Zildo Gallo
Juntei nesta publicação três artigos com o objetivo de defender a tese
de que não existem saídas individuais para as crises econômica, social e
ambiental que se espalharam por todo o nosso planeta. São eles: “Transporte individual
e crise ambiental: o caso da grande São Paulo”, “Sobre carros e ônibus: porque sai
mais barato viajar de carro” e “Consumo sustentável ou sociedade sustentável.”
Nos dois primeiros eu aponto os problemas de o Brasil ter adotado um modelo de
transporte que privilegia o indivíduo em detrimento da coletividade. No
terceiro eu faço análise para buscar as raízes da crise contemporânea no grande avanço do pensamento liberal a partir do
século XVIII, principalmente no Ocidente, que colocou o indivíduo no centro do
mundo, em detrimento dos grupos sociais. Neste mesmo artigo eu deixo clara a
necessidade de um novo olhar a partir da coletividade, apontando os limites do
liberalismo econômico. Aso artigos!
Transporte individual e crise ambiental: o caso da Grande São Paulo
Zildo
Gallo (2 de junho de 2015)
No dia 28 de maio de 2015, a Folha de
São Paulo, no caderno Cotidiano, publicou uma matéria com o seguinte título:
"Grande SP tem que reduzir 26% das viagens de carro para ter o ar
aceitável". A reportagem fala sobre um diagnóstico feito pelo governo do
Estado de São Paulo, onde afirma que a principal vilã da má qualidade do ar é a
frota de automóveis, que não para de crescer. De acordo com a folha, somente a
capital paulista acrescentou 400 mil veículos em apenas três anos. Cada vez
mais carros para cada vez menos espaço...
De 2007 a 2012, as viagens de carro na
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) saltaram de 10,5 para 12,6 milhões. O
estudo oficial aponta a necessidade de reduzir 3,3 milhões de viagens diárias.
Contudo, não recomenda soluções radicais para alcançar a meta indicada. Ele
recomenda paliativos, como a inspeção veicular, estímulo ao uso do transporte
coletivo e de bicicletas. Alguns especialistas, todavia, defendem pedágio
urbano e ampliação do rodízio, o que acabaria forçando o uso dos meios
coletivos.
O aumento do uso do transporte coletivo
é necessário e urgente e é, de longe, a melhor saída. Ele implica, em ampliação
das linhas do metrô e no aumento das linhas de ônibus, que implicam na
necessidade de políticas públicas integradas entre estado e municípios e em
vultosos recursos financeiros. Todavia, inquestionavelmente, os meios coletivos
de transporte são os mais adequados para as metrópoles. As ciclovias e as
bicicletas ajudam, mas elas têm um caráter complementar, pois numa
metrópole como a Grande SP, as distâncias a serem vencidas costumam ser
muito longas. Para distâncias menores as bicicletas podem contribuir para a
diminuição dos congestionamentos e, principalmente, da poluição, que aumenta
ano a ano, conforme as informações da CETESB (Companhia Ambiental do Estado de
São Paulo). De 2007 a 2012, os dias de ultrapassagem do padrão adequado de
qualidade do ar na RMSP saltaram de 22 para 49, mais que dobrou. A coisa é
muito séria!
No meu artigo "Consumo sustentável
ou sociedade sustentável: um debate necessário", neste blog (1), eu
escrevi:
Depois de muitos anos pensando de forma individualista e utilitarista, o
mundo, com destaque para a sua porção ocidental, precisa voltar-se ao coletivo,
pois as saídas para a grande crise socioambiental na qual o planeta está
mergulhado não se resolve a partir do consumidor com suas propaladas autonomia
e racionalidade, como acreditam os economistas liberais. Inclusive porque
acreditar em autonomia do consumidor em tempos de marketing e propaganda é no
mínimo ingenuidade e, talvez, indo além da ingenuidade, má-fé. O mundo precisa
de saídas coletivas e o pensamento liberal tem seus limites para pensar além do
indivíduo e da sua hipotética liberdade para decidir.
