Cuidado é o tema principal do livro Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão
pela Terra, de Leonardo Boff, onde ele resgata a fábula-mito do Cuidado ou
Fábula de Higino. Caio Júlio Higino, em latim Gaius
Julius Higinus, foi
um escritor da Roma Antiga (primeiro século a.C.). Sua principal obra chama-se Fábulas
ou Genealogias. Trata-se da recompilação de 300 lendas, histórias e mitos
da tradição greco-latina. Eis a fábula:
Certa vez, depois
de atravessar um rio, o deus Cuidado viu uma porção de barro. Então, teve uma inspiração.
Tomou um pouco de barro e deu-lhe uma forma. Enquanto contemplava a sua obra,
apareceu Júpiter, o senhor de todos os deuses. Cuidado pediu-lhe que soprasse
espírito nele, o que Júpiter fez com satisfação. Todavia, quando Cuidado quis
dar um nome a sua criatura, Júpiter o
proibiu, exigindo que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu a deusa Terra. Ela
quis também dar o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, que era material
do seu próprio corpo, provocando com isso uma discussão generalizada. Como não
chegavam a um acordo, chamaram Saturno para que funcionasse como árbitro da
questão. Procurando ser justo, Saturno tomou a sua decisão: "Você,
Júpiter, deu-lhe o espírito e, por isso, recebê-lo-á de volta quando a criatura
morrer. Você, Terra, deu-lhe o corpo e recebê-lo-á de volta quando da sua morte.
Cuidado, como você foi quem moldou tal criatura, ela deverá ficar sob seus
cuidados enquanto viver. E, já que vocês não chegam a um acordo sobre o seu
nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra
fértil”.
O ser humano
nasceu, assim como todos os seres, do corpo da Terra. Conforme a lenda, nasceu
de uma terra fértil, do húmus da terra, que foi trabalhada com esmero e muito
cuidado pelo deus Cuidado. A palavra humilde também deriva de húmus e, desta
forma, ser humilde significaria reconhecer-se filho da Terra, da sua
fertilidade, assim como todos as demais criaturas que também são filhas da
mesma mãe, que também se formaram a partir do mesmo corpo, do mesmo barro.
A partir da
fábula-mito do cuidado, podemos elaborar uma linha de raciocínio que pode
levar-nos a entender o propósito maior da existência, o do cuidado necessário
com o ser humano, que deve refletir-se no cuidado com a própria Terra, que é ao
mesmo tempo nossa mãe e nossa casa, cuja maternidade e abrigo dividimos com todos
os seres vivos, nossos irmãos. Reconhecer-se filho da mesma mãe significa
compreender e respeitar a teia da vida que foi sendo construída lentamente, durante milhões e
milhões de anos no nosso planeta.
O mito do
cuidado é mais que pertinente nos dias de hoje, pois faz com que nos
relembremos da nossa íntima ligação com a Terra, o nosso planeta, instando-nos
a que humildemente nos religuemos a ela, pois, neste momento, ela também
necessita dos nossos cuidados. Trata-se, metaforicamente, da necessidade de uma
volta para casa. Ele também pode servir como uma metáfora de caráter educativo,
pois serve para despertar naquele que lê uma reflexão sobre a necessidade de
cuidar dos seres humanos que sofrem e também de transformar o cuidado recebido
pelo deus Cuidado, sob as ordens de Saturno, no cuidado com todos os outros seres
viventes, com a própria Terra, por extensão.
O cuidado surge quando a situação de existir de alguém tem importância
para outro alguém também existente, trata-se de uma relação, de um conjunto de
relações. Alguém sai de si mesmo e conecta-se a outros, que, reciprocamente,
também fazem o mesmo movimento. Por outro lado, a palavra cuidado significa
preocupação, inquietação, sentido de responsabilidade, pois aquele que cuida sente-se
envolvido e afetivamente ligado ao outro. Então, o cuidado é algo que se liga
àquilo que é a essência primitiva, a essência primeira, do ser humano, que não
é a razão, mas o afeto. O afeto antecede a razão; ele se encontra naquela situação
de proteção que cada ser humano recebe nos primeiros dias da sua vida, naqueles
momentos em que está totalmente dependente e indefeso em relação ao mundo que o
cerca, naquele momento em que está totalmente dependente e indefeso em relação
ao outro.
