado que margeava a Rua Washington Luis, uma arquibancada construída com tijolos e concreto. Com o abandono, várias famílias começaram a saquear a arquibancada para, com os tijolos dali extraídos, ampliarem as suas residências; a arquibancada desapareceu em muito pouco tempo.
Apesar da degradação, o campo nunca deixou de ser usado enquanto tal, até que virasse uma escola. Que legal que tenha virado escola! Nos finais de semana ele era utilizado por um time que se formou a partir dos frequentadores do bar de um posto de gasolina na Avenida Campos Salles, o Servicentro Esso. Meu pai, Aristides, que trabalhava no posto, no seu primeiro emprego em Americana, também jogava no time, que era composto, na sua maioria, por operários das fábricas de tecidos da região, que, ao final da tarde, quando saíam do trabalho, paravam no bar, conhecido por todos como Bar do Posto, onde bebiam alguma coisa e jogavam conversa fora, antes de irem para sua casas. Tenho na memória alguns nomes de jogadores: Buzina, Piti, Viola e Japão. Lembro-me também que Piti era surdo-mudo e Japão era o borracheiro do posto. Guardei-os porque os achava engraçados, acho que é por isso, não sei, a memória é uma coisa muito estranha.
Durante os dias úteis da semana o Canto do Rio era das crianças. De manhã eu ia para a escola e à tarde rumava para o campo, onde encontrava outros meninos. Ficávamos esperando, conversando bobagens, até que aparecesse alguém com uma bola. Havia poucos meninos proprietários de bolas de futebol, eram os "donos da bola". E os donos de uma bola de capotão de tamanho oficial? Esses eram uma raridade, raridade mesmo. Uma bola Drible de couro, costurada à mão, de tamanho número cinco, grandona, era muito cara; naquela época ela era um desejo praticamente impossível de ser alcançado pela esmagadora maioria dos meninos do Canto do Rio.
Contudo, às vezes, os desejos mais difíceis podem ser atendidos, como num passe de mágica. Num dia, não me lembro de qual ano, eu e meus amigos esperávamos alguém com uma bola e eis que de repente, não mais que de repente (como no poema de Vinícius de Moraes), apareceu um menino que chegava acompanhado pelo pai. Ele era muito diferente dos meninos dali, comigo incluso, era alto, do tipo forte e tinha o rosto claro e rosado. Apresentou-se como Johnny, num português com sotaque engraçado, pelo menos eu achei engraçado. E, o que é mais importante: ele trazia consigo uma bola de capotão oficial, branquinha, lindona.
Johnny era americano e ficaria no Brasil por algum tempo. No tempo que ficou em Americana, ele virou o verdadeiro "dono da bola". Acredito que nenhum outro gringo tenha sido tão bem recebido e tão festejado como ele. Acredito que ele mesmo não saiba disso, com certeza. Brincamos muito com a bola de capotão do Johnny. Ele foi o primeiro americano que conheci pessoalmente. Conhecíamos os descendentes dos confederados, um americano legítimo como ele estava num outro nível e, ainda mais, ele tinha uma bola de capotão número cinco.
Um dia o Johnny foi embora e levou consigo a bola de capotão, nada mai justo. Um americano que gostava de futebol naquela época era uma raridade, a posse da bola era muito mais que merecida. Todavia, o mundo é sempre uma caixinha de surpresas.
Muitos anos mais tarde, quando trabalhava como professor no Departamento de Economia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) foi que fiquei sabendo o nome completo do Johnny, John Cowart Dawsey. Ele foi professor da UNIMEP entre 1989 e 1996, conforme informa o seu Currículo Lattes. Eu, por minha vez, lecionei na universidade entre 1987 e 2006. Jung chama essas coincidências, que ele não considera assim, de sincronicidade.
Hoje, o Johnny (John Cowart Dawsey) é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e vejo, pelo seu Lattes, que ele é um pesquisador produtivo. Ele é uma espécie de "dono da bola" na sua área de conhecimento. Os comentários que ouço sobre ele são sempre abonadores Quanto ao futebol, tenho informações que ele continua gostando do esporte bretão como antes. Só que agora ele não é mais uma raridade, pois muitos americanos gostam de futebol, mas o menino Johnny foi um pioneiro nesta questão, isto ninguém tira dele.

PS.: A história é verdadeira, aconteceu mesmo. Resolvi transformá-la numa crônica, numa crônica sobre o futebol das crianças em tempos difíceis. A bola é um símbolo, um desejo, é um meio e, ao mesmo tempo um objetivo. Não é o jogador que atinge a meta (o gol), mas a bola chutada por ele. Por ser redonda, não sabemos onde começa e onde termina, o que é um enigma. Por ser redonda ela rola, se não rolasse, o futebol não seria possível. A posse de uma bola de qualidade era na minha infância uma forma de poder. Todavia, o poder tinha que ser exercido de forma democrática, porque não dá para jogar futebol sozinho. Esta é a beleza desse esporte: o "dono da bola" tem que dividir a bola para poder jogar.

A QUE VIM