Na
década de 90 do século XX, aconteceu um deslocamento da questão ambiental para
a esfera do consumo, indo além e superando as críticas ao sistema industrial e
às populações pobres do "Terceiro Mundo". Não se tratava de ignorar
impactos da indústria e da pobreza sobre o meio ambiente, mas de reconhecer o
papel do excesso, do consumo abusivo, desnecessário, na questão ambiental,
destacando os seus resultados negativos, como a descomunal produção de resíduos
e a extração exponencial de matérias primas da natureza, por exemplo. A
princípio, as discussões limitaram-se à ideia do "consumo verde", que
apenas enfatizava mudanças técnicas nos produtos e serviços e mudanças comportamentais
dos consumidores individuais. Mas tal abordagem, ainda que necessária, é
insuficiente e, assim, logo depois, apareceram propostas que enfatizavam ações
coletivas e políticas públicas. Trata-se da estratégia do “consumo
sustentável”, que busca se diferenciar da anterior por privilegiar políticas
públicas e ações individuais e coletivas voltadas para a sustentabilidade socioambiental,
onde aparece uma pretensão política e transformadora mais definida.
Depois
de muitos anos pensando de forma individualista e utilitarista, o mundo, com destaque
para a sua porção ocidental, precisa voltar-se ao coletivo, pois as saídas para
a grande crise socioambiental na qual o planeta está mergulhado não se resolve
a partir do consumidor com suas propaladas autonomia e racionalidade, como
acreditam os economistas liberais. Inclusive porque acreditar em autonomia do
consumidor em tempos de marketing e propaganda é no mínimo ingenuidade e,
talvez, indo além da ingenuidade, má-fé. O mundo precisa de saídas coletivas e
o pensamento liberal tem seus limites para pensar além do indivíduo e da sua
hipotética liberdade para decidir.
Em
termos internacionais o que acabou acontecendo é que se priorizou, no campo do
discurso sobre consumo sustentável, uma redução relativa no consumo de
determinadas matérias primas e energia, como o petróleo, por exemplo, e não
uma mudança nos processos e padrões de produção, distribuição e consumo, deixando
de dar a atenção necessária aos conflitos gerados pela desigualdade no acesso
aos recursos da natureza, tão importante para os países não desenvolvidos,
localizados majoritariamente no hemisfério sul. Mudar os padrões e não os
níveis de consumo passou a ser o objetivo visto como politicamente adequado nos
países desenvolvidos do hemisfério norte. Consome-se a mesma quantidade de
combustível, por exemplo, substituindo os derivados de petróleo pelo biocombustível,
que é renovável. Todavia, o biocombustível vem da agricultura e a sua produção
ocupa terras antes destinadas à produção de alimentos. Os impactos dessa
mudança foram devidamente analisados? Foram de alguma forma avaliados? Talvez esta
não tenha sido a melhor saída. Há que se verificar.
Dá
para se falar de consumo sustentável considerando apenas o indivíduo, tomando-o
a partir da sua consciência individual? Resposta: até que dá, mas tem limites,
porque, na maioria dos casos, pelo menos nos mais complexos, as saídas não são
individuais mas coletivas. Por exemplo, quando se aborda a questão energética,
da mobilidade urbana, do tratamento dos resíduos produzidos pelo consumo, da
segurança alimentar, da segurança hídrica, da saúde, da educação, da moradia, entre
outras, a melhor forma de abordá-las é a partir do coletivo. Na verdade, pouca
coisa pode ser abordada única e exclusivamente do ponto de vista individual.
Então,
já que o mais correto é a abordagem coletiva, por conta de envolver tanto a
sociedade quanto o indivíduo, em vez de se focar no consumo sustentável, melhor
seria focar na ideia de sociedade sustentável, pois o consumo é mais um componente
das muitas atividades sociais, junto com muitas outras também importantes.
