sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Memórias ferroviárias

Zildo Gallo

Em 9 de setembro de 2010, a cidade de Americana/SP tomou um grande susto aí por volta das 23 horas. Foi uma tragédia: um trem de carga com  quatro locomotivas e 77 vagões carregados de milho, soja e açúcar, que seguia rumo ao porto de Santos, atropelou um ônibus urbano da Viação VCA que atravessava a passagem de nível, o que resultou em nove mortos e vários feridos.
Tal fato nunca me saiu da cabeça, ainda que não estivesse próximo ao evento e, além disso, não conhecesse nenhuma das vítimas. Lembro-me que se travou uma discussão sobre os possíveis culpados, como sói acontecer nesses momentos. Ainda me lembro que surgiram conjecturas sobre uma tarefa hercúlea de mudar o traçado da ferrovia, retirando-a do centro da cidade. A ferrovia, creio, mesmo antes do acidente, parecia incomodar a população americanense no sentido de ela se apresentar como um estorvo, atrapalhando o bom andamento do trânsito local. Tais conversas nem de longe me atingiram, pois outras questões mais sutis se acercaram do meu espírito. Naquele momento cheguei a pensar em escrever algo a respeito, mas só agora sinto-me em condições de fazê-lo de forma mais amadurecida. É o que passo a fazer agora.
Se o acidente tivesse acontecido há três ou quatro décadas atrás, as polêmicas teriam sido um pouco diferentes, pois a relação da cidade com a ferrovia era muito diferente da atual. Trata-se, na verdade, de uma relação bem antiga. A cidade cresceu e evoluiu a partir da inauguração da estação ferroviária de Santa Bárbara, na Vila dos Americanos, cujo nome deriva da ocupação das terras do entorno por imigrantes do sul dos Estados Unidos. A efeméride deu-se na segunda metade do século XIX, mais precisamente em 27 de agosto de 1875, evento que contou a presença do Imperador Dom Pedro II.
Durante muito tempo a estação ferroviária foi a porta de entrada e de saída da cidade. Para mim foi assim, pois nela desembarquei com minha família, vindo da minha cidade natal, Borborema/SP. Os poucos móveis e objetos também chegaram pela ferrovia, encaixotados e transportados num vagão cargueiro. Corria o ano de 1963 e eu tinha sete anos de idade. Voltei à Borborema apenas uma vez a passeio e, com a distância e o passar do tempo, as imagens da minha terra de origem esmaeceram-se feito fotografias velhas. Muitas outras crianças também entraram na cidade pelos portões da velha estação, naqueles tempos de acentuado êxodo rural, incluindo meus primos e primas. Americana era, à época, um tipo de Eldorado do emprego. Ela passava essa imagem e minha família acreditou nela.
Americana teve durante muito tempo uma sólida relação com a ferrovia e com a sua velha estação. Além do transporte de pessoas, ela transportava cargas também. No meu primeiro emprego, na tecelagem pertencente às famílias Feltrin e Cia (a empresa não existe mais), eu e os demais trabalhadores do setor de expedição tínhamos uma relação constante com a FEPASA, pois boa parte das remessas de tecidos era feita através dessa companhia ferroviária. Durante um período eu fiquei responsável pela relação da Feltrin com compradores lojistas (chamávamos isso de varejo) e muitos deles preferiam que enviássemos as mercadorias pelo modal ferroviário, entre eles alguns lojistas de Borborema, minha cidade natal; foi durante um bom tempo o único contato com as minhas raízes.
Os jovens da cidade tinham uma relação muito forte com a velha estação. Ela era o ponto de partida para as cidades vizinhas. Costumávamos viajar em grupos. Íamos aos cinemas e ao Teatro Castro Mendes em Campinas. Tínhamos que ir à primeira sessão dos filmes, pois corríamos o risco de perder o último trem (o nosso "Trem das Onze", como no caso de Adoniram Barbosa, lembram?) e, nesse caso, dormiríamos na estação. Quanto ao teatro, ainda trago na memória a peça "Um grito parado no ar", de Gianfrancesco Guarnieri; se não me engano o ano era 1975, um século depois da inauguração da estação de Santa Bárbara. Chegamos à estação de Campinas e pegamos um túnel estreito e comprido que passava embaixo da ferrovia e saímos pertinho do teatro e ao fim da peça fizemos o caminho de volta pelo mesmo túnel rumo à estação. Toda vez era assim. Os cinemas ficavam um pouco mais distantes e não havia nenhum túnel, mas dava para chegar até eles após alguns minutos de caminhada.
Nos anos setenta, nos fins de semana, virou moda entre boa parte da juventude local frequentar o Parque Fonte Sonia em Valinhos, cidade vizinha de Campinas. O meio de transporte era o trem. Todo domingo levas de jovens chegavam bem cedo à estação de Americana e retornavam ao cair da noite. Eu tenho uma prima que conheceu o seu marido na Fonte Sonia; estão juntos até hoje, deve ser o encantamento das águas. Eu nunca fiz parte dos grupos frequentadores da Fonte Sonia. Lembro-me também de jovens pegando o trem rumo a Araras para visitarem o zoológico da cidade.
O trem não servia só para nos levar ao lazer, servia também como transporte escolar. Era intenso o tráfego de estudantes entre Americana e as cidades vizinhas e vice-versa. Muitos trabalhadores também se movimentavam pela ferrovia diariamente. Meu vínculo com esse modal de transporte foi bastante sólido, meu pai trabalhou durante muitos anos como operário de uma empreiteira que prestava serviços de manutenção à FEPASA. Nessa época a minha família conseguia viajar de graça, o que era bem legal.
A estação era cheia de vida, por ela circulavam pessoas e parte da riqueza produzida no município. Foi assim desde a sua fundação, quando os trens transportavam as melancias da variedade "Cascavel da Geórgia", plantadas e colhidas pelos imigrantes americanos. O trem era um meio de transporte rápido e isso era necessário para uma mercadoria perecível como a melancia.
A cidade cresceu a partir da sua velha estação. O seu fechamento pode ter significado uma perda material; talvez não tenha sido muito grande. Nos seus últimos anos de funcionamento os serviços estavam precários e, aos poucos, o  modal rodoviário foi ocupando o seu espaço. Quando a estação enfim encerrou as suas atividades, o modal ferroviário encontrava-se em frangalhos, vivendo uma situação de claro abandono. Contudo, a maior perda, no meu modo de ver e de sentir, principalmente, foi de caráter imaterial. Tendo a dizer: espiritual, inclusive. Ela tem a ver com sentimentos, com histórias, com lembranças, muitas lembranças, boas lembranças... A estação, os trens e os passageiros (não éramos tão passageiros; frequentadores fica melhor) formavam um conjunto sólido de relações e o que levamos desta vida são as relações, tanto as boas e quanto as más, são elas que nos tornam humanos. Por sua vez, a matéria fenece.
A estação, os trens, os maquinistas, os bilheteiros, os vendedores de revistas e de lanches e os passageiros, é óbvio, formavam um belo conjunto, um conjunto em movimento, vivo, todos os dias... Hoje, as estações deixaram de ser estações. Algumas viraram centros culturais enquanto outras se deterioram, entregues às ações do tempo e o tempo é implacável. Os trens, por sua vez, só transportam, na sua maioria, commodities produzidas pelo agronegócio. O porto de Santos é o destino final de cada um deles. A Região Metropolitana de Campinas, da qual Americana faz parte, apenas assiste à passagem diuturna das composições, com suas dezenas de vagões e suas potentes locomotivas. A ferrovia tornou-se um corpo estranho à urbe. Não é de estranhar o surgimento de uma certa rejeição em relação a elas no meio urbano, apesar do fato de elas retirarem muitos caminhões das rodovias por conta da sua tamanha capacidade de carga. Apesar de tudo, elas são, do ponto de vista ambiental, uma opção de transporte de carga muito melhor que a rodoviária. Mas, onde ficam os seres humanos?


