sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Para pensar: a crônica de uma tragédia anunciada

Zildo Gallo



A partir da década de 1970, muitos alertas foram dados sobre a situação de risco que paira sobre o planeta Terra. Uma catástrofe de grande porte está se aproximando e, como a sua causa não vem do espaço ou dos subterrâneos do planeta, talvez haja tempo ainda para evitá-la ou, melhor, minimizá-la, melhor ainda, diminuir a sua dimensão. Trata-se de um risco construído pela humanidade na sua trajetória, aos poucos, mais precisamente há cerca de dois séculos. Caso olhemos para o tempo geológico, que é contado em milhões de anos, observamos o seu processo curtíssimo de formação. Os humanos e, indiretamente, todos os demais seres – os inocentes pagam pelos culpados – começam a colher as consequências de um modelo de economia que começou na Primeira Revolução Industrial, no final do século XVIII, com a invenção da máquina a vapor e com o uso intenso do carvão mineral.
Estamos falando de algo que está na pauta dos mais variados jornais e das revistas, das escolas, dos congressos científicos, dos governos, etc.: o aquecimento global (efeito estufa). Este fenômeno tem muitas causas: o desflorestamento, a emissão de metano nos lixões, a emissão de metano pela bovinocultura, mas a principal delas é o uso do combustível fóssil (carvão e petróleo), com suas emissões de gás carbônico na atmosfera. No rol de emissores de gás carbônico destacam-se a indústria e o transporte individual (automóveis). O fenômeno é bem simples: os gases do efeito estufa retém o calor na atmosfera, não permitindo que ele se dissipe rumo ao espaço.
A partir da Primeira Revolução Industrial, a economia entrou num ritmo de crescimento nunca visto até então. Os séculos XIX e XX presenciaram outra revolução econômica, essa de maior monta, a Segunda Revolução Industrial. Mais particularmente, todo o século XX presenciou a expansão do uso de uma nova fonte de energia, o Petróleo, principal agente do aquecimento global, mas as coisas não pararam por aí. A expansão da produção de mercadorias e o consequente crescimento econômico, que as revoluções industriais propiciaram, tornaram-se necessidades e objetivos de todas as nações, que os assimilaram como a tradução do que viria a ser o desenvolvimento econômico. Então, país não industrializado passou a significar país subdesenvolvido, trata-se de uma simplificação.
O desenvolvimento tecnológico que tem acompanhado as revoluções industriais possibilitou a produção de uma infinidade nunca antes imaginada de produtos, daquilo que os economistas chamam de bens de consumo. Então, nasceu o que hoje chamamos de sociedade de consumo e, com ela, o seu principal ator social, o consumidor com poder de compra, o cidadão consumidor; chegamos ao ponto de pensarmos o simples acesso ao consumo como se fosse o acesso definitivo à cidadania, o que se trata de um reducionismo imbecilizante, no mínimo. Por muito tempo pensamos que o sonho do consumo crescente, ilimitado, uma cornucópia sem limites vomitando produtos, seria possível e acessível a todos no planeta. Bastava apenas que cada país cumprisse o seu papel e entrasse no caminho da ordem e do progresso, da ordem capitalista e do progresso material
Hoje, na primeira metade do século XXI, fica cada vez mais claro que esse sonho é de difícil concretização. Usando a linguagem dos ecologistas: a Terra, com a sua capacidade de suporte, seus limites, não sustenta um crescimento econômico infinito, pois ela é finita e funciona através de ciclos – estações do ano, ciclo hidrológico, nascimento-morte-nascimento etc. – e não, apenas, através de acúmulos, acúmulos e mais acúmulos. As consequências do modelo adotado já estão visíveis: grande acumulação e concentração de riquezas e desacumulação do meio ambiente.
Como desacumulação ambiental podemos observar: a água doce disponível para consumo humano e dos demais seres vivos está cada vez mais contaminada; a temperatura do planeta está aumentando e as suas consequências já se fazem sentir no derretimento das geleiras, nas secas e nas inundações, por exemplo; as terras agrícolas sofrem processos erosivos de grande monta e estão contaminadas por defensivos agrícolas; a biodiversidade da Terra está diminuindo dia-a-dia e, talvez, até desapareçam espécies animais e vegetais sem que a humanidade jamais as tenha conhecido; etc.
Além de todas as mazelas rapidamente expostas acima, há uma questão moral, porque não dizer ética: a quem serviu todo esse progresso? Serviu a toda a humanidade? Caso observemos bem de perto, nem precisa de tanta proximidade, percebemos que todo esse avanço da produção de bens materiais beneficiou uma parte menor da humanidade, deixando a África, muitos países asiáticos e a maioria dos países da América Latina de fora. Os países ricos “beneficiam-se” com o consumo desenfreado enquanto os países pobres veem o esgotamento dos seus recursos naturais e recebem, por tabela, os efeitos do aquecimento global, resultante da queima excessiva de combustíveis fósseis nos primeiros, em grande parte extraídos nos segundos.
Explicando o beneficiam-se entre aspas do parágrafo acima: nem sempre consumir muito significa bem-estar, isto depende em larga medida do que e do quanto se consome; consumir alimentos com excesso de defensivos agrícolas, excessivamente processados (industrializados), com gorduras trans, muito açúcar e muito sal, por exemplo, muitas vezes ingeridos nos fast foods espalhados pelos mais diversos centros urbanos do planeta, não é a melhor forma de se alimentar, com certeza. Os casos crescentes de obesidade mórbida em muitos países estão aí para confirmar esta assertiva. Os gastos absurdamente altos que os municípios precisam destinar ao tratamento dos resíduos sólidos (lixo) também estão entre as muitas contrapartidas negativas do consumo exagerado.
Esta breve explanação não tem maiores pretensões do que a de lançar sementes de preocupação nos corações e mentes dos leitores, apenas isto. Nunca na história da humanidade foi tão oportuno e necessário debruçar-se atentamente sobre o destino dos homens e de todos os seres do planeta como agora. É uma oportunidade ímpar, onde somos chamados a nos revermos e a revisitarmos as nossas relações com os nossos iguais e com todos os seres a nossa volta. É o ponto de partida para podermos modificar os nossos comportamentos econômicos, sociais e ecológicos à luz de uma nova ética, que deverá alicerçar-se no cuidado, no cuidado conosco, com nossos semelhantes, com a natureza, enfim, com toda a Terra, que é, ao mesmo tempo, nossa mãe e nossa morada.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O feminino, o meio ambiente e a espiritualidade: uma relação indissociável