Melhor
exemplificar para deixar mais clara a exposição. A Região Metropolitana de São
Paulo, onde habita grande parte da população do Estado de São Paulo, tem
problemas sérios de mobilidade urbana e de poluição do ar. Existe uma carência
de transporte coletivo (rodoviário e ferroviário) e um excesso de veículos
automotores que transportam no máximo cinco pessoas (transporte individual). A
região enfrenta congestionamentos diários gigantescos e isso, além de estressar
os motoristas e provocar perdas econômicas individuais e coletivas consideráveis,
também contribui com a poluição do ar e com o aquecimento global (efeito
estufa). Não tem saída uma individual. Mesmo que a frota de veículos individuais
adotasse exclusivamente o etanol como combustível que, por sua renovabilidade, não
contribui com o efeito estufa, restaria ainda insolúvel a questão do congestionamento.
A saída que resolve as duas questões é o investimento em transporte coletivo, é
uma saída coletiva. Vários outros exemplos poderiam ser dados, tomando outros
aspectos da vida em sociedade, mas este já é suficiente.
Quando se fala de sociedade
sustentável não tem como não estabelecer comparações. Hoje o planeta Terra
divide-se em dois blocos de países em relação à economia. No hemisfério norte
localiza-se a maior parte dos países ricos e no hemisfério sul a maior parte dos
mais pobres. Então, é conveniente trazer para o debate as considerações de
Clóvis Cavalcanti (2003) sobre a maior economia do hemisfério norte e do
planeta, os Estados Unidos, onde ele a compara com as sociedades indígenas da
Amazônia no hemisfério sul ( ver quadro abaixo). Em termos de sustentabilidade
ambiental são dois paradigmas extremos e, por conta disto, servem como balizas
do que poderia ser o caminho do meio de uma sociedade sustentável.
Comparação de dois paradigmas diferentes de sustentabilidade
Termos de
comparação
|
Índios da
Amazônia
|
Estados
Unidos
|
Visão de
mundo
|
Reverência
pela natureza; humildade
|
Homem senhor
e possibilidade da natureza; arrogância
|
Formação de
capital
|
Quase
nenhuma; habilitações e ferramentas toscas
|
Cumulativa;
necessidade de volumes sempre crescentes de investimento (para manter taxas
constantes)
|
Fontes de
energia
|
Renováveis
somente
|
Combustíveis
fósseis (fontes não renováveis); menor proporção de renováveis
|
Formas de
conhecimento
|
Base na
experiência (transmissão oral pelos antigos e pelos pajés)
|
Ciência
moderna (transmissão sob forma escrita – bibliotecas, meio eletrônico)
|
Fonte de
propulsão
|
Recursos
naturais
|
Progresso
técnico
|
Uso de
matéria e energia
|
Frugalidade;
parcimônia termodinâmica
|
Forte
degradação entrópica; esbanjamento, desperdício
|
Principais
objetivos econômicos
|
Satisfação
das necessidades básicas; bem-estar
comunitário
|
Crescimento
econômico ilimitado; lucro imediato
|
Tendência de
longo prazo
|
Altamente
sustentável
|
Insustentável
|
Fonte: CAVALCANTI, 2003.
O
primeiro paradigma corresponde, na visão do autor, a uma situação de parcimônia
e de reverência pela natureza. O segundo conduz, conforme o autor, a um extremo
de estresse ambiental e “não contém atributos intrínsecos de respeito
pela natureza, é o que se percebe nos padrões de consumo de recursos dos
Estados Unidos” (CAVALCANTI, 2003, p. 155).
O
estilo de vida dos índios da Amazônia baseia-se em fontes renováveis de
energia, pois os combustíveis fósseis não são usados e a lenha é utilizada de
forma sustentável. Não ocorre destruição ambiental visível entre os índios.
Além de usarem os recursos da natureza com parcimônia, os índios a tratam com
reverência e humildade, sentem-se parte dela. No outro extremo, impera a posse
e o domínio dos seus recursos para serem transformados em mercadorias, que
serão vendidas para consumidores, que garantirão, com seu consumo crescente e contínuo,
a continuidade do crescimento econômico.