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O cinema e as suas salas fechadas em Americana/SP

Zildo Gallo



O município de Americana/SP até a década de oitenta do século passado ainda tinha salas de cinema. Até os anos setenta a cidade chegou a ter três salas: Cine Brasil, Cine Cacique e Cine Comendador. Essas salas tiveram o mesmo destino que as milhares espalhadas pelo Brasil: foram fechadas e tornaram-se casas de comércio ou igrejas. É corrente a justificativa de que o vídeo cassete e logo a seguir o DVD contribuíram para tal fenômeno. Não pretendo discutir as causas, mas lembrar da importância das salas de cinema da cidade de Americana, pelo menos para mim, onde passei a maior parte da minha infância, da minha adolescência e onde habitei até os meus trinta anos de idade.
Depois desse fenômeno arrasador, as salas de cinema começaram a voltar, aos poucos, através dos shoppings centers nas cidades médias e grandes. Nas cidades pequenas elas não foram reabertas, pois elas não têm shoppings de grande porte. Apesar de ser uma cidade de médio porte, Americana não dispõe ainda de salas de projeção, uma pena...
Ir ao cinema na minha infância e na minha adolescência era um ato corriqueiro. Tornei-me um cinéfilo desde pequeno. Na minha infância frequentava as matinês aos domingos à tarde. Era um acontecimento, pois não se tratava apenas de ver um filme. Outras coisas aconteciam nos cinemas e uma delas era bastante produtiva do ponto de vista cultural e social. Tratava-se da troca de gibis. Naquela época líamos muitos gibis e adquirimos o hábito saudável de trocar os já lidos com os amigos das matinês. Todos nós levávamos embaixo dos braços um punhado deles para troca. Não havia dinheiro nesse tipo de negócio. Estabelecíamos alguns parâmetros como o de que um álbum valia dois gibis menores, por exemplo. Hoje a sociologia chama isso de troca justa ou comércio justo. Éramos politicamente corretos e nem suspeitávamos disso.
Quando cresci, não trocava mais gibis nas matinês, mas continuei frequentando os três cinemas, dessa vez no período noturno, religiosamente. Como os cinemas não passavam filmes repetidos, acabava vendo três filmes por semana. Perdi as contas dos filmes que assisti. Não tinha gênero preferido, gostava de todos, comédias, dramas, terror, faroeste, policial, animação, musical etc. Os cinemas eram muito frequentados e a vontade de ver os filmes era tanta que chegávamos a falsificar a data de nascimento na carteira estudantil para assistirmos aos filmes proibidos a menores de dezoito anos, confesso que o fiz.
Com o surgimento do vídeo cassete, ver filmes ficou mais barato e mais simples, mas, asseguro não tem o mesmo encanto do cinema e digo mais, não tem o mesmo alcance cultural e social. Ir ao cinema contribuía para o desenvolvimento de uma saudável sociabilidade, pois enquanto esperávamos a abertura das portas para o início da sessão, encontrávamos velhos conhecidos e jogávamos conversa fora; tudo era muito agradável e tinha muita magia nisso. Aquelas antigas salas eram muito diferentes das salas dos shoppings. A sala de espera já era um acontecimento sociocultural. Pode ser que o fechamento das salas tenha contribuído, junto com muitas outras causas, é lógico, para o avanço do individualismo na nossa sociedade. É uma questão a ser verificada.
Nem tudo ficou ruim em Americana, pelo menos o Cine Brasil não virou comércio e nem igreja, pois se transformou num teatro, num bom teatro, mas a cidade continua precisando de um cinema. Será que só eu penso assim, eu que não moro nessa cidade há anos? Em Campinas, onde moro, tem muitas salas e recentemente foram fechadas quatro salas do Cine Topázio no Shopping Prado. O Cine Topázio era diferente, pois não exibia, como a maioria dos outros, um monte de filmes americanos. Ele exibia filmes de muitas nacionalidades, com destaque para os franceses. Muitos lamentaram o seu fechamento, inclusive eu. Sou daqueles que acredita que o cinema pode contribuir para a formação cultural dos povos.
Na minha infância, além dos três cinemas, ainda contávamos com o Cineminha do Senhor Pagni. O Senhor Pagni era um cinéfilo e um cinegrafista amador. Lembro-me que ele filmava os acontecimentos da primeira gestão do Prefeito Dr. Valdemar Tebaldi (1977 - 1982), como as inaugurações de obras, por exemplo. Ele tinha na sua casa, no cruzamento entre as Ruas Gonçalves Dias e Vital Brasil, um salão grande, onde colocou vários bancos compridos de madeira e onde projetava filmes para o público infanto-juvenil, cobrando preços simbólicos, preços que as crianças pobres podiam pagar. Era um serviço social de inestimável valor. Recordo-me de ter visto os filmes dos Três Patetas, do Gordo e Magro, Tarzan, Zorro, Mazzaropi e muitos faroestes. Inesquecível Senhor Pagni...
Será que Americana espera por um shopping de tamanho grande para poder ter salas de cinema, como aconteceu com o município vizinho, Santa bárbara D'Oeste? Aqui vai uma sugestão. Parece-me que o velho Cine Brasil era do Sr. Abdo Najar, ex-prefeito da cidade e o seu filho, Omar Najar, é o atual prefeito. A Prefeitura Municipal poderia tomar a frente, depois de sanear as contas públicas, é óbvio, e providenciar (pode ser em parceria com o setor privado) a construção de salas de cinema. Do ponto de vista cultural, a meu ver, seria um ganho expressivo para o município.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O lixo em Americana, a sociedade de consumo e o consumismo