No caso do transporte de pessoas nos
centros urbanos, principalmente nos grandes centros, não dá para considerar
apenas o indivíduo, a partir do seu ponto de vista de consumidor de automóveis.
Nas regiões metropolitanas fica muito claro o limite do ideário liberal e da
"mão invisível" do mercado, idealizada por Adam Smith (2), que
conduziria cada uma das realizações das vontades individuais na grande
realização do bem-estar coletivo. No caso, a realização da vontade particular
de cada motorista de ter e conduzir o seu próprio veículo, tem implicado em
imensos congestionamentos diários e poluição para todos e não em bem-estar
coletivo.
Contudo, não sejamos tão radicais. Dá
para se falar de sustentabilidade considerando apenas o indivíduo, tomando-o a
partir da sua consciência individual e dos seus desejos? Resposta: até que dá,
mas tem limites, limites estreitos, porque, na maioria dos casos, pelo menos
nos mais complexos (a vida no mundo de hoje está cada vez mais complexa), as
saídas não são individuais mas, principalmente, coletivas. Quando se aborda a
questão energética, da mobilidade urbana, do tratamento dos resíduos produzidos
pelo consumo, da segurança alimentar, da segurança hídrica, da saúde, da educação,
da moradia, entre outras, a melhor forma de abordá-las é a partir do coletivo.
Na verdade, pouca coisa pode ser abordada única e exclusivamente do ponto de
vista individual, talvez o consumo de bens supérfluos, talvez...
Num mundo tão
coletivo, cada vez mais coletivo, por conta do gigantismo da humanidade (7
bilhões de habitantes), o pensamento liberal sobrevive apenas enquanto
ideologia a serviço das elites econômicas. Na prática o liberalismo, quando
permitido, quando estimulado, como no caso de deixar o transporte de pessoas
por conta das próprias pessoas, tem provocado mal-estares coletivos,
contrariando a premissa central do pensamento liberal. A somatória do bem-estar
individual pode não produzir o bem-estar coletivo em muitos casos. O prazer individual
de dirigir o seu carrão pelas ruas de São Paulo pode colidir com a necessidade
de ar limpo para todos e de mobilidade para todos. A frota de veículos
particulares da RMSP tem produzido uma grande imobilidade urbana. Alguém
discorda?
(1) http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2014/12/consumo-sustentavel-ou-sociedade.html
(2) Filósofo e economista britânico do
século XVII.
http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2015/06/transporte-individual-e-crise-ambiental.html
Sobre
carros e ônibus: porque sai mais barato viajar de carro
Zildo
Gallo (17 de junho de 2015)
No meu artigo
"Transporte individual e crise ambiental: o caso da Grande
São Paulo", publicado neste blog em 2 de junho de 2015, eu falei
sobre os problemas causados pelos automóveis na capital paulista e nos
municípios do seu entorno: poluição do ar e congestionamentos. Ocorre que os
automóveis não são problemáticos só nas regiões metropolitanas, eles também
estão congestionando muitas rodovias e, por decorrência, criando poluição do
ar. É só observar a situação de rodovias como a Presidente Dutra, a Anhanguera,
a Bandeirantes, a Regis Bittencourt, a Fernão Dias, a Castelo Branco, entre
outras, que cortam as áreas mais industrializadas e urbanizadas do Brasil.
O mesmo remédio sugerido
para a Grande São Paulo serve para as rodovias que estão sobrecarregadas com
veículos de passeio e utilitários, que transportam no máximo cinco pessoas: aumento do uso de transporte
coletivo. Acontece que no Brasil os meios coletivos de transporte foram
desestimulados, enquanto que o transporte individual foi amplamente estimulado,
principalmente pelos governantes do período da ditadura militar (os eleitos não
mudaram a prioridade), com destaque para o modal ferroviário, que acabou sendo
sucateado quando deveria ter sido modernizado, como aconteceu nos países
europeus, por exemplo.