O cuidado é o modo de ser do humano. Sem cuidado ele deixa de ser
humano e ele é cuidado e se cuida em grupo, sendo dessa maneira um ser social.
Caso não receba cuidados, desde o nascimento até a morte, ele se desestrutura,
definha e morre. Ele recebe cuidados para aprender a cuidar. Ele deve aprender
a cuidar de si mesmo depois da sua infância, que é bem longa se comparada com a
de outros animais, para em seguida aprender a cuidar dos outros humanos e dos
demais seres vivos do planeta, pois tudo que vive precisa de cuidados para
viver. Esta é a regra do jogo neste mundo
Conforme a fábula de Higino, o cuidado é fundamental para a existência e,
neste sentido, antecede o espírito soprado por Júpiter e o corpo esculpido por
Cuidado com o húmus fornecido pela deusa Terra. O Cuidado é a essência divina,
é um a priori, ele pré-existe. É aquele Eros, o puro amor, aquele deus grego
que já existia na noite dos tempos, antes mesmo da criação do universo.
Sem cuidados a vida e os humanos não existiriam. Então, há que se ter
cuidado com tudo. É preciso ter compaixão com todos os seres que sofrem,
humanos e não humanos, obedecendo mais o
coração, seguindo mais a lógica da cordialidade do que a da competição e do uso
utilitário das coisas. Há que se ter cuidado com a Terra e com a sociedade, particularmente
com os excluídos, com todos, enfim.
Neste momento, em desespero, tanto a Terra quanto a humanidade clamam
por cuidados essenciais. A degradação ambiental, a pobreza de milhões de
pessoas e as violências de todos os tipos precisam ser enfrentadas. Enfim, a
grande crise pela qual passa o planeta Terra, só pode ser enfrentada com mais
cuidado, o que resulta num clamor por um novo ordenamento ético para a
humanidade e para o nosso planeta.
Contudo, as crises
criam novas oportunidades e, neste momento, elas possibilitam mergulhos na
instância onde, segundo Leonardo Boff (2003), os valores são continuamente
formados. Segundo ele, a nova ética planetária “deve brotar da base última da existência humana”. Ela não está na
razão, como deseja o Ocidente. A razão não é a essência da existência e por
isso não pode explicar e nem abranger tudo. A essência do existir está em “algo mais elementar e ancestral: a
afetividade”. Então, contrariando Descartes, que é o pilar do saber
ocidental, a experiência basilar não é o seu “penso, logo existo”, mas, segundo Boff, é o “sinto, logo existo”.
Assim, para Boff
(2003), na raiz de todas as coisas não está a razão (logos), mas a paixão (pathos).
“Pela paixão captamos o valor das coisas
(...) Só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos movemos
e somos”. Neste ponto, Boff observa o surgimento de uma dramática dialética
entre razão e paixão, já que ele em absoluto não menospreza o papel da razão:
Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez, a tirania da
ordem e a ética utilitária. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio
das pulsões e a ética hedonista, do puro gozo das coisas. Mas, se vigorar a
justa medida, e a paixão se servir da razão para um autodesenvolvimento
regrado, então emergem as duas forças que sustentam uma ética promissora: a
ternura e o vigor.
Leonardo Boff (2003) considera
que dessas premissas pode surgir uma ética que será capaz de incluir toda a
humanidade. Essa nova ética deverá estruturar-se em torno de valores
fundamentais ligados à vida, ao seu cuidado, ao fazer humano, às relações
cooperativas e à cultura da não violência e da paz. “É um ethos que ama, que cuida,
se responsabiliza, se solidariza e se compadece”.
Referências
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca os fundamentos.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
______. Saber cuidar:
ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes 1999.
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