Falar do homem enquanto
um ser humano parece redundante, mas não é, pois o homo sapiens, enquanto
espécie animal, enquanto ser vivente, é um projeto em construção, um projeto
humanizante em permanente elaboração e reelaboração. Ele está posto como um vir
a ser, um devir, um transformar-se, um tornar-se novo, portanto, ele ainda não
é, ele será. Ele sempre está carecendo de se humanizar. Então, humanizar trata-se
de um processo e, de forma bem simples, humanizar significa tornar humano. Indo
um pouco mais além: para tornar humano é preciso despertar valores humanos.
O ser humano está
em permanente elaboração. A palavra elaboração vem de labor, que é trabalho em
latim. Daí extraímos três possíveis situações: 1) o homem é um ser que
trabalha; 2) que constrói pelo trabalho e; 3) que se constrói pelo seu trabalho.
Todas as três possibilidades são reais e, ao mesmo tempo, complementares. Desta
forma, é mais que lícito afirmar que o fazer humano é que constrói o ser humano
enquanto tal. Simplificando, se possível: o homem é um ser que transforma
(modifica) a natureza externa, que enxerga a sua própria natureza (que se vê na
sua natureza interna) e que transforma a sua própria natureza. Resumindo: à
medida que ele transforma o mundo ele também se transforma, dá outra forma ao
seu mundo interior. Lá pelos idos do século XIX, Friedrich Engels falava do
sobre "o papel do trabalho na
transformação do macaco em homem", suspeito que ele tinha razão.
Por sua vez, a
palavra trabalho vem da palavra latina tripalium,
que era um instrumento feito de três paus aguçados,
algumas vezes munidos de pontas de ferro, com o qual os agricultores batiam o
trigo para separá-lo da espiga. A maioria dos dicionários, contudo, registra o tripálio
apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente, ou, talvez,
se tornado depois. O tripálio (do latim tri:
três e palus: pau, literalmente,
"três paus") é um instrumento romano de tortura, um tripé formado por
três estacas cravadas no chão na forma de uma
pirâmide no qual eram supliciados os escravos. Daí derivou-se o verbo do
latim vulgar tripaliare que
significava, a princípio, torturar alguém no tripálio. É comumente aceito entre
os linguistas que esses termos deram origem, no português, às palavras
"trabalho" e "trabalhar", ainda que no seu sentido original
o "trabalhador" fosse um carrasco, e não aquele que labora, que
elabora e que se elabora, como entendemos hoje em dia.
Parece
estranho a palavra trabalho derivar de um instrumento de tortura. Entretanto,
se olharmos para a história do trabalho, veremos que faz todo sentido. As
palavras não se formam do mero acaso. Então, olhemos para a história do
trabalho.
Na
pré-história, do paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo sapiens)
tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil.
O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma
convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura
sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais
pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e
nem a dominação das mulheres pelos homens. Mas essa situação não dura, pois nos
primórdios das primeiras cidades ela se modifica, com o surgimento do trabalho
escravo, do patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação
dos papéis femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos
do território dominados pelos patriarcas. Sugiro aqui a leitura de uma obra
clássica: A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels (1884).
A
civilização nasce com vários aspectos sombrios e uma dessas sombras é a
apropriação do trabalho alheio de forma arbitrária e violenta, através do
trabalho escravo. O escravo é um indivíduo destituído da sua liberdade e que
vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e
negociável, como uma mercadoria. Na verdade, stricto sensu, é uma mercadoria como qualquer outra mercadoria.
No
correr dos séculos, a exploração do trabalho sofreu várias mudanças, mas ainda
permanecem situações muito obscuras, como se verá na sequencia. Na idade média
europeia, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho servil,
principalmente na agropecuária. Os trabalhadores já não eram uma mercadoria
negociável, mas não podiam sair das terras de seus senhores e estavam sujeitos
a normas draconianas impostas por esses senhores feudais, que tudo podiam, já
que eram a lei, a polícia e o juiz. Além disso, grande parte da produção
camponesa era consumida pela aristocracia agrária e pelos seus soldados,
deixando os trabalhadores da terra em constante situação de pobreza e, muitas
vezes, de fome.
Todavia,
nem toda relação de trabalho era opressiva na idade média europeia, pois havia
um tipo de trabalho livre, que era o trabalho artesanal. O artesão era dono da
sua oficina e das suas ferramentas e vendia a sua produção que, naquela época,
era feita, na sua maioria, sob encomenda. Alfaiates, pintores, escultores, marceneiros,
construtores, entre outros, exerciam o seu trabalho de forma livre. Tratava-se
de um trabalho criativo, com começo, meio e fim e, por conta disso, prazeroso
e, ainda por cima, melhor remunerado que o trabalho camponês.