Retomar o transporte de
pessoas pelas ferrovias não é algo que se faça da noite para o dia, pois
implica em muito planejamento e investimento. Todavia, em algum momento, isso
precisa acontecer, tem que acontecer. O que dá para se fazer mais rapidamente é
estimular o transporte de passageiros por meio de ônibus. Isso já implicaria na
retirada de muitos carros das estradas, pois os automóveis transportam no
máximo cinco pessoas, enquanto os ônibus conduzem entre 46 e 50 passageiros por
viajem. Simples, então é só dar início a uma campanha: "Viaje de ônibus e
contribua com o meio ambiente". Não é bem assim, algumas barreiras
econômicas precisam ser derrubadas. Muitas vezes, talvez na maioria das vezes,
o transporte individual é mais barato que o coletivo. Que absurdo! Não tem
absurdo nenhum, é o que mostrarei a seguir.
Resolvi comparar os gastos
com viagens de automóvel e de ônibus a partir de Campinas (SP) para dez
municípios selecionados: Rio de Janeiro (RJ), Presidente Prudente (SP),
Araraquara (SP), Ribeirão Preto (SP), São José dos Campos (SP), Curitiba (PR),
Belo Horizonte (MG), Santos (SP), Franca (SP) e São José do Rio Preto (SP).
Para realizar o meu estudo
comparado percorri os seguintes passos: a) considerei a mesma distância
percorrida para os dois meios de transporte (tabela 1); b) adotei o mês de
junho de 2015 como base para os preços das passagens de ônibus (tabela 1); c)
considerei a gasolina como combustível para os carros; d) assumi a média dos
preços da gasolina levantada pela ANP (Agência Nacional do Petróleo) para
Campinas na primeira dezena de junho de 2015, R$ 3,17; e) adotei o Fiat Pálio
1.6 como o veículo da pesquisa pelo fato de ter sido o Pálio o modelo de carro
mais vendido no Brasil, no ano de 2014; f) considerei como quilometragem média
na estrada a publicada pelo INMETRO (Instituto Nacional de Metrologia,
Qualidade e tecnologia) para 2015, 11,8 km por litro de combustível e, por
último; g) para o transporte por carro considerei as seguintes situações: um,
dois, três e cinco passageiros.
Tabela 1 -
Viagens de ônibus a partir de Campinas/SP
|
||
Destino a partir
de Campinas
|
Distância por
rodovias - Km
|
Preço da
passagem ônibus convencional*
|
Rio de Janeiro/RJ
|
495
|
R$ 92,30
|
Presidente
Prudente/SP
|
544
|
R$ 123,95
|
Araraquara/SP
|
185
|
R$ 43,30
|
Ribeirão Preto/SP
|
224
|
R$ 55,44
|
São José dos
Campos/SP
|
148
|
R$ 41,50
|
Curitiba/PR
|
479
|
R$ 122,23
|
Belo Horizonte/MG
|
585
|
R$ 103,16
|
Santos/SP
|
175
|
R$ 49,30
|
Franca/SP
|
306
|
R$ 77,44
|
São José do Rio
Preto/SP
|
349
|
R$ 80,00
|
* Preços de junho de 2015 - Rodoviária de Campinas
|
Para chegar aos gastos totais com as
viagens para cada um dos destinos eu fiz o seguinte percurso: 1)
precifiquei o consumo de gasolina a partir do total de quilômetros rodados em
rodovias, considerando a quilometragem informada pelo INMETRO e o preço médio
levantado pela ANP; 2) levantei os valores dos pedágios para cada destino; 3)
somei os gastos com gasolina com os gastos com pedágios e; 4) dividi a soma dos
gastos por um, dois, três e cinco viajantes. Assim, montei a tabela 2, abaixo.