Zildo Gallo


O nosso planeta vive hoje uma grande crise, que afeta não apenas a comunidade humana, mas toda a vida existente. O que dela desponta como elemento principal é que se trata de um fenômeno produzido única e exclusivamente pela própria humanidade, que está ligada a sua trajetória, principalmente a partir do advento da civilização, nos primórdios do surgimento das cidades, depois do neolítico, a cerca de 6000 anos atrás.
Três aspectos destacam-se na crise contemporânea: 1) declínio do patriarcado, 2) declínio da era do combustível fóssil e, 3) insustentabilidade do paradigma da conquista. Trata-se de uma crise da civilização, onde a humanidade tem, como nunca teve em outros momentos da história, a oportunidade de rever-se a partir de toda a sua trajetória ou de mergulhar definitivamente numa barbárie de gigantesca dimensão.
Sobre o declínio do patriarcado. Ainda vivemos num mundo onde predomina o domínio masculino, apesar dos muitos avanços nos tempos recentes, em particular nos países do ocidente. Principalmente no oriente próximo, as mudanças ocorrem em câmera lenta ou, de fato, em muitos lugares, não ocorrem. Mas, até mesmo nos países orientais, as tensões apresentam-se à luz do dia, o que já é um bom sinal.
O patriarcado surge nos primórdios das cidades com o advento da propriedade privada, do casamento monogâmico e do trabalho escravo. Vale a pena consultar uma obra clássica sobre o tema: A origem da família, da propriedade privada e do estado, de Friedrich Engels (1884). Contudo, na Idade do Bronze, até cerca de 1200 a.C., ainda sobreviviam muitos aspectos das sociedades matriarcais. A partir daí a situação das mulheres vai sofrendo pioras significativas. No ocidente, por exemplo, muitos historiadores consideram que a Idade Média tenha sido um tempo essencialmente masculino, onde elas viviam destituídas de direitos e, inclusive, sofriam perseguições constantes, basta  que nos lembremos da Santa Inquisição.
Sobre o paradigma da conquista. Para podermos compreender a evolução deste paradigma, temos que voltar no tempo, aos primórdios da humanidade e, ali, observarmos a extrema fragilidade dos homens em relação às outras espécies, como os grandes felinos, por exemplo. Para sobreviver naquele ambiente hostil, os humanos precisaram arrojar-se, tornar-se fortes e agressivos. A batalha pela sobrevivência acontecia todos os dias. Os homens tornaram-se hábeis caçadores e desenvolveram armas úteis tanto para a caça como para a defesa. Tiveram que aprender a conviver com os fenômenos naturais agressivos e sobrepujá-los. Tornaram-se guerreiros em relação às outras espécies e em relação à sua própria espécie, defendendo o seu território. Mesmo após a introdução da agricultura e da pecuária eles continuaram na defensiva, guerreando; a guerra tornou-se a forma de ser da civilização que despontou depois do neolítico e, ainda hoje, permanece como um aspecto importante da atualidade.
Neste artigo vou tratar introdutoriamente da questão feminina e da necessidade de ruptura com o paradigma da conquista, pois entendo, inclusive, que a necessidade de mudança paradigmática passa com maior ênfase pela questão de gênero e que esta questão é, em última instância, espiritual, pois trata-se de uma mudança profunda na forma de ser dos indivíduos e da sociedade. Sobre a necessidade de superação da era do combustível fóssil, eu falarei em um outro momento, apesar de não considerá-la, de forma alguma, uma questão separada das outras duas, pois, de fato, não é.
Para facilitar a compreensão da minha exposição do tema, lanço mão da filosofia chinesa. Os chineses enxergam o universo como uma relação, uma relação de duas forças antípodas e, ao mesmo tempo, complementares. Basta observarmos a natureza, esta é a sabedoria chinesa: para que exista o frio tem que haver o quente, para o molhado há o seco, para o mole tem o duro, para o claro tem o escuro, para o triste tem o alegre, para o bom tem o ruim, etc. De forma bem simples, eles dividem tudo e todos os fenômenos em dois grandes blocos: YIN e YANG (veja o quadro abaixo).