Zildo Gallo



O município de Americana/SP, por conta de uma séria crise na gestão municipal, ficou sem a coleta de lixo durante um bom tempo. Não pretendo falar aqui sobre a falência da prefeitura, nem sobre a cassação do prefeito, não tocarei na questão política, mas pretendo refletir um pouco sobre a produção de lixo. Por que produzimos lixo? O que nos leva a produzir lixo? O que é o lixo, afinal de contas? O que fazer com ele? É possível produzir menos?
O lixo como conhecemos hoje é um resultado da modernidade, com o seu sistema industrial e suas cidades. Antigamente, quando a maioria das pessoas vivia no meio rural e quando não existia a indústria petroquímica produzindo plásticos, os resíduos sólidos resumiam-se quase que a restos de alimentos, que eram servidos aos animais domésticos. Os demais tipos de resíduos eram poucos e colocavam- se na categoria de degradáveis num tempo relativamente curto, quando deixados na natureza, como no caso das fibras têxteis que tinham suas origens em vegetais (algodão e linho) e animais (couro e lã). Praticamente não havia a necessidade de aterros sanitários e de um sistema de gestão de resíduos.
Hoje, a maioria das pessoas vive nas cidades, onde os restos de alimentos não são consumidos pelos animais domésticos. Para complicar o quadro, a indústria acabou desenvolvendo produtos que não se degradam facilmente na natureza, como é o caso do plástico. O plástico tem uma infinidade de usos e também acabou sendo usado como embalagem, ocupando o lugar do vidro, do papel e da madeira. Também surgiram outros tipos de embalagem de difícil degradação, como os papéis laminados, por exemplo. Na segunda metade do século XX entramos no mundo dos descartáveis. As coisas também ficaram mais baratas, pois o plástico é muito barato. Talvez, este seja o lado bom. Estou chovendo no molhado, todo mundo já sabe disso. O problema é: o que fazer com tudo isso?
Muitos respondem de imediato: coleta seletiva, reciclagem e compostagem. De fato, mesmo sem saberem, querem dizer: continuemos consumindo e produzindo lixo e a prefeitura que dê um jeito nas nossas sobras. Parece bem simples, mas não é. Por trás dos resíduos sólidos, isso que o povo vulgarmente chama de lixo, tem muitas questões escondidas e complicadas.
Comecemos pelo tratamento do lixo. Não é uma tarefa fácil e muito menos barata. As prefeituras não conseguem repassar aos munícipes os custos totais do sistema de tratamento, que muitas vezes, resume-se a um simples aterro sanitário, ou um simples "lixão" sem nenhum controle. Muito recurso financeiro e também muito trabalho são utilizados para dar conta das nossas sobras. É caro, mas deve ser feito, neste momento não temos outra saída. Precisamos separar os resíduos, reciclar os recicláveis, fazer compostagem com os orgânicos e enterrar os que não se encaixam nas duas categorias anteriores. Mais adiante deveremos caminhar no sentido da efetiva diminuição da produção de resíduos.
Voltemos ao caso de Americana. Quantos cidadãos, quando viam os sacos de lixo amontoarem-se a cada dia nas calçadas, além de se indignarem com a não coleta, que, de fato, merecia grande indignação, fizeram a seguinte indagação: como eu produzo tanto lixo? Alguém arrisca uma resposta? Não é uma pergunta fácil de se fazer, pois ela significa a possibilidade de um olhar além da montanha dos resíduos das nossas vidas e as respostas podem não ser muito agradáveis. Os cidadãos americanenses e sua produção diária de resíduo é apenas um mote com o qual faço um chamado à reflexão sobre o significado do consumo moderno, que, evidentemente, não cabe neste pequeno artigo. Aqui apenas inicio uma conversa.
Como eu produzo tanto lixo? Esta pergunta é essencial, ela pode ser o ponto de partida para entendermos o funcionamento da moderna sociedade de consumo; olhar o seu lado feio, o lixo amontoado, pode surtir um efeito diferente daquele de quando olhamos uma vitrine no shopping. Estaremos olhando para o avesso da vitrine, para a sua sombra, para a sombra deste tipo de sociedade e, na sombra, talvez possamos enxergar alguma luz. Fiat lux, faça-se a luz: "Eureca! (descobri!), o lixo que produzo vem do meu consumo".
E daí, vou me chicotear, punindo-me após a descoberta a minha culpa? O que posso fazer? Será que consumo demais mesmo? Calma, nós temos a nossa parte nas responsabilidades e não é pequena, mas também somos vítimas das engrenagens da sociedade de consumo. Então, em primeiro lugar, precisamos compreender o seu funcionamento. Tem muita gente estudando-a. Eu destaco Annie Leonard, que faz um bom trabalho para compreender os seus malefícios. Sugiro uma visita ao seu vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=Q3YqeDSfdfk) e a leitura do seu livro: The Story of Stuff (A História das Coisas - Editora Zahar). Só o vídeo já ajuda bem. Também indico a leitura de dois artigos meus: Consumo Responsável para a Sustentabilidade e a Cidadania (http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2014/11/consumo-responsavel-para.html) e Consumo Sustentável ou Sociedade Sustentável: um Debate Necessário (http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2014/12/consumo-sustentavel-ou-sociedade.html).
Para o leitor que quiser se aprofundar e buscar as primeiras críticas à sociedade de consumo, sugiro a leitura de Herbert Marcuse. Nas suas principais obras, Eros e Civilização e O Homem unidimensional  Ideologia da Sociedade Avançada ele faz uma crítica à sociedade tecnológica.  Ele, nos idos do anos sessenta do século passado, chegou a reconhecer que subestimou a capacidade do sistema, em desenvolver formas de controle social cada vez mais eficazes, com a produção cada vez maior de bens supérfluos, para redirecionar as necessidades de prazer e satisfação das pessoas. Para ele a sociedade industrial contemporânea impõe uma racionalidade tecnológica de dominação e de controle da consciência humana e ela não é livre, pois age como um autômato, buscando a satisfação de necessidades falsas e tornando-se conformista. Imaginem se ele estivesse vivo agora, na segunda década do século XXI, observando a orgia consumista e seus consumidores domesticados...
Feitas todas estas considerações, pretendo aqui neste artigo abordar um aspecto apenas, contudo, um aspecto extremamente relevante: o de como estamos sendo treinados para sermos consumidores desde pequenos, desde muito pequenos. Trata-se da tal capacidade do sistema para desenvolver meios para redirecionar ou criar necessidades novas de consumo. A propaganda e o marketing são as principais ferramentas para isso.