Tabela 2 - Viagens
de carro (Pálio 1.6) a partir de campinas/SP
|
|||||||
Destino a partir de Campinas
|
Km
|
*Gasto gasolina
|
Gasto pedágio
|
**Um viajante
|
**Dois viajantes
|
**Três viajantes
|
**Cinco viajantes
|
Rio de Janeiro/RJ
|
495
|
132,98
|
57,40
|
190,38
|
95,19
|
63,46
|
38,08
|
Presidente Prudente/SP
|
544
|
146,14
|
78,80
|
224,94
|
112,47
|
74,98
|
44,99
|
Araraquara/SP
|
185
|
49,70
|
31,10
|
80,80
|
40,40
|
26,93
|
16,16
|
Ribeirão Preto/SP
|
224
|
60,18
|
36,90
|
97,08
|
48,54
|
32,36
|
19,42
|
São José dos Campos/SP
|
148
|
39,76
|
24,70
|
64,46
|
32,23
|
21,49
|
12,89
|
Curitiba/PR
|
479
|
128,68
|
28,90
|
157,58
|
78,79
|
52,53
|
31,52
|
Belo Horizonte/MG
|
585
|
157,16
|
23,90
|
181,06
|
90,53
|
60,35
|
36,21
|
Santos/SP
|
175
|
47,01
|
41,60
|
88,61
|
44,31
|
29,54
|
17,72
|
Franca/SP
|
306
|
82,21
|
52,50
|
134,71
|
67,35
|
44,90
|
26,94
|
São José do Rio Preto/SP
|
349
|
93,76
|
36,90
|
130,66
|
65,33
|
43,55
|
26,13
|
* Quilometragem média: 11,8
Km/l (INMETRO - 2015) - Preço médio: R$ 3,17 (ANP - jun/2015)
|
|||||||
** Gasto médio por passageiro (R$)
|
Pela tabela 2, observa-se que só é
vantagem viajar de ônibus quando o passageiro segue sozinho, pois, a partir de
dois, a vantagem desaparece e, quando o carro completa a sua lotação (cinco),
os gastos de cada um representam uma fração pequena dos preços das passagens
individuais para cada um dos destinos escolhidos. Para se compreender melhor o
que pretendo dizer, montei a tabela 3, onde comparo os gastos com as viagens de
ônibus e de carro.
* Montada a partir das tabelas 1 e 2.
|
É preciso lembrar
que os ônibus convencionais conduzem entre 46 e 50 passageiros e um automóvel
de passeio conduz no máximo cinco. Quando os automóveis preenchem a carga
máxima para os destinos considerados neste breve estudo, os viajantes pagarão
as seguintes frações (%) das passagens de ônibus: Rio de Janeiro, 41,25%;
Presidente Prudente, 36,29%; Araraquara, 37,32%; Ribeirão Preto, 35,02%; São
José dos Campos, 31,06%; Curitiba, 25,78%; Belo Horizonte, 35,1%; Santos,
35,94%; Franca, 34,78% e; São José do Rio Preto, 32,66%. Com duas pessoas num
carro só é desvantagem viajar para o Rio de Janeiro, pois os gastos estão 3,13%
(só!) acima do preço da passagem de ônibus. Para os demais destinos a vantagem
já começa com o segundo passageiro.
É
muita desvantagem viajar em grupo no transporte coletivo pelas rodovias
brasileiras, pelos menos nas dos estados da Região Sudeste, como demonstra este
minúsculo ensaio de pesquisa, e, por conta disso, quando as pessoas decidem
viajar juntas, como é o caso das famílias, não há consciência ambiental que
suplante tamanha diferença de gastos. Então, não é fácil estimular o transporte
coletivo nas rodovias, mas é necessário que tal aconteça; a questão ambiental
justifica o estímulo. Eis aí um bom problema para as políticas públicas.
Simplificadamente,
os preços das passagens (PP) representam a seguinte soma: gasto com combustível
(C) + manutenção da frota (M) + salários (S) + impostos (I) + pedágios (Pd) +
lucro (L). Simplificando: PP = C + M + S + I + Pd + L, esta seria a equação do
valor das passagens. Ela dá parâmetros para se pensar formas de baratear o
transporte coletivo através do modal rodoviário.
