quarta-feira, 30 de março de 2016

Sobre os tempos da ditadura militar e sobre a coragem de um jornalista brasileiro

Zildo Gallo

Corria o ano de 1976, eu tinha então 20 anos de idade, trabalhava numa multinacional em Americana (SP) e havia ingressado na universidade. Já me considerava um combatente de esquerda, pois ainda no colegial já me havia introduzido numa militância política possível e muito vigiada na UEA (União Estudantil Americanense) que, por descuido dos militares de plantão, não foi fechada como todas as outras entidades estudantis nos horripilantes anos de chumbo.

Naquela época, a disponibilidade de textos de esquerda, particularmente os marxistas, era muito rara. Eu e vários amigos éramos leitores do Pasquim que tentava, com bárbaras restrições, enfrentar a ditadura e o vazio cultural criado por ela,  e caçávamos leituras proibidas, o tempo todo. Lembro-me da emoção que senti e, ao mesmo tempo, do frio na espinha, quando caiu-me à mão um exemplar do Manifesto Comunista de Marx e Engels. A sua posse poderia levar-me a prestar depoimento na polícia local caso fosse descoberta. Parece absurdo mas era assim mesmo; só os que estavam lá sabem que isso é a mais pura verdade.

Naquele ano já distante, foi editado o livro-reportagem de Fernando Morais: A Ilha: um repórter brasileiro na ilha de Fidel Castro. O livro fala sobre Cuba e tornou-se um dos maiores sucessos editoriais brasileiros, transformando-se num ícone da esquerda nacional nos anos 70 do século passado. O livro aborda a Cuba pós-revolução sob diversos aspectos: cotidiano; cultura; relações com os outros países; racionamento de comida e outros bens; urbanização; educação; saúde; imprensa; mulher; eleições; justiça; reforma agrária; economia etc. Vale a pena ser lido nos dias de hoje, quando a Ilha está reatando as relações com os Estados Unidos.


Um detalhe importante a ser lembrado: o autor trabalhava naquela época na Revista Veja. Para os que os que só conhecem a versão de extrema direita da Veja de hoje, isso parece inimaginável, mas ela já foi diferente. Isso está lá, num passado já bem distante, mas é verdade, acreditem. Eu vi, eu li, sou testemunha ocular desta verdade.

A Veja mudou completamente, mas Fernando Morais não, continua coerente com os seus velhos princípios. Basta vê-lo no combate pela democracia no momento atual, quando as forças conservadoras e, inclusive, as de extrema direita colocam em risco a democracia. Alguns grupos até pedem a volta dos militares e isso me dá frios na espinha de novo. Entrei recentemente na faixa do 60 anos de idade e não gostaria de sair do meu país nestas alturas da minha existência. Bobagem... bobagem... deixa para lá...

Que droga! Desde jovenzinho dediquei anos da minha vida na luta pela democracia e pelo fim da ditadura militar e vejo agora alguns meninos e meninas exalando ódio, puro ódio, contra as esquerdas, contra os pobres, contra os homossexuais, contra tudo que é diferente do mundo deles, que é cheirosinho, riquinho e cheio de prazeres fugazes e de bens de consumo abundantes, mas totalmente desprovido de compaixão pelos que estão nos andares inferiores do edifício social, construído com o aço do poder econômico e com o cimento do egoísmo. O egoísmo cimenta alguma coisa? Acho que não. Aí está a contradição; um dia tudo isso cai...

Chega de lamentações, pois nestes tempos egocêntricos e ignorantes é preciso dizer em brados retumbantes: VIVA A DEMOCRACIA! NÃO VAI TER GOLPE! NÃO VAI TER GOLPE!