UNIVERSO BIPOLAR
YIN
YANG
FEMININO
MASCULINO
CONTRÁTIL
EXPANSIVO
CONSERVACIONISTA
EXIGENTE
RECEPTIVO
AGRESSIVO
COOPERATIVO
COMPETITIVO
INTUITIVO
RACIONAL
SINTÉTICO
ANALÍTICO

Pelo quadro vemos que Yin diz respeito ao feminino e a todos os seus atributos e que, portanto, Yang diz respeito ao masculino e seus atributos. Na sua conturbada trajetória, com destaque para os tempos pretéritos, a humanidade lançou mão com mais vigor dos atributos masculinos e acabou obliterando os femininos, inclusive com a própria inferiorização da mulher, guardiã das energias Yin. A humanidade tornou-se majoritariamente Yang: agressiva, competitiva, racional, expansionista, etc.

Em última instância, a crise econômica e a crise ambiental, citando apenas as duas mais visíveis, decorrem deste desbalanceamento das duas energias primordiais, com a balança pendendo para o lado Yang, o que reforçou e ainda reforça o paradigma conquista. A sobrevivência da humanidade enquanto tal, depende da transição para um novo paradigma, o paradigma do cuidado. É preciso diminuir a competição e aumentar a cooperação, é preciso diminuir a agressão e aumentar a aceitação e assim por diante. E, o que é de muita importância, neste mundo conduzido pela ciência: é preciso dar vazão às outras formas de percepção da realidade, possibilitadas pela intuição, que é a contraparte feminina da racionalidade masculina. O começo da caminhada para o paradigma do cuidado é o resgate da dignidade feminina, uma tarefa ainda árdua para a humanidade, todavia imprescindível.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