Analisando cada item do lado direito da equação. A princípio,
todos os itens são passíveis de mudanças para baixo, no sentido do menor custo,
mas uns são mais e outros menos. O combustível (C) é passível de mudanças para
menores gastos através da prática de preços diferenciados para os transportes
públicos, trata-se de uma decisão política; não é uma decisão fácil, pois, em
tese, haveria a necessidade de compensar aumentando os preços dos combustíveis
para os veículos particulares. Os gastos com manutenção (M) da frota têm pouca
elasticidade, pois a sua diminuição pode implicar em riscos para os usuários.
Um item importante na manutenção dos veículos é o pneu. As empresas têm a
prática de recauchutar os pneus aptos a isso. Isso já é importante, mas, além
disso, os governos federal e estaduais poderiam reduzir os impostos sobre os
pneus destinados ao transporte coletivo. Como no caso do combustível, os
governantes tentariam compensar as perdas tributando mais os pneus dos
automóveis, é óbvio. De qualquer forma, sempre se deve privilegiar o transporte
coletivo. A questão ambiental sempre solicitará um pensar coletivo, não tem
como fugir disso.
Por sua vez, os salários (S) podem ser diminuídos, mas não é
conveniente que isso aconteça, pois não é recomendável ter motoristas
insatisfeitos, cansados, estressados etc., pois deles depende a segurança dos
passageiros; melhor tê-los satisfeitos. Os impostos (I), tanto federais como
estaduais, podem ser reduzidos, mas os governantes exigirão alguma compensação
em outros tributos; nenhum governo gosta de ter a arrecadação diminuída. Os
pedágios (Pd) também podem ser reduzidos, principalmente no Estado de São
Paulo, onde os valores estão acima dos demais; trata-se de uma decisão política
e as concessionárias oporão resistências, o que é normal. As margens de lucro
(L) também podem ser alteradas, mas elas não podem baixar a ponto de diminuir
os investimentos, principalmente caso eles sejam necessários para a
modernização e a expansão da frota; há limites, mas é possível testá-los.
Assim, as políticas públicas no sentido de estimular o transporte coletivo via
ônibus podem atuar, considerando todas as dificuldades, sobre os combustíveis,
impostos, preços de pneus, pedágios e, até mesmo, sobre o lucro dos
investidores.
Finalizando: é preciso estimular o transporte público, não tem
outra saída. Postergar isso só agravará mais a situação. Os habitantes das
Região Sudeste, que transitam pelas rodovias congestionadas, andando devagar e
poluindo muito, quando tiverem opções boas e economicamente mais acessíveis de
transporte coletivo, poderão optar por elas. É necessário testar esta hipótese.
Não tem outra saída, pois a frota de carros continuará aumentando e as rodovias
ficarão cada vez mais entupidas. Alguém acha que não?
http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2015/06/sobre-carros-e-onibus-porque-sai-mais.html
Consumo
sustentável ou sociedade sustentável?
Zildo Gallo (11 de dezembro de 2014)
Este artigo foi
originalmente publicado em 11 de dezembro de 2014 e, devido à atualíssima
importância do seu conteúdo, resolvi republicá-lo hoje, 28 de maio de 2016.
Nele eu trato de uma questão essencial para a humanidade, que é a busca
necessária de saídas coletivas para a crise socioambiental e de valores que
atinge toda ela, em todas as partes do nosso planeta Terra nos dias de hoje. Na
minha compreensão, a crise contemporânea tem fortes relações com o avanço do
pensamento liberal a partir do século XVIII, principalmente no Ocidente, que
colocou o indivíduo no centro do mundo, em detrimento dos grupos sociais. Essa
centralidade no indivíduo acabou por estimular um individualismo e um egoísmo
crescentes, a ponto de a dimensão altruísta do ser humano ser deixada num
distante segundo plano. Com o avanço da sociedade de consumo no pós Segunda
Grande Guerra, o individualismo acentuou-se, mas com as crises que se espraiam
por todo o planeta, uma verdadeira crise civilizatória, as concepções liberais
estão sendo postas em cheque. É um pouco disso que trata o presente artigo. Ao
artigo!