Caro Fernando Morais, Grato! Lá, nos idos de 1976 - lá se vão 40 anos - eu vivia com seu livro para cima e para baixo, indicando a todos que cruzavam o meu caminho.


sexta-feira, 25 de março de 2016

Sugestão de boa leitura: uma dissertação sobre a água no semiárido paraibano

Zildo Gallo

Em 2010, o meu orientando José Rocha Cavalcanti Filho defendeu a dissertação de mestrado “A água como elo de identidades sociais no semiárido paraibano: estudo de caso, Cabaceiras”, no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado) da UNIARA. Trata-se de um trabalho que merece ser lido na íntegra, pois a sua pesquisa captou a alma do sertanejo, aquele sertanejo que Euclides da Cunha considerou antes de tudo um forte, na sua relação profunda com a água, algo que não se observa aqui no sudeste do Brasil. onde abrimos a torneira e a água jorra, o que nos torna, muitas vezes, irresponsáveis em relação a ela.


O autor testou a hipótese de que a escassez de água no semiárido brasileiro e as extemporâneas enchentes, que fizeram parte do quotidiano da população que hoje tem mais de 50 anos de idade, exerceram papel relevante nas representações da água nas identidades sociais identificadas pelo cristianismo popular dos grupos minoritários de semiárido paraibano, destacando a região de Cabaceiras-PB, no sertão do Cariri, o território com o menor índice de chuvas do Brasil. Também buscou identificar as representações da água para as pessoas pertencentes às populações menos favorecidas e a maneira pela qual elas são influenciadas por suas condições econômicas e práticas religiosas.

A cosmovisão que rege as vidas dos moradores da região não é a racionalidade cartesiana dos cientistas, mas a lógica cíclica da natureza, marcada por duas sazões: o verão que pode durar 10 meses por ano, período sem chuvas, e o esperado inverno, período de dois a quatro meses, no máximo cinco, com possíveis chuvas. É possível perceber que a religiosidade é o ponto fundante desse povo, onde tempo é marcado pelas festas dos santos católicos. Uma religiosidade devocional, na qual os santos estão ligados à natureza e são intercessores para a chuva. O inverno começa com a festa de São José, no dia 19 de março. Essa festa religiosa não é apenas o início oficial do possível inverno, mas nela se comemora a chegada das chuvas, com os reservatórios cheios e uma boa pastagem para a os animais e, para completar, uma colheita farta.

O período de seca é um tempo de preparação para a chegada da chuva. Homens e mulheres, na sua ausência, preparam os açudes, tanques e cisternas, na esperança de que ela virá. Planta-se no dia de São José e colhe-se no dia de São João, última semana de junho, mês de maior festividade no semiárido nordestino. Nesse mês celebra-se a festa de Santo Antônio, protetor dos solteiros e solteiras que procuram casamento; São João, tempo de colheita, é a festa mais importante em todo o Nordeste; e São Pedro, aquele que tem as chaves do céu e está ligado à água, às chuvas e aos trovões.


O elemento religioso é visto nas várias atitudes de resignação e passividade diante da realidade secular da escassez da água. Porém é notada com mais vigor a persistência, a luta para não deixar a terra, a convivência do sertanejo com a seca. O homem do Cariri é portador de uma mística e espiritualidade de luta para aprender a conviver com a pouca água e não abandonar a terra. Ele não luta contra a seca, mas busca conviver com ela; ela é significativa nesse ecossistema e conviver com ela é necessário para permanecer na região dos cariris velhos da Paraíba.

Diante da escassez cíclica, fica fácil compreender a subjetividade dos habitantes, dolorida, mas também repleta de sonhos, força, coragem e luta; a escassez da água é o desafio dessas populações para vencerem as lutas cotidianas, para se superarem ou para aprenderem a conviver com a constante presença da seca em sua história. É outro modo de ver a vida – a vida caminha na lógica da natureza: ausência e presença da água, simples assim.

A memória dos mais velhos, nas suas casas, compara as várias secas, de vários anos, suas dificuldades e enfrentamentos. A meteorologia e a história, sempre orais, é claro, permitem entender os valores sociais, a religiosidade, as práticas, o aprendizado, a resignação e a resistência desse povo. A água sempre será a representação da identidade, da cultura, da religião e das relações afetivas desse povo sobrevivente.