A educação vem do berço, diz o dito popular; o Sistema Empresarial compreendeu isto há um bom tempo e agiu bem rápido. Nunca antes a propaganda fez tanto apelo ao público infantil como agora, trata-se de um alvo fácil, pois a criança está em formação e ainda não desenvolveu o espírito crítico e o conjunto de valores necessários a sua vida em sociedade.
Peguemos apenas o caso da indústria de brinquedos. A de alimentos (lembram-se do "Danoninho vale por um bifinho"?), de bebidas e da moda também fazem apelos constantes ao público infantil. Na indústria de brinquedos a programação é mais ostensiva e eu me arrisco a afirmar, beira à violência, pois ela repercutirá no futuro na formação de consumidores adestrados para as demais indústrias; ela está prestando um serviço a todas elas, indistintamente. Um exemplo de brinquedo que serve para preparar consumidores adultos é o dos pseudocomputadores, que possuem músicas,  joguinhos, que contam histórias etc.
Tais "computadores" preparam, antecipadmente, os futuros consumidores da indústria da informática, que rotineiramente abusa da obsolescência programada, lançando praticamente todos os anos novos produtos e tornando os anteriores "superados". Na verdade, ela cria consumidores que nem chegam a usar totalmente a capacidade dos modelos antigos de computadores e já migram para os novos, numa insana corrida em busca de alguma eficiência a mais; mudam de  equipamentos como quem troca de roupa de acordo com a moda, que também cria um tipo de obsolescência programada todos os anos. Tanto a produção de resíduos eletrônicos quanto a da indústria da moda é absurdamente alta e a gestão dos resíduos de ambas é muito difícil.
Voltemos à indústria de brinquedos. Para exemplificar bem a sua atuação, entre um montante considerável de exemplos, são muitos, pegarei um que considero gritante. Trata-se da boneca conhecida como Baby Alive. É uma boneca que busca a imitação da realidade. Ela fala, se mexe e se alimenta como um bebê de verdade, inclusive suja a fralda. Até aí a situação pode não parece tão anormal. A anormalidade está nos complementos que a acompanham, que induzem comportamentos indesejáveis do ponto de vista de uma sociedade que se pretende saudável. Na verdade eles vão na contramão dessa sociedade almejada: não consumista, produtora de pouco resíduo, que respeita a natureza, que privilegia o consumo de produtos naturais, que estimula a criatividade etc.
Baby Alive é uma boneca cara, muitas famílias não podem ter acesso a ela. Seus complementos também são muito caros e dois deles, além de caros, vão no sentido contrário do que imaginamos para uma sociedade minimamente sustentável, porque são descartáveis e contrários à ideia de uma vida saudável. Falo dos saquinhos de alimentos e das fraldas descartáveis.
Em termos de alimentação, sabemos hoje que ela tem que ser a menos processada (industrializada) possível, privilegiando os produtos in natura e, de preferência, os oriundos da agricultura orgânica. Essa boneca ensina a consumir alimentos fornecidos em embalagens herméticas, imitando as das famosas sopas rápidas, que, depois de abertas vão para o lixo, virando resíduos. O mais grave é que cada saquinho é usado uma única vez, com o seu conteúdo sendo misturado na água, produzindo uma papinha, que é servida na boca da boneca; quando os saquinhos acabam, novos saquinhos podem ser adquiridos mediante retribuição financeira, evidentemente (não são baratos). Assim, três condutas são estimuladas precocemente no imaginário da criança: 1) consumo de alimentos muito processados, de preparo fácil e de consumo rápido, conduta bem adequada a uma parte significativa da indústria alimentícia, 2)  geração e descarte rápido de resíduos do consumo, introduzindo, de forma sutil e bem cedo, uma cultura do descarte rápido; 3) consumismo, através prática repetitiva de abastecer-se dos produtos toda vez que eles acabam.
As façanhas da boneca não param por aí. Após a ingestão da papinha, ela é eliminada por um orifício que imita o anus e, assim, suja a fralda. A criança tira a fralda suja e a descarta, limpa a boneca e coloca uma fralda limpa. As fraldas também se acabam e novas necessitam ser adquiridas. Os estímulos ao descarte, produção de lixo, e ao consumismo repetem-se toda vez que a criança brinca com a boneca.
Aqui eu deixo uma pergunta aos educadores e aos psicólogos: um brinquedo tão realista não exerceria um papel inibidor da criatividade da criança, no sentido de que ela pode usar menos a imaginação quando brinca? Deixo a resposta desta questão a esses profissionais e me firmo na questão que já considero grave: a indústria de brinquedos tem contribuído para o desenvolvimento de consumidores compulsivos.
Todavia, gostaria de me lembrar dos meus tempos de menino, quando não havia esta abundância de oferta de brinquedos, principalmente do tipo Baby Alive, que se fazem acompanhar de vários complementos. Eles eram mais simples e, além disso, lembro-me de que fabricávamos os nossos próprios brinquedos, como os carrinhos de rolimã, as pernas de pau, as pipas, entre outros. Também me recordo que as brincadeiras eram na sua maioria coletivas e aconteciam nas ruas, nos campinhos, nos parques etc. Eram muito diferentes dos joguinhos dos videogames que têm contribuído para o desenvolvimento de um sedentarismo infanto-juvenil.
Não, pretendo com o que escrevi, demonizar o tempo presente e tecer loas aos tempos idos, mas apenas chamar a atenção dos consumidores para os mecanismos que o mercado usa para nos apanhar, para nos enredar nas teias do consumo ostensivo e, em grande escala, supérfluo. Às vezes, somos confrontados com o nosso consumismo e nos assustamos. Um exemplo: quando mudamos de residência e começamos a encaixotar os nossos pertences, nos defrontamos com muitos objetos que pouco ou até nunca utilizamos. Não precisamos esperar as mudanças de residências, pois elas demoram para ocorrer, podemos começar agora, observando a compulsão pelo consumo no nosso dia-a-dia.
Para concluir este artigo sugiro que nos lembremos dos três erres propostos pela gestão de resíduos: reduzir, reusar e reciclar. Todo mundo já conhece. Acrescento outro erre: repensar. Há que se repensar o consumo, pois ele assumiu um caráter patológico, trata-se de uma doença social, que está poluindo o planeta, devorando os seus recursos naturais e alienando as pessoas, que chegam a colocá-lo como objetivo de vida, passando a viver para consumir, quando deveriam apenas consumir para viver. Repensemos!