Na década de 90 do século XX, aconteceu
um deslocamento da questão ambiental para a esfera do consumo, indo além e
superando as críticas ao sistema industrial e às populações pobres do
"Terceiro Mundo". Não se tratava de ignorar impactos da indústria e
da pobreza sobre o meio ambiente, mas de reconhecer o papel do excesso, do
consumo abusivo, desnecessário, na questão ambiental, destacando os seus
resultados negativos, como a descomunal produção de resíduos e a extração
exponencial de matérias primas da natureza, por exemplo. A princípio, as
discussões limitaram-se à ideia do "consumo verde", que apenas
enfatizava mudanças técnicas nos produtos e serviços e mudanças comportamentais
dos consumidores individuais. Mas tal abordagem, ainda que necessária, é
insuficiente e, assim, logo depois, apareceram propostas que enfatizavam ações
coletivas e políticas públicas. Trata-se da estratégia do “consumo
sustentável”, que busca se diferenciar da anterior por privilegiar políticas
públicas e ações individuais e coletivas voltadas para a sustentabilidade socioambiental,
onde aparece uma pretensão política e transformadora mais definida.
Depois de muitos anos pensando de forma
individualista e utilitarista, o mundo, com destaque para a sua porção
ocidental, precisa voltar-se ao coletivo, pois as saídas para a grande crise
socioambiental na qual o planeta está mergulhado não se resolve a partir do
consumidor com suas propaladas autonomia e racionalidade, como acreditam os
economistas liberais. Inclusive porque acreditar em autonomia do consumidor em
tempos de marketing e propaganda é no mínimo ingenuidade e, talvez, indo além
da ingenuidade, má-fé. O mundo precisa de saídas coletivas e o pensamento
liberal tem seus limites para pensar além do indivíduo e da sua hipotética
liberdade para decidir.
Em termos internacionais o que acabou
acontecendo é que se priorizou, no campo do discurso sobre consumo sustentável,
uma redução relativa no consumo de determinadas matérias primas e energia,
como o petróleo, por exemplo, e não uma mudança nos processos e padrões de
produção, distribuição e consumo, deixando de dar a atenção necessária aos
conflitos gerados pela desigualdade no acesso aos recursos da natureza, tão
importante para os países não desenvolvidos, localizados majoritariamente no
hemisfério sul. Mudar os padrões e não os níveis de consumo passou a ser o
objetivo visto como politicamente adequado nos países desenvolvidos do
hemisfério norte. Consome-se a mesma quantidade de combustível, por exemplo,
substituindo os derivados de petróleo pelo biocombustível, que é renovável.
Todavia, o biocombustível vem da agricultura e a sua produção ocupa terras
antes destinadas à produção de alimentos. Os impactos dessa mudança foram
devidamente analisados? Foram de alguma forma avaliados? Talvez esta não tenha
sido a melhor saída. Há que se verificar.
Dá para se falar de consumo sustentável
considerando apenas o indivíduo, tomando-o a partir da sua consciência
individual? Resposta: até que dá, mas tem limites, porque, na maioria dos
casos, pelo menos nos mais complexos, as saídas não são individuais mas
coletivas. Por exemplo, quando se aborda a questão energética, da mobilidade
urbana, do tratamento dos resíduos produzidos pelo consumo, da segurança
alimentar, da segurança hídrica, da saúde, da educação, da moradia, entre
outras, a melhor forma de abordá-las é a partir do coletivo. Na verdade, pouca
coisa pode ser abordada única e exclusivamente do ponto de vista individual.
Então, já que o mais correto é a
abordagem coletiva, por conta de envolver tanto a sociedade quanto o indivíduo,
em vez de se focar no consumo sustentável, melhor seria focar na ideia de
sociedade sustentável, pois o consumo é mais um componente das muitas
atividades sociais, junto com muitas outras também importantes.
