Zildo Gallo
Em 9 de setembro de 2010, a cidade de
Americana/SP tomou um grande susto aí por volta das 23 horas. Foi uma tragédia:
um trem de carga com quatro locomotivas
e 77 vagões carregados de milho, soja e açúcar, que seguia rumo ao porto de
Santos, atropelou um ônibus urbano da Viação VCA que atravessava a passagem de
nível, o que resultou em nove mortos e vários feridos.
Tal fato nunca me saiu da cabeça, ainda
que não estivesse próximo ao evento e, além disso, não conhecesse nenhuma das
vítimas. Lembro-me que se travou uma discussão sobre os possíveis culpados,
como sói acontecer nesses momentos. Ainda me lembro que surgiram conjecturas
sobre uma tarefa hercúlea de mudar o traçado da ferrovia, retirando-a do centro
da cidade. A ferrovia, creio, mesmo antes do acidente, parecia incomodar a
população americanense no sentido de ela se apresentar como um estorvo,
atrapalhando o bom andamento do trânsito local. Tais conversas nem de longe me
atingiram, pois outras questões mais sutis se acercaram do meu espírito.
Naquele momento cheguei a pensar em escrever algo a respeito, mas só agora
sinto-me em condições de fazê-lo de forma mais amadurecida. É o que passo a
fazer agora.
Se o acidente tivesse acontecido há três
ou quatro décadas atrás, as polêmicas teriam sido um pouco diferentes, pois a
relação da cidade com a ferrovia era muito diferente da atual. Trata-se, na
verdade, de uma relação bem antiga. A cidade cresceu e evoluiu a partir da
inauguração da estação ferroviária de Santa Bárbara, na Vila dos Americanos, cujo
nome deriva da ocupação das terras do entorno por imigrantes do sul dos Estados
Unidos. A efeméride deu-se na segunda metade do século XIX, mais precisamente
em 27 de agosto de 1875, evento que contou a presença do Imperador Dom Pedro II.
Durante muito tempo a estação
ferroviária foi a porta de entrada e de saída da cidade. Para mim foi assim,
pois nela desembarquei com minha família, vindo da minha cidade natal,
Borborema/SP. Os poucos móveis e objetos também chegaram pela ferrovia, encaixotados
e transportados num vagão cargueiro. Corria o ano de 1963 e eu tinha sete anos
de idade. Voltei à Borborema apenas uma vez a passeio e, com a distância e o
passar do tempo, as imagens da minha terra de origem esmaeceram-se feito
fotografias velhas. Muitas outras crianças também entraram na cidade pelos
portões da velha estação, naqueles tempos de acentuado êxodo rural, incluindo
meus primos e primas. Americana era, à época, um tipo de Eldorado do emprego.
Ela passava essa imagem e minha família acreditou nela.
Americana teve durante muito tempo uma
sólida relação com a ferrovia e com a sua velha estação. Além do transporte de
pessoas, ela transportava cargas também. No meu primeiro emprego, na tecelagem pertencente
às famílias Feltrin e Cia (a empresa não existe mais), eu e os demais trabalhadores
do setor de expedição tínhamos uma relação constante com a FEPASA, pois boa parte
das remessas de tecidos era feita através dessa companhia ferroviária. Durante
um período eu fiquei responsável pela relação da Feltrin com compradores lojistas
(chamávamos isso de varejo) e muitos deles preferiam que enviássemos as
mercadorias pelo modal ferroviário, entre eles alguns lojistas de Borborema,
minha cidade natal; foi durante um bom tempo o único contato com as minhas
raízes.
Os jovens da cidade tinham uma relação
muito forte com a velha estação. Ela era o ponto de partida para as cidades
vizinhas. Costumávamos viajar em grupos. Íamos aos cinemas e ao Teatro Castro
Mendes em Campinas. Tínhamos que ir à primeira sessão dos filmes, pois
corríamos o risco de perder o último trem (o nosso "Trem das Onze",
como no caso de Adoniram Barbosa, lembram?) e, nesse caso, dormiríamos na
estação. Quanto ao teatro, ainda trago na memória a peça "Um grito parado
no ar", de Gianfrancesco Guarnieri; se não me engano o ano era 1975, um
século depois da inauguração da estação de Santa Bárbara. Chegamos à estação de
Campinas e pegamos um túnel estreito e comprido que passava embaixo da ferrovia
e saímos pertinho do teatro e ao fim da peça fizemos o caminho de volta pelo
mesmo túnel rumo à estação. Toda vez era assim. Os cinemas ficavam um pouco
mais distantes e não havia nenhum túnel, mas dava para chegar até eles após alguns
minutos de caminhada.