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Sistema Cantareira continua secando, apesar das chuvas. Há o que fazer?

Zildo Gallo
Hoje, 12 de janeiro de 2015, recebi a informação de que o volume de água do Cantareira caiu na sexta-feira (09/01) de 6,8% para 6,7%. Estamos no período chuvoso, mas ainda tem chovido menos que nos outros anos.
Há que se preparar para o pior. Enquanto as obras de engenharia não acontecem, a ordem do dia é racionamento (eufemisticamente, podemos denominar racionalização do uso), não dá para escamotear nem dá para ficar lamentando.
Em 19/11/2014 o Jornal GGN trazia a matéria assinada por Arnaldo Pagano que, resumidamente, dizia o seguinte: Em plena crise de abastecimento de água em São Paulo, a Sabesp deve fechar 2014 com lucro perto de R$ 1,9 bilhão. Apenas no segundo trimestre, o lucro líquido da companhia chegou a R$ 302,4 milhões. A crise hídrica é inegável, mas a forma como a empresa vem fazendo a gestão de seus negócios é questionável (http://jornalggn.com.br/noticia/em-plena-crise-sabesp-deve-lucrar-r-19-bilhao).
Não devemos questionar a necessidade de a SABESP ser uma empresa saudável do ponto de vista financeiro, ela deve ser. O que devemos questionar, então? Devemos lembrar, sempre lembrar, o fato de que a água não pode ser tratada como uma mera mercadoria. Antes disso, ela é um bem essencial à vida. Neste sentido, trata-se, antes de tudo, de um bem público e assim deve ser considerada pela empresa estatal e pelo Governo do Estado de São Paulo, no caso o seu sócio majoritário.
O retardamento dos investimentos necessários alimentou os lucros e, por conseguinte, os dividendos distribuídos pela empresa. Alguém duvida disso? Há como duvidar disso? Trata-se de uma visão de caráter mercantil e, tratar um bem essencial de forma exclusivamente mercantil é um sério problema ético, pois significa dar um tratamento utilitarista em benefício de poucos, no caso os acionistas da SABESP, em detrimento da imensa maioria dos usuários da água.
Há que se resgatar o caráter da SABESP: uma empresa pública cujo produto é um bem público essencial e cuja missão é garantir a segurança hídrica a muitas cidades do Estado de São Paulo. Ela é uma prestadora de serviços; não são quaisquer serviços, são serviços essenciais: fornecer água potável e tratar dos efluentes domésticos, garantindo, a sanidade dos corpos d'água do Estado. O seu lucro inquestionável deve derivar deste servir e não da procrastinação do seu dever.

Esta crise hídrica talvez sirva para relembrar que a água é um bem essencial à vida, assim como o ar e os alimentos, que é um bem público e que deve ter o seu uso garantido a todos, da forma o mais racional possível, independente do poder de compra de cada membro da população. Isto significa que não se pode abrir mão do planejamento (curto, médio e longo prazos) na gestão dos recursos hídricos. Um bem essencial não pode ser deixado à lógica de mercado, que se movimenta no curto prazo, muitas vezes no curtíssimo prazo, no sentido do ganho imediato.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Escola de antigamente: é possível ter saudade?