Melhor exemplificar para deixar mais
clara a exposição. A Região Metropolitana de São Paulo, onde habita grande
parte da população do Estado de São Paulo, tem problemas sérios de mobilidade
urbana e de poluição do ar. Existe uma carência de transporte coletivo
(rodoviário e ferroviário) e um excesso de veículos automotores que transportam
no máximo cinco pessoas (transporte individual). A região enfrenta
congestionamentos diários gigantescos e isso, além de estressar os motoristas e
provocar perdas econômicas individuais e coletivas consideráveis, também
contribui com a poluição do ar e com o aquecimento global (efeito estufa). Não
tem saída uma individual. Mesmo que a frota de veículos individuais adotasse
exclusivamente o etanol como combustível que, por sua renovabilidade, não
contribui com o efeito estufa, restaria ainda insolúvel a questão do
congestionamento. A saída que resolve as duas questões é o investimento em transporte
coletivo, é uma saída coletiva. Vários outros exemplos poderiam ser dados,
tomando outros aspectos da vida em sociedade, mas este já é suficiente.
Quando se fala de
sociedade sustentável não tem como não estabelecer comparações. Hoje o planeta
Terra divide-se em dois blocos de países em relação à economia. No hemisfério
norte localiza-se a maior parte dos países ricos e no hemisfério sul a maior
parte dos mais pobres. Então, é conveniente trazer para o debate as
considerações de Clóvis Cavalcanti (2003) sobre a maior economia do hemisfério
norte e do planeta, os Estados Unidos, onde ele a compara com as sociedades
indígenas da Amazônia no hemisfério sul ( ver quadro abaixo). Em termos de
sustentabilidade ambiental são dois paradigmas extremos e, por conta disto,
servem como balizas do que poderia ser o caminho do meio de uma sociedade
sustentável.
Comparação de dois paradigmas diferentes de sustentabilidade
Termos de comparação
|
Índios da Amazônia
|
Estados Unidos
|
Visão de mundo
|
Reverência pela natureza; humildade
|
Homem senhor e possibilidade da natureza; arrogância
|
Formação de capital
|
Quase nenhuma; habilitações e ferramentas toscas
|
Cumulativa; necessidade de volumes sempre crescentes de investimento
(para manter taxas constantes)
|
Fontes de energia
|
Renováveis somente
|
Combustíveis fósseis (fontes não renováveis); menor proporção de
renováveis
|
Formas de conhecimento
|
Base na experiência (transmissão oral pelos antigos e pelos pajés)
|
Ciência moderna (transmissão sob forma escrita – bibliotecas, meio
eletrônico)
|
Fonte de propulsão
|
Recursos naturais
|
Progresso técnico
|
Uso de matéria e energia
|
Frugalidade; parcimônia termodinâmica
|
Forte degradação entrópica; esbanjamento, desperdício
|
Principais objetivos econômicos
|
Satisfação das necessidades básicas; bem-estar
comunitário
|
Crescimento econômico ilimitado; lucro imediato
|
Tendência de longo prazo
|
Altamente sustentável
|
Insustentável
|
Fonte: CAVALCANTI, 2003.
O primeiro paradigma corresponde, na
visão do autor, a uma situação de parcimônia e de reverência pela natureza. O
segundo conduz, conforme o autor, a um extremo de estresse ambiental e “não contém
atributos intrínsecos de respeito pela natureza, é o que se percebe nos padrões
de consumo de recursos dos Estados Unidos”(CAVALCANTI, 2003, p. 155).
O estilo de vida dos índios da Amazônia
baseia-se em fontes renováveis de energia, pois os combustíveis fósseis não
são usados e a lenha é utilizada de forma sustentável. Não ocorre destruição
ambiental visível entre os índios. Além de usarem os recursos da natureza com
parcimônia, os índios a tratam com reverência e humildade, sentem-se parte
dela. No outro extremo, impera a posse e o domínio dos seus recursos para
serem transformados em mercadorias, que serão vendidas para consumidores, que
garantirão, com seu consumo crescente e contínuo, a continuidade do crescimento
econômico.