A
expansão da manufatura na Europa com maior ênfase a partir do século XV, já
criando um princípio de estrutura fabril, começou a diminuir a importância do
trabalho artesanal, aumentando o assalariamento na produção de mercadorias
manufaturadas. Abrindo parêntesis: é importante lembrar aqui que a partir do
século XV, o trabalho escravo foi recriado nas colônias Europeias, com destaque
para as Américas. Entretanto, a destruição da produção artesanal ocorrerá definitivamente
com a Primeira Revolução Industrial, que tem seu início no final do século XVIII
na Inglaterra. A partir daí, as oficinas dos artesãos serão fechadas e eles se
tornarão assalariados. Nessa época também ocorrerá um êxodo rural de grande
monta e levas e mais levas de camponeses serão lançados no mercado de trabalho
da indústria nascente e crescente. Trata-se de um período de extrema exploração
do trabalhador: salários baixos, jornadas de trabalho extensas, trabalho
infantil e feminino abusivos, situações de grande insalubridade nos locais de
trabalho, entre outras formas de degradação e o que é mais importante, o
trabalho deixou de ser criativo, tornando-se repetitivo e monótono. A melhor
definição para essa forma de trabalho é "trabalho alienado".
Uma
forma de remediar os efeitos nefastos do trabalho alienado, levantada já no
século XIX por pensadores sociais como Karl Marx e Paul Lafargue, e que
adquiriu um certo consenso no meio dos cientistas sociais que vieram a seguir,
é a redução da jornada de trabalho. Com isso as pessoas poderiam fazer coisas
criativas, inteligentes e agradáveis no seu tempo livre. E, de fato, do século
XIX até os dias de hoje, as jornadas de trabalho diminuíram muito, com destaque
para os países europeus. Recentemente, o sociólogo Domenico De Masi retomou a
discussão sobre a importância do tempo livre no seu livro "O ócio criativo".
Com o
correr da história e com as lutas de resistência dos operários, que se
organizaram em sindicatos e partidos políticos, a exploração foi diminuindo e
as condições de trabalho foram paulatinamente melhoradas. Os salários subiram,
as jornadas foram reduzidas e muitos benefícios foram introduzidos nas relações
entre capital e trabalho, tais como férias remuneradas, aposentadoria, entre
outras, melhorando as condições de vida da maioria da população, que é
assalariada, e diminuindo a pobreza nos países industrializados.
À
Primeira Revolução Industrial seguiu a Segunda Revolução, na segunda metade do
século XIX, que completou a industrialização na Europa e se estendeu aos
Estados Unidos e Japão. No século XX a industrialização se estende a países como
Brasil, Argentina, entre outros, trata-se de um desenvolvimento tardio. O que é
interessante de se notar é que, tanto na Segunda Revolução quanto na industrialização
tardia, muitos benefícios serão incorporados, tornando o trabalho menos árduo
que na Primeira Revolução, são avanços efetivos, há que se considerar.
Entretanto,
no que diz respeito à criatividade no
trabalho, a situação pouco mudou, pois o trabalho industrial continuou
repetitivo e monótono, por conta do excessivo parcelamento das atividades nas
linhas de montagem (lembram-se do Charlie Chaplin em Tempos Modernos?). Todavia, em contrapartida, a moderna divisão do
trabalho produz um resultado benéfico à sociedade, que é o barateamento das mercadorias,
que foi preconizado por Adam Smith, o pai da economia política, na sua magnífica
obra, Riqueza das Nações.
Parecia
que tudo estava caminhando bem, mas no final do século XX, principalmente por
conta do crescimento da indústria na Ásia, com destaque para a China,
Singapura, Vietnã etc., que se dá de forma precária (jornadas excessivas,
baixos salários, condições insalubres etc.), a situação do trabalho e dos
trabalhadores sofreu um revés em todo mundo, incluindo aí a Europa e os Estados
Unidos. A concorrência internacional fez aumentar o desemprego fora dos países
asiáticos e as condições de trabalho também pioraram, principalmente por conta
das terceirizações, chegando a registrar, inclusive, muitas ocorrências de
trabalho similar ao escravo, como no caso da indústria de roupas feitas no
Estado de São Paulo. Em muitos casos a situação retrocedeu ao que era nos
séculos XVIII e XIX e até pioraram, como no caso do trabalho escravo.
Do
exposto até aqui surgem algumas questões: 1) será que a exploração do homem
pelo homem e das nações por outras nações é o único modus operandi possível para a civilização?; 2) será que a produção
de bens de consumo precisa dar-se de forma tão alienada, alijando em demasia os
trabalhadores dos processos criativos, para que tais bens sejam acessíveis à
maioria das pessoas?; 3) será que a necessidade permanente de acúmulo de
riquezas pelos países, o desejado e buscado "desenvolvimento
econômico" tem que se dar de forma tão competitiva e predatória, onde tudo
vale, num tipo de guerra permanente entre todos?