José do Egito, a crise hídrica e a SABESP

Zildo Gallo


A passagem bíblica de José do Egito no antigo testamento ensina-nos algo importante: a importância de armazenar alimentos para o futuro, para atender a épocas de pouca produção ou de perdas por intempéries. Ele interpretou um sonho do faraó da seguinte forma: depois de sete anos de abundância, com grandes safras agrícolas, seguirão sete anos de seca. Com isso, o faraó providenciou o armazenamento de cereais em todo o Egito durante os tempos de abundância, garantindo assim que não houvesse fome nos sete anos seguidos de escassez. É bom lembrar que armazenar alimentos preventivamente tornou-se uma atividade comum a todos os povos, desde a pré-história.
Em relação à água, a humanidade aprendeu a armazená-la há muito tempo também. A construção de reservatórios e cisternas para guardar água tornou-se uma atividade ampla e necessária para enfrentar os períodos de estiagens cíclicas. Os seres humanos tornaram-se armazenadores de víveres e de água, há muito tempo, o que ajudou a garantir a sua sobrevivência e a sua expansão por todo o planeta Terra.
Nos tempos de José, a previsão climática cabia aos videntes, pois a ciência do clima, que produz previsibilidade em relação aos fenômenos naturais, surgirá muito depois, muitos séculos à frente. A meteorologia, nos dias de hoje, tem muita informação acumulada e dispõe de avançada tecnologia para garantir informações cada vez mais seguras para a população e para os governantes.
Hoje, 2014 d.C., mais de 3500 anos depois da passagem de José pelo Egito, o Estado de São Paulo, no Brasil, vive uma grande seca. Esta seca não foi prevista por nenhum vidente, que se saiba, mas foi antevista pela ciência, pelos "magos do clima" com seus equipamentos modernos, que observam a Terra do alto, das alturas celestes.
A empresa responsável pelo Sistema Cantareira que abastece tanto a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) como a Região Metropolitana de Campinas (RMC), as duas mais populacionalmente adensadas do Estado de São Paulo, é a SABESP, uma estatal com ações na Bolsa de Valores. Trata-se de uma instituição moderna e preparada tecnicamente para cuidar dos recursos hídricos e do saneamento, não há dúvidas a respeito. É ela a responsável por estocar água no período chuvoso para garantir o abastecimento na estiagem.
As informações estatísticas sobre as precipitações anuais e sobre as vazões dos rios são antigas e constituem uma série histórica adequada para a consulta com objetivo de planejar o abastecimento presente e futuro da população das duas regiões metropolitanas.  As estatísticas sobre o consumo urbano, agrícola e industrial também formam uma série histórica apta à consulta. Em relação ao consumo, particularmente em relação ao uso urbano, observa-se, ano a ano, um aumento contínuo, que guarda relação com a evolução da população. O crescimento demográfico ainda é uma realidade nas duas regiões.
Outras informações são importantes e uma delas muito importante, trata-se da eficiência do sistema, do índice de perdas de água na rede. A rede de água na cidade de São Paulo, por exemplo, é muito antiga e carece de manutenção permanente, incluindo aí a substituição do encanamento danificado. Outra informação importante é o consumo per capita, que diz respeito aos hábitos de uso, que podem ser mais parcimoniosos ou  mais pródigos. Ao setor público cabe o papel de instruir os usuários sobre o consumo de água.
Em 1995, quando defendi a minha dissertação de mestrado no Instituto de Geociências da UNICAMP, constatei que, já naquela época, os cientistas apontavam para um risco de escassez de água e sugeriam que algumas medidas fossem tomadas: redução das perdas nas redes, construção de novos reservatórios, recuperação da vegetação das nascentes, das margens dos rios e dos topos de morros etc. Em 2000, na defesa do meu doutorado, as mesmas preocupações estavam presentes e já se apontava um aumento do risco. Naquela época, nas estiagens, as vazões a jusante do Cantareira, para a RMC, diminuíam e prejudicavam o abastecimento em várias cidades. Contudo, o atendimento da RMSP ficava garantido com a retirada firme de 30 m3 por segundo. O paulistano, ao contrário do piracicabano, do americanense, citando dois exemplos, vivia uma sensação de abundância. Havia a sensação de uma cornucópia jorrando água sem cessar para os municípios da Grande São Paulo.
Passaram-se os anos e os investimentos apontados acima não ocorreram. Então, chegou a grande estiagem. Emergencialmente, pelo menos, dever-se-ia ter organizado alguma forma de racionamento, mas isso também não aconteceu. Ao contrário, o governo estadual propagou a ideia de que não havia risco ao abastecimento. Tal irresponsabilidade, como já é amplamente sabido, deu-se por motivos meramente eleitoreiros, mas não nos aprofundemos nesta questão, apenas registremos a nossa indignação, já basta...
Uma consideração importante deve ser feita: nunca se deve esquecer que a água é um bem público e, portanto, um direito de todos. E, deste modo, a segurança hídrica é uma tarefa que cabe ao setor público, aos governantes. Todavia, os governantes trataram os recursos hídricos como mera mercadoria, um produto comercializável da SABESP. Assim, a SABESP vendeu toda a sua mercadoria e ganhou muito dinheiro, é óbvio, e, por decisão de seu maior acionista, o governo de São Paulo, distribuiu os lucros (dividendos) entre todos os acionistas, deixando de lado os investimentos apontados como necessários há mais de 20 anos. Trata-se de um erro grave contra a segurança hídrica e agora é muito tarde. As obras necessárias demorarão para serem construídas e seus efeitos serão sentidos só bem mais adiante. Parece que o racionamento veio para ficar por um bom tempo, infelizmente.
Sem nenhuma "ciência" e com muito menos tecnologia, mas com grande espírito público, o faraó do antigo Egito, acreditando nas previsões de um adivinho, de um judeu que interpretava sonhos, garantiu a sobrevivência do seu povo durante os sete anos de seca, estocando os alimentos produzidos nos sete anos de abundância. Com muita "ciência" e com muita tecnologia, mas desprovidos de espírito público e de sabedoria, os governantes do Estado de São Paulo não se precaveram enquanto havia abundância de água, não deram ouvidos aos cientistas e as suas previsões certeiras. Será que eles não acreditam na ciência? Será que eles, enquanto "liberais", ligam-se apenas ao curto prazo, aos ganhos imediatos, deixando o longo prazo à "providência divina"? Não acreditam na necessidade do planejamento? O que será?  O que será?


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A questão do valor sustentável e a empresa do futuro (socialmente engajada)

Zildo Gallo



A criação de “valor sustentável” é um modo de as empresas colocarem as suas prioridades no mundo dos negócios, estimularem inovações e obterem vantagens competitivas. Para apresentarem-se desse jeito no contexto competitivo dos dias de hoje, que se move no sentido de uma “competição saudável”, como visto acima, é necessário que as empresas considerem cuidadosamente as dimensões ambientais e sociais de suas atividades.
No centro da questão acima apontada está uma nova visão sobre a importância do stakeholder (parte interessada). Nessa nova perspectiva, os stakeholders sociais, como as ONGs ambientais e as comunidades locais, são vistos a priori como parceiros potenciais nos negócios e não como adversários. O valor dado ao stakeholder deve tornar-se uma fonte de vantagens competitivas, indo além da mera obrigação moral.
Historicamente, as empresas têm ignorado o valor ao stakeholder como fonte de vantagem competitiva, assumindo uma atitude “introspectiva”, o que, no dia-a-dia, aparece como arrogância. Hoje, a questão da criação de valor requer uma reestruturação de um modo de gestão que deve ir além das questões corriqueiras de acesso ao espaço físico, capital, mão de obra, materiais e tecnologia, conforme as palavras de Laszlo:
“Agora, há uma necessidade de expandir ainda mais o conceito de criação de valor para incluir uma gama mais ampla de stakeholders que contribuam para as competências de criação de riquezas. O conceito de valor sustentável amplia o universo de criação de valor a todos os principais stakeholders, incluindo os sociais, tais como ONGs e ativistas sociais (muitos com blogs que são lidos por um grande número de pessoas) que têm tradicionalmente sido ignorados ou relegados a um segundo plano pela gerência” (LASZLO, 2008, p. 116).