Zildo Gallo


Começava o ano de 1968. Eu me matriculava no curso ginasial do Instituto de Educação Estadual Presidente Kennedy (IEEPK), após ter concluído o curso primário no Centro Educacional SESI 101 em Americana. Americana era, ainda é, um polo importante da indústria têxtil nacional. Naquele tempo, para entrar no ginásio após a conclusão do quarto ano primário, era necessário prestar um exame de admissão, uma espécie de vestibular. Nem todos prestavam, muitos não prestavam. Lembro-me que da minha turma poucos o fizeram. A maioria parou ali e como era de costume, talvez mais por necessidade, iniciavam alguma forma de trabalho, algum aprendizado profissional, e quando chegavam aos quatorze anos de idade poderiam ter, com orgulho, o seu primeiro registro na carteira profissional. Começava assim um afunilamento, um afunilamento muito precoce, produzido pelas condições sociais.
O destino de cada um já se traçava muito cedo. Lembro-me de ouvir muitas vezes, da boca de várias pessoas: "para virar tear (ser tecelão) não precisa ser doutor". Eles até que tinham razão, pois virar os teares mecânicos da época, destino de muitos, exigia um aprendizado mínimo. Dessa maneira, ir além do quarto ano não era para todos. Lembro-me do pai de um garoto falando ao meu pai, no dia da formatura, que seu filho precisava ajudá-lo no trabalho, não me lembro o tipo de trabalho, talvez de pedreiro. Era assim, começava-se cedo na lide pela sobrevivência. Embora fosse tão pobre quanto aquele garoto, eu queria ter o privilégio de ir além do quarto ano, então prestei o exame de admissão e passei, nem todos os que prestavam passavam. O letramento era um privilégio que começava bem cedo.
O ginásio era muito diferente do primário. No primário tínhamos um único professor ou professora e no ginásio tínhamos um para cada matéria, mas acostumávamos muito rápido. Como eu tinha estudado no SESI, no primário eu não tive problemas com material escolar, pois os cadernos e livros eram ofertados gratuitamente pela instituição a todos os alunos, independente da sua condição social. No ginásio não havia essa gratuidade. O que poderiam fazer os estudantes que não podiam comprar os materiais, como no meu caso?
Nesse caso, havia a caridade, uma coisa chamada "Caixa", que recebia contribuições diversas e, com elas, fornecia materiais escolares e uniformes aos alunos carentes, após uma análise socioeconômica feita por funcionários da escola. Não eram muitos alunos os "da Caixa", pois a maioria dos muito pobres não prestava o exame de admissão. Lembro-me que não era muito agradável ser da Caixa, éramos crianças... Tínhamos que nos contentar com os cadernos tipo brochura, que denunciavam a nossa situação, não havia outro jeito, enquanto os mais aquinhoados exibiam os seus cadernos aramados do tipo multidisciplinas com suas capas duras e estampadas. Os cadernos já nos diferenciavam.
No meu primeiro ano de ginásio teve um fato que nos diferenciou ainda mais. O tênis indicado para a educação física deveria ter a cor branca, mas os responsáveis pela Caixa só conseguiram tênis azuis. Assim, num mar de calçados brancos apareciam alguns azuis. Eram os "da Caixa". Isso marcou tanto que cheguei a traçar um paralelo do tênis azul com a Estrela de Davi costurada nas roupas dos judeus na Alemanha nazista. Era um carimbo: POBRE.
As classes eram bem heterogêneas. Existiam alunos muito ricos, alunos de classe média, de classe média baixa e os "da Caixa". Entretanto, de uma coisa não se podia reclamar, da qualidade do ensino. Que pena que não era para a maioria. O sistema era bom, todavia excludente. Os "da Caixa" desejavam e eu, como um deles, também desejava completar quatorze anos de idade, arranjar um emprego com carteira assinada, se possível, e migrar para o período noturno. Só estudavam à noite os alunos que trabalhavam durante o dia. Para mim isso se deu nos meus quinze anos. Foi uma libertação: estava numa classe onde as diferenças sociais eram pequenas e podia comprar meu material escolar e meu tênis. A biblioteca da escola era muito boa e eu a usava muito, mas já podia comprar livros, isso era o máximo.
A qualidade de ensino era muito boa e a escola era muito exigente. Quando um aluno era reprovado duas vezes seguidas, ele era jubilado, o que não era nenhum júbilo, na verdade ele era expulso e não podia mais estudar numa escola pública. Os pais que tinham condições financeiras matriculavam os repetentes nas escolas PPP (papai pagou passou), os que não tinham deixavam os seus filhos fora da escola mesmo e pronto.
Tive muita sorte com meu primeiro emprego e me mudei para o ginasial do noturno no IEEPK. Naquela época havia uma injustiça absurda, os menores de idade recebiam meio salário mínimo, a lei permitia, e faziam o trabalho de um adulto, era o vergonhoso "salário de menor". Eu comecei recebendo um "salário de maior", fato raro naqueles anos. As livrarias e as bancas de revistas ganharam muito com isso. Tive mais sorte ainda por não iniciar a minha trajetória profissional num chão de fábrica; as tecelagens eram extremamente insalubres naqueles tempos. Comecei a trabalhar no administrativo de uma empresa têxtil e isso ajudou nos meus estudos. Naquela época, a lide diária dentro de uma tecelagem era muito cansativa e acabava desestimulando os operários a estudarem no noturno, poucos tecelões o faziam.
Pior que ser pobre no Kennedy, era ser pobre e negro. Havia muito preconceito racial entre os alunos. Vários professores alertavam sobre a questão, mas isso apenas mascarava a realidade. A escola podia pouco frente aos preconceitos aprendidos nos recônditos dos lares. Lembro-me que eram poucos negros, poucos mesmo. Na minha classe, no período diurno, havia um, o Custódio, éramos amigos. Ele acabou abandonando o ginásio, não resistiu, muitos não resistiam. Muitos anos depois eu o reencontrei num bairro periférico da cidade, enquanto exercia a minha militância de esquerda no auge da minha juventude. Também havia uma menina negra, lembro-me que era um pouco gordinha, ela não era da minha classe, não sei o seu nome, pois a conhecíamos como "Branca de Neve", apelido maldosamente dado pelas meninas e meninos brancos, que eram a imensa maioria. Americana tinha uma população negra de bom tamanho, mas, pelo que eu observava, poucos estudavam. Não sei como ela conseguiu concluir os estudos, mas conseguiu, uma heroína...
Hoje, do alto dos meus 59 anos, olhando lá para os idos dos anos sessenta e início dos setenta do século passado, consigo observar que muitas coisas mudaram. Ouço muito falarem que naqueles tempos a qualidade de ensino era bem melhor e não discordo, mas retruco: era para poucos. Pensando no ensino básico hoje, vejo como mudanças positivas a ampliação do ensino fundamental para oito anos, o fornecimento de livro didático, a alimentação escolar instituída, entre outras melhorias. O que se tem para lamentar: 1) o aparelho de estado (União, estados e municípios) não cumpre o seu papel de garantir educação de qualidade nas escolas públicas; 2) isso estimula o avanço do ensino privado para poucos, aumentando o apartheid social; 3) os professores eram melhor remunerados naquela época e, por conta disso, mais preparados. Para mim a coisa é muito simples: o Estado tem que fornecer uma educação pública de boa qualidade e aqueles que desejarem uma diferenciação ou uma educação com direção mais específica, como a de caráter religioso, por exemplo, que coloquem seus filhos nas escolas privadas. O que não pode haver é a exclusão, o apartheid, por diferenças no nível de ensino, só isso, bem simples.
Concluindo: sempre é possível ter saudade, a saudade é inerente ao ser humano, embora seja uma palavra da língua portuguesa de difícil tradução; excetuando o ensino primário, que era para todos, o restante era bem restrito e aí a origem social exercia o seu papel, mas a qualidade de ensino era muito boa, não restam dúvidas, e muitas amizades aconteceram nessa trajetória e do que mais nos lembramos com carinho é das relações, das boas relações, somos seres que se relacionam, estou aprendendo sobre isto.

PS. Com este artigo pretendo iniciar uma série para comparar um pouco a vida nos anos sessenta, setenta e até um pouco dos oitenta com os dias de hoje, no sentido de relembrar para uns e de informar para outros. O mundo e o Brasil mudaram muito e continuam mudando e, assim, acho interessante e até mesmo produtivo escrever a respeito. O mote da minha escrita será a minha trajetória. Rever-me-ei e reverei os tempos idos.