Nos anos setenta, nos fins de semana,
virou moda entre boa parte da juventude local frequentar o Parque Fonte Sonia
em Valinhos, cidade vizinha de Campinas. O meio de transporte era o trem. Todo
domingo levas de jovens chegavam bem cedo à estação de Americana e retornavam
ao cair da noite. Eu tenho uma prima que conheceu o seu marido na Fonte Sonia;
estão juntos até hoje, deve ser o encantamento das águas. Eu nunca fiz parte
dos grupos frequentadores da Fonte Sonia. Lembro-me também de jovens pegando o
trem rumo a Araras para visitarem o zoológico da cidade.
O trem não servia só para nos levar ao
lazer, servia também como transporte escolar. Era intenso o tráfego de
estudantes entre Americana e as cidades vizinhas e vice-versa. Muitos
trabalhadores também se movimentavam pela ferrovia diariamente. Meu vínculo com
esse modal de transporte foi bastante sólido, meu pai trabalhou durante muitos
anos como operário de uma empreiteira que prestava serviços de manutenção à
FEPASA. Nessa época a minha família conseguia viajar de graça, o que era bem
legal.
A estação era cheia de vida, por ela circulavam
pessoas e parte da riqueza produzida no município. Foi assim desde a sua
fundação, quando os trens transportavam as melancias da variedade
"Cascavel da Geórgia", plantadas e colhidas pelos imigrantes
americanos. O trem era um meio de transporte rápido e isso era necessário para
uma mercadoria perecível como a melancia.
A cidade cresceu a partir da sua velha
estação. O seu fechamento pode ter significado uma perda material; talvez não
tenha sido muito grande. Nos seus últimos anos de funcionamento os serviços
estavam precários e, aos poucos, o modal
rodoviário foi ocupando o seu espaço. Quando a estação enfim encerrou as suas
atividades, o modal ferroviário encontrava-se em frangalhos, vivendo uma
situação de claro abandono. Contudo, a maior perda, no meu modo de ver e de
sentir, principalmente, foi de caráter imaterial. Tendo a dizer: espiritual,
inclusive. Ela tem a ver com sentimentos, com histórias, com lembranças, muitas
lembranças, boas lembranças... A estação, os trens e os passageiros (não éramos
tão passageiros; frequentadores fica melhor) formavam um conjunto sólido de
relações e o que levamos desta vida são as relações, tanto as boas e quanto as
más, são elas que nos tornam humanos. Por sua vez, a matéria fenece.
A estação, os trens, os maquinistas, os
bilheteiros, os vendedores de revistas e de lanches e os passageiros, é óbvio,
formavam um belo conjunto, um conjunto em movimento, vivo, todos os dias... Hoje,
as estações deixaram de ser estações. Algumas viraram centros culturais enquanto
outras se deterioram, entregues às ações do tempo e o tempo é implacável. Os
trens, por sua vez, só transportam, na sua maioria, commodities produzidas pelo
agronegócio. O porto de Santos é o destino final de cada um deles. A Região
Metropolitana de Campinas, da qual Americana faz parte, apenas assiste à
passagem diuturna das composições, com suas dezenas de vagões e suas potentes
locomotivas. A ferrovia tornou-se um corpo estranho à urbe. Não é de estranhar o
surgimento de uma certa rejeição em relação a elas no meio urbano, apesar do
fato de elas retirarem muitos caminhões das rodovias por conta da sua tamanha
capacidade de carga. Apesar de tudo, elas são, do ponto de vista ambiental, uma
opção de transporte de carga muito melhor que a rodoviária. Mas, onde ficam os
seres humanos?