O valor atribuído ao stakeholder cobra dos gestores que pensem de outra perspectiva, “de fora para dentro”, sobre como as suas empresas criam e sustentam vantagens competitivas. O olhar invertido, que enxerga o mundo a partir dos stakeholders, é um novo e poderoso instrumento que permite aos gestores a descoberta de novas oportunidades de negócios. Os gestores que engajam stakeholders e consideram seus problemas podem conseguir antecipar mudanças no ambiente dos negócios. Eles podem reduzir e até eliminar riscos de serem surpreendidos por expectativas socioambientais emergentes. Os lideres corporativos ainda são pouco versados sobre a mensuração e gestão do valor dos stakeholders e, “como os impactos de uma empresa nos stakeholders são, de modo geral, involuntários, ela se defronta com riscos e oportunidades ocultas que os gestores não mais se podem dar ao luxo de ignorar” (LASZLO, 2008, p. 117). Para facilitar a compreensão do processo de incorporação dos stakeholders na geração de valor sustentável é aconselhável que se observe a figura 1, abaixo.



A figura acima que representa a estrutura do valor sustentável coloca os desafios a serem superados no presente pelas organizações, tanto interna quanto externamente, para que, a partir deles, no futuro, elas tornem-se proativas e aprendam a antecipar tendências, desenvolver novas capacidades e a assumir responsabilidades sociais que transcendam a mera filantropia. A sua  contribuição para a diminuição da pobreza não se trata simplesmente de acréscimo de despesas ou de desvio da missão da empresa, como na maioria das vezes ela é encarada; ela pode ser encarada como investimento, já que pode resultar em novas possibilidades de mercado, ainda que de forma indireta, como resultado da somatória das contribuições para a melhoria das condições econômicas de toda a população.
A estrutura do valor sustentável coloca desafios a serem superados no presente (quadrantes inferiores) pelas empresas socialmente engajadas, tanto interna quanto externamente, para que, a partir deles, no futuro (quadrantes superiores), elas tornem-se mais proativos e aprendam cada vez mais a antecipar tendências, desenvolver novas capacidades e a assumir responsabilidades sociais que ultrapassem a mera filantropia que muitas praticam. Isso dará uma nova visibilidade a esse empreendimento hoteleiro.
O ambiente de negócios que se desenha para as empresas no futuro, como indica a Estrutura do Valor Sustentável, sugere que elas devem ser socialmente engajadas e que o seu objetivo não deve ser apenas a maximização dos resultados. O objetivo primeiro é a prestação de um serviço, de um bom serviço. O seu lucro deverá ser o resultado da sua boa prestação de serviço. Trata-se de entrar num novo paradigma. Contudo, na verdade, a prestação de serviços da empresa do futuro vai além da produção de mercadorias e da ofertas de serviços específicos, intrínsecos a sua atividade, pois ela é uma prestadora de serviços à humanidade. O seu caráter humanista é o que diferenciará definitivamente a empresa do futuro da empresa do presente.
Resumidamente, a nova empresa (socialmente engajada), para criar valor sustentável deverá: 1) contemplar sempre a preservação da natureza nas suas atividades; 2) estabelecer novas relações com os trabalhadores, buscando a justa remuneração, preservando a sua saúde e estimulando a sua criatividade; 3) agir com transparência em relação aos atores sociais da região onde está instalada e em relação aos seus clientes; 4) contribuir para introduzir a dimensão solidária, presente no conceito de desenvolvimento sustentável, nas suas relações mercantis.
Em face do exposto, à empresa do futuro, que tenderá ser socialmente engajada, caberá mover-se dentro de um novo espaço competitivo, que precisa ser mais saudável que o atual. Isso poderá resultar em produtos e serviços melhores, diminuindo e, até mesmo, eliminando as externalidades negativas. Repetindo o que já foi dito acima: nessa nova modalidade de empresa, os lucros resultarão do servir com qualidade.
Referências
LASZLO, C. Valor sustentável: como as empresas mais expressivas do mundo estão obtendo bons resultados pelo empenho em iniciativas de cunho social. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2008.
HART, S. Capitalism at the crossroads: the unlimited business opportunities in solving the world’s most difficult problems (Upper Saddle River, NJ: Wharton School Publishing, 2005). 

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Empresa e sustentabilidade: a velha empresa (neoclássica) e a empresa do futuro (socialmente engajada), algumas considerações para discussão.