Laudas
e mais laudas já foram escritas sobre estas questões e muitas outras ainda serão
produzidas e não serão em demasia, pois parece até possível que toda essa
enorme e desenfreada competição dê cabo da civilização. A crise ambiental, com
destaque para o aquecimento global, já está dando o seu alerta. Não são apenas
as pessoas que são passíveis de exploração, a natureza também tem sido
explorada além da sua capacidade de suporte. Então, completo aqui a primeira
questão acima levantada: será que a exploração abusiva da natureza também faz
parte do modus operandi da
civilização?
É mais
que evidente que parar ou diminuir o ritmo dessa grande máquina (civilização),
que foi posta em movimento com o surgimento das primeiras cidades, é um trabalho hercúleo - olha o trabalho aí de novo! Quiçá seja possível
redirecionar a máquina da civilização positivamente, sem que ela se desmonte,
jogando a humanidade num estado de barbárie. Será possível fazê-lo? Esta é uma
questão a ser respondida com a devida urgência. Todavia, não se trata de uma
tarefa para um herói em particular, mas de uma árdua tarefa para toda
humanidade, o que a torna muito difícil, entretanto imprescindível.
Por
onde começar? A resposta a esta questão é difícil e, talvez, por conta disso, a
melhor forma de iniciar seja retrabalhando o significado do trabalho. Outros
valores também necessitam de ressignificação, mas como o trabalho é um elemento
fundante da humanidade, talvez seja o mais importante, é de bom alvitre começar
por ele. Durante a maior parte da história da civilização o trabalho esteve
associado ao sofrimento, como já foi visto, e, por conta disso, foi
estigmatizado. Há que se resgatar a dignidade do trabalho e, para tanto,
precisamos compreendê-lo na sua profundidade, atingindo a sua essência.
Comecemos
por lembrar que o homem é um ser social e que, neste sentido, o trabalho é um elemento
essencial à socialização. A forma como cada ser humano trabalha determina a sua
forma de ser e o seu conjunto de relações. Ele começa a trabalhar para cuidar
de si e dos membros do seu grupo, com destaque para as crianças, que necessitam
de proteção plena e não têm como produzir a sua própria existência. Então,
desde o seu início, o trabalho surge também como um serviço prestado ao outro. Estou
falando aqui do trabalho essencialmente humano, que significa utilizar-se da
natureza e modificá-la a seu serviço, criando com isso um processo que não se
repete apenas, mas que aumenta a sua dimensão e que se aperfeiçoa, criando isso
que conhecemos como cultura.
A
humanidade precisa fazer mea culpa e
ressignificar positivamente o trabalho. Ela precisa abolir todas as formas de
aviltamento das relações trabalhistas existentes e elas ainda são muitas. O
trabalho meramente repetitivo precisa diminuir e quando isso não for de todo
possível, deverá ter seus efeitos negativos minimizados, a redução das jornadas
pode ajudar neste sentido, liberando tempo para que as pessoas exerçam a sua
criatividade de alguma forma.
Cabe
reforçar aqui a ideia de que trabalhar significa uma relação de cuidado (ver
meu artigo Saber cuidar: a essência do
humano, neste blog) e que o cuidado determina o modo de ser humano. Os
humanos são cuidados quando crianças, passam a cuidar quando ficam adultos e
recebem cuidados na sua velhice. Tudo isso implica em afetividade e o afeto,
neste sentido, é a essência mais profunda do ser humano. O trabalho escravo,
ainda sobrevivente, e as demais degradações laborais, como a exploração das
crianças e das mulheres, entre outras, vão no sentido contrário à essência
humana.
Começar
pela ressignificação do trabalho no imaginário coletivo da humanidade talvez
seja o primeiro passo a ser dado. A partir daí, outros passos serão dados,
criando um movimento sustentado positivamente, resgatando os valores humanos, que sempre se formam a
partir do cuidado e do afeto. Depois disso, o trabalho ressignificado
(re)assumirá o seu real papel na história da humanidade que é o de serviço,
ajudando-a a seguir na sua trajetória humanizante. Trabalho e serviço passarão
a ser, de fato, sinônimos. Só mais uma última consideração: a urgência é necessária.
Referências
DE MASI, Domenico. O
ócio criativo. São Paulo: Editora Sextante, 2000.
ENGELS. Friedrich. O
papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Rio de Janeiro:
Global Editora, 1990.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da
propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro Editora, 2006.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre a sua natureza e suas causas.
São Paulo: Nova Cultural, 1985.