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Mais sobre a água: usos múltiplos, escassez e cobrança pelo uso

Zildo Gallo


A água apresenta várias possibilidades de uso. Além de ser um re­curso vital, serve ao aproveitamento hidrelétrico, à navegação, ao abastecimento das cidades e indús­trias, das quais recebe efluentes domésticos e industriais etc. E, quando um curso de água se presta a diversos usos, podem surgir conflitos, pois existem rivalidades no uso de recur­sos escassos. Com frequência o crescimento das populações urbanas compete e conflita com as atividades produtivas em relação ao uso da água. A Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH) manifestou-se sobre a questão, em 13 de novembro de 1987, através da Carta de Salvador:
A água, pelo importante papel que desempenhou no processo de desen­vol­vi­mento econômico e social, é um bem econômico de expressivo valor, su­jeito a con­flitos entre seus usuários potenciais.
Assim, o País deve valorizar as oportunidades de aproveitamento de re­cur­sos hídricos para múltiplas finalidades – abastecimento urbano, abasteci­mento indus­trial, controle ambiental, irrigação, geração de ener­gia elé­trica, navegação, pisci­cultura, recreação e outras – analisando seus empre­endimentos em contextos de desenvolvimento regional inte­grado, e contem­plando vários objetivos, principal­mente de natureza eco­nômica, social e ambiental.
Na primeira metade do século XX, o Código de Águas, de 1934, já tinha enfocado a questão dos usos múlti­plos, quando dispôs, nos artigos 37 e 38, que o uso das águas públicas deveria realizar-se sem prejuízo da navegação, desde que se destinasse ao comércio. No Artigo 143, ele dispôs os interesses a serem considerados nos aproveitamentos de ener­gia, que era seu principal foco: a) da alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas; b) da navega­ção; c) da irrigação; d) da proteção contra inundações; e) da conservação e livre circulação de peixe; f) do escoamento e rejei­ção das águas.
Sem nunca desconsiderar a importância das leis que regem a matéria, no estudo dos usos múltiplos, deve-se sempre levar em consideração as particularida­des das bacias hidrográficas. Não dá para adotar uma hierarquia genérica para o uso das águas, pois cada aquífero tem características próprias. Devem ser conside­rados os aspectos hidrológicos, geográficos, políticos e econômicos. Esta é uma das razões da adoção da bacia hidrográfica como unidade físico-territorial de gestão das águas, com a efetiva participação das comunidades locais.
A questão da disponibilidade de água, para algumas bacias do Estado de São Paulo, por exemplo, nos anos mais recentes, tem se colocado de forma osten­siva. Além da bacia do Alto Tietê, a do Piracicaba, do Capivari, do Jundiaí, e da Baixada Santista enfrentam este tipo de problema. A intensa industrialização que se fez acompanhar por um processo de urbanização não menos vigoroso é a causa desse fenômeno.
Exemplificando: a Região Me­tro­poli­tana de São Paulo apesar de ser uma região com chuva abundante (a precipitação média na bacia do Alto Tietê é de cerca de 1300 mm), a área da bacia de captação dessa precipitação é pequena e as bacias em toda a volta também são pequenas, portanto, há uma es­cassez relativa pronun­ciada, que é agravada pelo enorme contingente populacional. Poucas ci­dades do mesmo porte enfrentam o desafios vivenciados por São Paulo em relação aos recursos hídricos.
Todavia, esse problema de escassez, é uma visão de hoje. Por certo não foi a visão de São Paulo nos tempos de Anchieta e Nóbrega e nem mesmo até o início do século XX. Isso tem a ver com o tamanho que São Paulo acabou alcançando. Hoje, a Grande São Paulo, com seus 39 municípios, tem cerca de 20 milhões de habitantes, abrigando num território pequeno (8.047 Km2) mais ou menos 10% da população nacional, e tem um PIB (Produto Interno Bruto) de cerca de 600 bilhões de reais. É muita gente e muita atividade econômica para a bacia do Alto Tietê; nessas condições, a água deixa de ser abundante e, na lin­guagem dos eco­nomistas, por sua relativa escassez, passa a ser chamada de re­curso hídrico. Como tal passa a ser considerada como um bem econômico e um objeto de preo­cupa­ção da economia, buscando-se assegurar, assim, que seu uso se dê da forma mais racional possível.
Contudo, no Brasil, um país de cultura urbana recente, a água encontra-se associada forte­mente à ideia de abundância. O conceito água grátis encontra-se profundamente enraizado na cultura do povo brasileiro. As baixas tarifas cobradas pelos serviços públicos dos municípios que, muitas vezes, mal cobrem os custos de captação, tratamento, distribuição da água e manuten­ção dos respectivos serviços, acabam encorajando um grande desperdício e, por consequência, um desprezo pela conservação e prote­ção dos recursos hídricos.
Tendo em vista a intensificação dos usos, principalmente dos consun­ti­vos (irri­gação, abastecimento urbano e industrial), que, em larga medida, não retor­nam para os corpos d’água, e da diluição de efluentes domésticos e industriais não tratados, que tem tor­nado cada vez mais escassa a existência de água de boa quali­dade para consumo hu­mano, a sua proteção faz-se cada vez mais necessária. É neste sentido que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos se colocou a partir da constituição de 1988 e vem sendo, aos poucos, implantada no território nacional; trata-se de uma forma de dar alguma racionalidade ao uso dos recursos hídricos, evitando desperdícios.
A cobrança pelo uso das águas é um instituto novo no mundo e novíssimo no Brasil. Entretanto, o fundamento legal para a cobrança pelo seu uso remonta ao Código Civil de 1916, quando se estabeleceu a utilização dos bens públicos de uso comum podia ser gra­tuita ou retribuída. No mesmo sentido, o Código de Águas de 1934 estabeleceu que o uso comum das águas pode ser gratuito o retribuído. Poste­riormente, a Lei 6.938 de 1981 incluiu a possibilidade de imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pelo uso de recursos ambientais com fins econômicos. Finalmente, em 1997, através da Lei 9.433 ficou definida a cobrança como um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos. A Lei 9.984/2000, que criou a Agên­cia Nacional de Águas (ANA), atribuiu a ela a competência da cobrança pelo uso das águas de domínio da União.
A Carta Europeia da Água, proclamada pelo Conselho da Europa em Es­trasburgo, França, em maio de 1968, em seu artigo 10, considerou que “a água é um patrimônio co­mum, cujo valor deve ser reconhecido por todos” e que “cada um tem o dever de econo­mizá-la e utilizá-la com cuidado”. A Declaração de Dublin, em janeiro de 1992, estabele­ceu no seu princípio número quatro que os recursos hídricos de um país são um bem de valor. A Agenda 21, que resultou da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambi­ente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, também reco­mendou a cobrança pelo uso dos recursos hídricos.
Para o Estado de São Paulo, a sua Constituição em vigor estabelece, no Ar­tigo 211, a cobrança pela utilização dos recursos hídricos, e a Lei 7.663/91, no Artigo 3o, inciso III, considera o “recurso hídrico como um bem público, de valor econômico, cuja utilização deve ser cobrada, observados os aspectos de quanti­dade, qualidade e as peculiaridades das bacias hidrográficas”. A Lei estabe­lece que, na sua regulamentação, com relação à cobrança pelo uso ou derivação, deverão ser obedecidos os critérios que seguem: a classe de uso preponderante em que for enquadrado o corpo de água onde se localiza o uso ou derivação, a disponi­bilidade hídrica local, o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas, a vazão captada em seu regime de variação, o consumo efetivo e a finalidade a que se destina. Para a cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, con­forme a mesma lei, deverão ser respeitados os seguintes critérios: a classe de uso em que for enquadrado o corpo d’água receptor, o grau de regularização assegu­rado por obras hidráu­licas, a carga lançada e seu regime de variação, ponderando-se, dentre outros, os parâ­metros orgânicos e físico-químicos dos efluentes e a natu­reza da atividade responsável pelos mesmos.
A cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, baseada no princí­pio poluidor-pagador, é um dispositivo que possui muitas deficiências. Contudo, goza de grande popularidade, derivada da conjunção de vários fatores: ele faz apelo à noção de justiça, recorre às regras do mercado e não a uma burocracia especializada, pro­metendo uma solução ótima e contribuindo com o mito da “racionalidade econômica”. Um problema que se coloca é como avaliar o custo da poluição. Também parece perigoso tentar legiti­mar atentados ao ambiente que comprometem o funcionamento dos ciclos ecológicos dos quais dependem a repro­dução dos recursos renováveis; se tais atentados forem de caráter irreversível, o dano não é passível de cálculo. Contudo, o exposto acima não inviabiliza de forma definitiva a utilização do princípio poluidor-pagador. Ele pode ser usado no sentido de forçar a implantação de sistemas eficientes de tratamento de esgotos. A experiência francesa na gestão de bacias hi­drográficas, que utiliza o princípio, tem mostrado a possibilidade da sua utilização.
Referência

GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu, SP: Ottoni Editora, 2007.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

2015: um convite à moderação

Zildo Gallo

Findas as comemorações da passagem de ano, regadas em larga escala com bebidas alcoólicas e, em muitos casos, com drogas dos mais variados tipos, não esquecendo também da imensa orgia gastronômica, iniciamos 2015. Como todo fim de ano, como já tem sido há muito tempo, tratou-se de um ritual de passagem marcado pelos prazeres imediatos dos sentidos. Tudo bem, já passou... Não sejamos falsos moralistas, mas o resto do ano não precisa ser assim.
Para o bem da Terra e da humanidade, faz-se mais que necessária alguma moderação. Trata-se de uma austeridade necessária, já que o mundo ao nosso redor nos chama o tempo todo para que nos entreguemos ao "império dos sentidos". A indústria da propaganda insta-nos a que consumamos e ela aponta a forma e a intensidade do consumir.
Então, é preciso muita atenção, pois o chamado do imediatismo prazeroso é muito forte e movimenta volumes estratosféricos de recursos econômicos e naturais do nosso planeta. Além disso, mergulhar no mundo do consumo exagerado, supérfluo e ostentatório apenas serve para nos manter na superfície, impedindo que ganhemos profundidade, que enxerguemos além do mundo material/sensorial que nos rodeia. Trata-se de uma prisão sem grades, onde vivenciamos uma sensação de liberdade, mas onde, de fato, não somos verdadeiramente livres. Quanto mais temos condições econômicas de consumir, mais nos sentimos livres, pois passamos, a partir do avanço da "sociedade de consumo", a ver a liberdade, esse bem imaterial necessário ao desenvolvimento do espírito, como mera capacidade de consumir. Trata-se de uma redução, um apequenamento da condição humana, da condição para que nos tornemos verdadeiramente humanos.
A orgia consumista continuará a fazer os seus estragos ambientais, sociais e espirituais enquanto não percebermos o quanto estamos perdidos neste labirinto hedonista, onde o que conta é o prazer imediato de cada dia. A saída do labirinto começa pela tomada de consciência do engano vivido e, a partir daí, pela prática da austeridade. Consumir o necessário, o que é saudável, o que não prejudica a natureza, não desperdiçar e, principalmente, não se deixar levar pela máquina da propaganda, este é o caminho da austeridade. Pode parecer moralismo, mas não é. A mãe Terra já está sentindo as dores do nosso desregramento e ela já está reagindo. O nosso planeta é um sistema vivo, trata-se de uma imensa rede de relações e precisamos enxergar o nosso papel dentro desta rede, desta imensa "teia da vida". Enquanto seres humanos, do ponto de vista biológico, estamos no topo da cadeia alimentar e, por enquanto, agimos como predadores. Precisamos dar um salto qualitativo (trata-se de um salto de caráter marcadamente espiritual), migrando da condição de bárbaros predadores para a condição de conscientes cuidadores.
Podemos começar com fazeres bem simples: 1) preparar o próprio alimento, diminuindo o consumo de alimentos muito processados; 2) adquirir produtos da agricultura orgânica, criando uma demanda firme para sustentar a pequena agricultura; 3) usar os recursos hídricos com parcimônia; 4) quando comer fora, procurar restaurantes que trabalhem com alimentos saudáveis, principalmente os que utilizam produtos da agroecologia; 5) comprar mercadorias pela necessidade real e não pelo simples impulso de consumir; 6) buscar formas de lazer saudáveis, como ir à praia, ao campo, ao cinema, ao teatro ou como viajar para conhecer lugares novos, culturas diferentes etc. etc., 7) diminuir significativamente o consumo de carne, com destaque para a bovina, que contribui para aumentar o desmatamento no Brasil; 8) buscar práticas espirituais desinteressadas, que efetivamente elevem o nosso espírito e nos conectem (religuem) com a vida e com todo o Universo. Existem outros, mas estes já ajudariam muito. Bem... não são fazeres tão simples assim, mas são mais que necessários, são urgentes.
FELIZ ANO NOVO!

A QUE VIM