Zildo Gallo



Grandes mudanças estão ocorrendo no sistema empresarial e essas mudanças cada vez mais apontam para uma nova modalidade de organização: a empresa socialmente engajada. A empresa do futuro deverá ser socialmente engajada e o seu objetivo primordial não será a maximização dos resultados, como indica os cânones neoclássicos. O objetivo principal será a prestação de um serviço, que pode dar-se pela produção e venda de um bem, pela exclusiva prestação de um serviço ou pela combinação de ambos. E o lucro, desaparecerá? De modo algum, o lucro deverá ser a consequência da boa prestação de serviço. Trata-se de inverter a relação que, aos poucos, se estabeleceu a partir da Revolução Industrial, e que expressa num modelo de empresa que pode ser denominado neoclássico (ver quadro 1). Dever-se-á buscar, sim, a produção de bens e serviços baratos, acessíveis a todos, mas ela não poderá acontecer a partir da piora da qualidade e com geração de efeitos socioambientais negativos. O desafio criativo será realizar o melhor com o menor custo possível.
A metodologia da empresa socialmente engajada (ver quadro 2) deverá contemplar a preservação da natureza e, quando não for possível preservá-la adequadamente, ela deverá lançar mão de mecanismos compensatórios ambientalmente eficientes e socialmente aceitos. A empresa do futuro sabe que habita a natureza e que é ela que garante a sua existência. Ela também deverá mudar a relação com os trabalhadores, buscando a “justa remuneração”, preservando a sua saúde, estimulando a sua criatividade e garantindo o seu bem-estar. A comunidade interna satisfeita é mais colaborativa e mais criativa. Também deverá tornar-se transparente em relação à comunidade do seu entorno e em relação aos clientes; ela estabelecerá, com isso, uma relação de confiança que criará uma cumplicidade permanente. Por último, deverá ter uma preocupação central com a qualidade, evitando a destruição precoce (obsolescência programada) do seu produto e atendendo prontamente os seus clientes; com isso, além de preservar os recursos naturais, ela terá os seus clientes como aliados.

Quadro 1. A velha empresa (empresa neoclássica)

Objetivos da empresa neoclássica:

§  Maximização dos resultados (lucro)
§  Minimização dos custos

Metodologia da empresa neoclássica:

1)     Exploração da natureza, evitando ao máximo as compensações;
2)     Exploração da mão de obra através de baixos salários, jornadas de trabalho extensas, atividades extenuantes e repetitivas e benefícios sociais escassos;
3)     Não transparência e pouco relacionamento com o seu entorno e com os seus clientes;
4)     Piora da qualidade para diminuir custos.

Resultados (externalidades) da empresa neoclássica:

1)     Poluição e esgotamento dos recursos naturais;
2)     Insatisfação dos trabalhadores, condições precárias de subsistência, concentração de renda, mercado interno pequeno, doenças laborais, acidentes de trabalho, aposentadoria precoce e insegurança em relação ao futuro;
3)     Ao não se relacionar com a comunidade, a empresa pode tornar-se um corpo estranho à localidade e, até mesmo, aos seus clientes; com isso, ela pode amealhar desconfianças e hostilidades e, ao ver-se com problemas, não encontrará defensores;
4)     Insatisfação do consumidor e produção excessiva de lixo (poluição) por conta do descarte precoce dos produtos.

Fonte: organizado pelo autor

Para que uma organização possa migrar da sua condição de empresa neoclássica para uma condição de empresa do futuro, transformando-se numa instituição com forte conteúdo social, ela precisa, junto com outras instituições e com toda a sociedade, participar da re-significação das palavras competição e concorrência.
A palavra competição, que significa rivalizar com outrem na mesma pretensão, vem da palavra latina competere que, por sua vez forma-se pela junção de cum, partícula que estabelece uma relação de dependência, com a palavra petere, que pode significar procurar, atacar, avançar, pretender etc. Então, a mistura das duas expressões pode significar procurar juntos, atacar juntos, pretender juntos, avançar juntos etc. Existe aí uma dubiedade: a palavra competição poderia significar tanto uma ação conjunta para se atingir um objetivo como uma ação entre rivais para se conseguir a mesma coisa. De qualquer forma, levando-se em consideração tal dubiedade, o termo competição parece pressupor um jogo às claras, desprovido de trapaças, o que garantiria uma concorrência em condições de igualdade no seu ponto de partida.

Quadro 2. A empresa do futuro (socialmente engajada)

Objetivos da empresa socialmente engajada:

§  Prestação de serviços, servir com qualidade
§  Geração de bem-estar social

Metodologia da empresa socialmente engajada:

1)     Preservação da natureza, estabelecendo o máximo de compensações;
2)     Incentivo à mão de obra através de salários dignos, jornadas de trabalho adequadas, trabalho criativo, participação nas decisões e benefícios sociais;
3)     Transparência e bom relacionamento com o seu entorno e com os seus clientes;
4)     Busca a realização da qualidade com os menores custos possíveis.