Entre
os índios da Amazônia a finalidade única no seu relacionamento com a natureza é
a satisfação das necessidades coletivas e individuais; nos EUA, a satisfação das
necessidades é um objetivo secundário, o principal é alimentar o processo de
acumulação de capital. No segundo caso a natureza é tratada com arrogância e
utilitarismo; ela é vista essencialmente como um estoque de matérias-primas e a
maioria do seus habitantes vive, enquanto maioria urbana, totalmente afastada
da natureza, ela tornou-se estranha aos moradores urbanos.
Se
tem algo de que Cavalcanti (2003, p. 165) tem clareza é que o desenvolvimento
econômico nos moldes dos EUA não é mais uma opção aberta, com amplas
possibilidades para todo o planeta. A aceitação da ideia de desenvolvimento
sustentável indica que foi fixado um limite superior para o progresso material,
embora ele ainda não esteja muito palpável. Esta aceitação coloca um novo
desafio para a humanidade, conforme aponta Cavalcanti (2003, p. 166):
Nosso desafio é como reduzir
substancialmente ou eliminar a miséria, sem desrespeitar os limites da
capacidade de sustentação da Terra. Podemos querer empurrar o crescimento além
desses limites. Mas devemos ter consciência do fato de que, mais cedo ou mais
tarde, teremos que confrontar a nêmesis da natureza.
A deusa Nêmese, venerada por
gregos e romanos, representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos
os que ousassem ultrapassar a própria medida (chamada de hybris – autoafirmação arrogante) eram imediatamente fulminados por
Nêmese. O aquecimento global é um dos sinais de que a própria medida pode estar
sendo ultrapassada e, aparentemente, a reação da deusa parece estar começando.
O
dever dos estudiosos, dos homens e mulheres da ciência, daqui adiante, é
explicar como o desenvolvimento poderá tornar-se sustentável. Uma ideia
amplamente aceita hoje em dia é a de que o tipo de crescimento econômico que o
mundo construiu nos últimos duzentos anos, em particular depois da Segunda
Guerra Mundial, não mais se sustenta. Não se propõe aqui, é claro, uma volta à
sociedade tribal. Trata-se, antes de tudo, de propor uma ruptura com aquilo que
Celso Furtado (1974), chamou de mito do
desenvolvimento, que tem a ver com a possibilidade de todos os pobres do
mundo desfrutarem das mesmas formas de vida dos povos mais ricos do planeta,
com seu consumo ostentatório e, em larga escala, supérfluo. Maria Lúcia Azevedo
Leonardi (2003, pp. 204-205) esclarece um pouco mais a questão levantada por
Cavalcanti:
Em segundo lugar, graves
problemas ambientais – talvez os piores – como o efeito estufa, o buraco na
camada de ozônio, o esgotamento dos recursos naturais, a acumulação do lixo
tóxico são provocados pelas sociedades ricas e desenvolvidas, não pelas
pobres. Se o modelo de desenvolvimento do Primeiro Mundo, arduamente
perseguido pelo Terceiro Mundo, conseguir ser atingido, com níveis de produção
e consumo equivalentes, aí sim a situação ambiental se agravará, mesmo se a
população parar de crescer. Atualmente, menos de um quarto da população
mundial consome 80% dos bens e mercadorias produzidos pelo homem (Martine,
1993: 25). A tragédia do desenvolvimento explica a “agonia planetária”
(conceito criado por Morin & Kern, 1993: 73). Ou, como já foi colocado há
tempo, o desenvolvimento necessita criar o subdesenvolvimento. É seu
componente antitético.
Referências
CAVALCANTI,
Clóvis (org.). Desenvolvimento e
natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez
Editora; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
______.
Sustentabilidade da economia: paradigmas alternativos de realização econômica.
In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento
e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez
Editora; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
MARTINE, George (org.). População meio ambiente e desenvolvimento.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
LEONARDI, Maria Lúcia Azevedo. A sociedade global e a questão
ambiental. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento
e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez
Editora; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
FURTADO, Celso. O mito do
desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974.
MORIN, Edgar &
KERN, Anne Brigitte. Terre-Patrie. Paris:
Seuil, 1993.
Enquanto que a acumulação de capital e o lucro for o foco da humanidade é impossível atingir a plena defesa do meio ambiente sustentável. Parabéns pelo texto professor Zildo.. Abraço
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