Entre os índios da Amazônia a
finalidade única no seu relacionamento com a natureza é a satisfação das
necessidades coletivas e individuais; nos EUA, a satisfação das necessidades é
um objetivo secundário, o principal é alimentar o processo de acumulação de
capital. No segundo caso a natureza é tratada com arrogância e utilitarismo;
ela é vista essencialmente como um estoque de matérias-primas e a maioria do
seus habitantes vive, enquanto maioria urbana, totalmente afastada da natureza,
ela tornou-se estranha aos moradores urbanos.
Se tem algo de que Cavalcanti (2003, p.
165) tem clareza é que o desenvolvimento econômico nos moldes dos EUA não é
mais uma opção aberta, com amplas possibilidades para todo o planeta. A
aceitação da ideia de desenvolvimento sustentável indica que foi fixado um
limite superior para o progresso material, embora ele ainda não esteja muito
palpável. Esta aceitação coloca um novo desafio para a humanidade, conforme
aponta Cavalcanti (2003, p. 166):
Nosso desafio é como reduzir substancialmente ou eliminar a miséria, sem
desrespeitar os limites da capacidade de sustentação da Terra. Podemos querer
empurrar o crescimento além desses limites. Mas devemos ter consciência do
fato de que, mais cedo ou mais tarde, teremos que confrontar a nêmesis da
natureza.
A deusa Nêmese, venerada por gregos e
romanos, representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos os que
ousassem ultrapassar a própria medida (chamada de hybris –
autoafirmação arrogante) eram imediatamente fulminados por Nêmese. O
aquecimento global é um dos sinais de que a própria medida pode estar sendo
ultrapassada e, aparentemente, a reação da deusa parece estar começando.
O dever dos estudiosos, dos homens e
mulheres da ciência, daqui adiante, é explicar como o desenvolvimento poderá
tornar-se sustentável. Uma ideia amplamente aceita hoje em dia é a de que o
tipo de crescimento econômico que o mundo construiu nos últimos duzentos anos,
em particular depois da Segunda Guerra Mundial, não mais se sustenta. Não se
propõe aqui, é claro, uma volta à sociedade tribal. Trata-se, antes de tudo, de
propor uma ruptura com aquilo que Celso Furtado (1974), chamou de mito
do desenvolvimento, que tem a ver com a possibilidade de todos os pobres do
mundo desfrutarem das mesmas formas de vida dos povos mais ricos do planeta,
com seu consumo ostentatório e, em larga escala, supérfluo. Maria Lúcia Azevedo
Leonardi (2003, pp. 204-205) esclarece um pouco mais a questão levantada por
Cavalcanti:
Em segundo lugar, graves problemas ambientais – talvez os piores – como
o efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, o esgotamento dos recursos
naturais, a acumulação do lixo tóxico são provocados pelas sociedades ricas e
desenvolvidas, não pelas pobres. Se o modelo de desenvolvimento do Primeiro
Mundo, arduamente perseguido pelo Terceiro Mundo, conseguir ser atingido, com
níveis de produção e consumo equivalentes, aí sim a situação ambiental se
agravará, mesmo se a população parar de crescer. Atualmente, menos de um
quarto da população mundial consome 80% dos bens e mercadorias produzidos pelo
homem (Martine, 1993: 25). A tragédia do desenvolvimento explica a “agonia planetária”
(conceito criado por Morin & Kern, 1993: 73). Ou, como já foi colocado há
tempo, o desenvolvimento necessita criar o subdesenvolvimento. É seu
componente antitético.
Referências
CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos
para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
______. Sustentabilidade da economia: paradigmas alternativos de
realização econômica. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e
natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez
Editora; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2003.
MARTINE, George (org.). População meio ambiente e
desenvolvimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
LEONARDI, Maria Lúcia Azevedo. A sociedade global e a questão ambiental.
In: CAVALCANTI, Clóvis (org.).Desenvolvimento e natureza: estudos para uma
sociedade sustentável. São Paulo: Cortez Editora; Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, 2003.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra, 1974.
MORIN, Edgar & KERN,
Anne Brigitte. Terre-Patrie. Paris: Seuil, 1993.
http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2016/05/consumo-sustentavel-ou-sociedade.html