Resultados (externalidades positivas) da empresa do futuro:

1)     Ambiente saudável e preservação dos recursos naturais;
2)     Satisfação dos trabalhadores, condições dignas de subsistência, repartição de renda, mercado interno grande, trabalhadores saudáveis, diminuição de acidentes de trabalho, trabalho criativo e participativo e segurança em relação ao futuro;
3)     Ao se relacionar positivamente com a comunidade, a empresa torna-se um membro vivo da localidade. Ao se relacionar de forma transparente com os seus clientes, ela amealha confiança e cumplicidade. A nova empresa sempre terá defensores;
4)     Satisfação do consumidor e produção pequena de lixo (poluição) por conta da duração maior dos produtos.

Fonte: organizado pelo autor

A palavra concorrência, por sua vez, pode significar pretensão de mais de uma pessoa à mesma coisa, competição, rivalizar com outrem na oferta de produtos, juntar-se com alguém para uma ação ou fim comum, contribuir, cooperar etc. Nota-se, assim, que o termo concorrência também é dúbio, podendo significar tanto ações cooperativas como ações conflituosas. A palavra concorrência vem do latim concurrere, que é a junção da partícula cum com a palavra currere, que significa correr, andar com velocidade. Então, de forma bastante simplificada, grosso modo, concorrer significaria correr junto ou competir correndo lado a lado. No dia-a-dia o termo concorrência pode ser usado tanto com um significado interativo como opositivo. Destarte, considerando-se esta dubiedade inata, a concorrência também faz pressupor um jogo limpo, garantindo condições de igualdade no seu ponto de partida, a chamada igualdade de oportunidades.
A palavra competição desgastou-se com o passar do tempo e acabou significando a guerra de todos contra todos, visto que ela se nutriu do pensamento dos economistas liberais dos séculos XVIII e XIX, que enxergavam o homem como um animal essencialmente egoísta, que buscava exclusivamente o seu bem-estar, ou que buscava no máximo o bem-estar dos familiares mais próximos. A economia de mercado, a partir daqueles tempos, desconsiderou a dimensão altruísta do ser humano. Então, a solidariedade foi banida do mercado e a competição tornou-se, em larga escala, predatória, tornou-se uma espécie vale tudo. A história do capitalismo confirmou e continua confirmando o dito acima. Não são necessárias maiores explicações, basta acompanhar o noticiário econômico.
Do exposto acima se pode inferir que a empresa também precisa, enquanto instituição humana, contribuir para introduzir a dimensão solidária nas relações mercantis, a dimensão que está cristalinamente presente no conceito de desenvolvimento sustentável, quando ele fala da solidariedade das gerações presentes para com as gerações futuras. Agir solidariamente é não esgotar e destruir os recursos naturais, é não sobre-explorar o trabalho, é estimular o trabalho criativo, buscando diminuir as tarefas repetitivas e estressantes, é ter uma participação pró-ativa em relação à comunidade, é respeitar a sua clientela, agindo com presteza e transparência, é buscar produzir a melhor mercadoria e/ou serviço etc.
Dado o desgaste da palavra competição, que se entranhou na vida, no cotidiano dos seres humanos, seria conveniente substituí-la pela palavra concorrência, que também sofreu os mesmos desgastes, mas que se preservou em alguns aspectos. O ser humano é estimulado, na verdade instado, a competir desde pequeno, começando pelo ambiente escolar, que deve prepará-lo para a competição futura, o grande campeonato de vencedores e perdedores. Mais adiante, ao ingressar no mercado de trabalho, ele precisa tornar-se ainda mais competitivo. As empresas, em particular as grandes empresas, as corporações, são arenas onde são travadas lutas diárias entre todo o seu corpo funcional. O espaço para a solidariedade e a confraternização nessas instituições é bastante reduzido. Resume-se, às vezes, a alguns eventos, como as festas de fim de ano, por exemplo.
A palavra concorrência, por sua vez, poderia ter se desgastado menos em função de também estar associada à economia do setor público. Ela está muito associada à questão da concorrência pública, onde empresas e organizações oferecem serviços e produtos ao setor público (União, estados e municípios). Geralmente, as condições estabelecidas para concorrer, excetuando os inúmeros casos criminosos (fraudes, superfaturamentos etc.), dizem respeito ao melhor produto ou serviço (qualidade), ao melhor preço (vantagens financeiras), ou à combinação dos dois e as regras do jogo têm que ser muito claras. Hoje em dia, cada vez mais, questões ambientais e sociais estão sendo levadas em consideração nas concorrências públicas. Também hoje, de certa forma, como resultado do avanço da democracia, que possibilita uma vigilância permanente do cidadão, o Estado tem sido forçado a se tornar cada vez mais transparente, pelo menos mais transparente que as empresas, que ainda não são vigiadas na mesma proporção, e a sua transparência, caso seja tangível, também pode contaminar positivamente as empresas que se relacionam diretamente com ele.

Em face do exposto, parece que a palavra concorrência ressignificada parece aplicar-se melhor à empresa do futuro, à empresa socialmente engajada. Ela traz a ideia de uma “competição saudável”, que resulta em produtos e serviços melhores, diminuindo e, até mesmo, eliminando aquilo que muitos economistas chamam de “externalidade”, que é tudo aquilo de ruim que ela lança para fora, para o ambiente externo, para a sociedade, quando ela transforma a natureza para produzir mercadorias e/ou serviços. Nessa nova modalidade de empresa, os lucros resultarão do servir com qualidade. Trata-se de uma mudança de paradigma, efetivamente.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

UMA NOVA ÉTICA PARA O PLANETA

Zildo Gallo


A palavra ética vem da palavra grega ethos, que significa morada. Todavia, não se tratava e, também hoje, não deve ser compreendida como a casa material, mas como a casa existencial. A casa existencial significava para os gregos a teia de relações entre o meio físico e os membros da comunidade. Para os dias de hoje, recuperando a concepção grega, a morada não deve ser apenas a casa onde as pessoas habitam, deve ser também a cidade, o país e o planeta Terra, a casa de todos.
A necessidade de se construir uma ética para a Terra é impor­tante e sua relevância para a própria sobrevivência da humanidade é inquestionável, pois a busca desenfreada por riqueza e poder e a luta sangrenta pela partilha das riquezas naturais têm impedido a convivência harmoniosa entre todos os homens e destes com os demais seres. Guerras e destruição ambiental são os resultados mais visíveis da desarmonia instalada. Há que se fundar um novo ethos para se criar uma relação nova entre os homens e destes com todos os demais seres. A nova ética deverá nascer da natu­reza mais profunda do ser humano. A essência do homem está mais no cuidado, na compaixão, do que na razão e na vontade. Há que se resgatar a essên­cia do humano.
O ser humano é um animal que, pela sua natureza, produz cultura. Ele cria normas e instituições a partir de estímulos do meio ambiente e das relações com os semelhantes e, as­sim, acaba modelando a sua própria natureza. Ele tam­bém é um animal que con­segue sobreviver em diversos ecossistemas, adaptando-se a eles e moldando-os de acordo com as suas necessidades. Toda sociedade, a partir da sua cultura, desen­volve uma idéia particu­lar do que é a natureza. Então, o conceito de natu­reza não é natural, ele é criado e ins­tituído pelos homens. É um dos pilares que sustentam as relações sociais e a produ­ção material e espiritual dos povos. Para a sociedade atual, destacando-se a oci­dental, a natu­reza, por definição, contrapõe-se à cultura. A cultura é considerada como algo supe­rior e que, por isso, pode controlar a natureza.
A partir da Revolução Científica e da Revolução Industrial, o homem colocou-se acima da natu­reza, acima dos demais seres que nela convivem. Trata-se de um pro­cesso de sepa­ração, de um processo que coloca a natureza à sua plena disposi­ção. Todos já ouviram a expressão “o homem é um animal social”, distinguindo-o dos outros animais. Ocorre que a vida social não é privilégio da humanidade. A sociabilidade acontece de forma ampla no mundo animal. Esta atitude arrogante produz um fosso entre a humanidade e a natureza. Ela tornou-se estranha ao homem, que se acredita dela separado. Na sua mente ela deixou de ser a sua morada, pois a sua casa passou a ser apenas a natureza por ele modifi­cada, a natureza “construída”.
Nos últimos séculos a justificativa dada para o avanço da ciência e da indústria tem sido a elevação do nível de consumo. O consumo é essencial para a vida humana; não é esta a questão. O problema não é o consumo em si, mas os seus padrões e efeitos sobre o meio ambiente é que são questioná­veis. O atendi­mento de várias possibilidades de consumo deve acontecer para melhorar as condições de vida das populações excluídas, não se questiona isto.
O consumo moderno, contudo, seguiu cami­nhos tortuosos e virou consumismo, penetrando no inconsciente coletivo da população, onde se confundiu com o desejo de liberdade. Ser livre é poder apropriar-se da natureza, transformá-la em bens de consumo e consumi-la. Quanto maior o consumo maior a liberdade. Em rela­ção à natureza consolida-se, com a aceitação deste conceito de liber­dade, uma ética utilitarista. A natureza está aí para ser usada e abusada.
A abundância de bens de consumo produzidos pela indús­tria é vista como um símbolo do sucesso das economias modernas. En­tretanto, de algumas décadas para cá, esta abundância começou a ser vista com olhares negativos, já que o consumismo passou a ser considerado um problema social.

O consumo exacerbado não é mais uma opção aberta, com amplas possibilidades para toda a Terra. A aceitação da idéia de um “desenvol­vimento sustentável” indica que se fixou um limite superior para o progresso. Esta aceitação coloca um novo e saudável desafio: como eliminar a miséria, sem desrespeitar a capacidade de suporte do planeta? Po­demos querer empurrar o crescimento além dos limites, mas devemos ter cons­ciência do fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmesis da natureza. A deusa Nêmese, venerada por gregos e romanos, representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos os que ousassem ultrapassar a própria medida (chamada de hybris – auto-afirmação arrogante) eram imediatamente fulminados por Nêmese. Há muito a humanidade vem exercendo a sua arrogância e a deusa já começou a manifestar a sua ira. Não devemos pagar para ver.

A QUE VIM