A chuva que ora vem ora não vem marca a passagem do sertanejo no Cariri e a compreensão disso por nós, que vivemos nos grandes centros urbanos da Região Sudeste, tem sua relevância, pois estamos muito desligados da natureza e dos seus ciclos. Até chegamos a esquecer que a natureza move-se em ciclos. Para que voltemos a nos lembrar, sugiro o link abaixo, que disponibiliza a dissertação do Padre Rocha. O meu orientando é um padre católico oriundo da Paraíba e profundo conhecedor do sertão nordestino. Clique no link e baixe a dissertação:


sexta-feira, 11 de março de 2016

Rishikesh, Laxmanjula, Honey Hut e as leituras diárias de jornal em 2011 e 2012: curiosidades sobre a Índia de hoje.

Zildo Gallo

A imagem abaixo é o retrato da ponte pênsil sobre o rio Ganges no distrito de Laxmanjula, no município de Rishikesh, que se localiza no norte da Índia, bem no sopé dos Himalaias. Trata-se de conhecidíssimo cartão postal da cidade, que recebe todos os anos visitantes de muitas nacionalidades, inclusive muitos brasileiros, que têm por hábito acompanhar o guru brasileiro Sri Prem Baba nos primeiros meses de cada ano, eu me incluo entre eles. Fui seguidamente por vários anos a Rishikesh e tenho muitas boas memórias. Nesta crônica vou falar das minhas leituras vespertinas dos jornais na lanchonete Honey Hut, que fica no centrinho de Laxmanjula, bem próximo à ponte, near the bridge no inglês falado pelos indianos; tudo naquela região está near the bridge, mesmo que não esteja tão near.


Em 1968 os ultrafamosos e admirados músicos ingleses, conhecidos como The Beatles, viajaram para Rishikesh e ajudaram a colocá-la de forma irreversível na trajetória dos ocidentais, com destaque para aqueles que buscam o aprendizado ou o aprofundamento da prática da Yoga. Mais recentemente, a partir do início do século XXI, o guru brasileiro Sri Prem Baba também contribuiu e continua contribuindo para que esse município indiano seja cada vez mais conhecido pelos quatro cantos do mundo. Foi através dele que conheci a Índia e Rishikesh pela primeira vez em 2007. A partir desse ano, viajei seguidamente por vários outros.
Nos dois últimos anos que estive em Rishikesh, 2011 e 2012, frequentei cotidianamente uma lanchonete pouco inaugurada há não muito tempo, a Honey Hut (imagem abaixo), que se caracteriza por adoçar os seus produtos (chás, doces, cafés e sorvetes) com mel. Trata-se de um lugar agradável, com produtos de boa qualidade à venda, não devendo nada a qualquer café bem frequentado do Ocidente.


Seguindo as pegadas de muitas lanchonetes e cafés ocidentais, a Honey Hut tem por hábito disponibilizar jornais para serem lidos pelos frequentadores. Havia dois jornais e, agora, vem-me à memória o The Times of India (ver figura abaixo). A leitura de jornais locais é uma forma interessante de entrar em contato com o dia a dia da população residente. Como eu dispunha de muito tempo e também tenho o hábito rotineiro e diário da leitura, degustar as iguarias e ao mesmo tempo informar-me sobre a Índia eram atividades por demais agradáveis.
Li muitas notícias interessantes, mas uma me chamou muita a atenção porque tem a ver com o sistema de castas. Como é amplamente sabido o sistema de castas é uma divisão social importante na sociedade Hindu, não apenas na Índia, mas no Nepal e em outros países e populações que seguem o hinduísmo. Embora identificado com o hinduísmo, o sistema de castas também pode acontecer entre seguidores de outras religiões da Índia, incluindo alguns grupos de muçulmanos e até mesmo cristãos.
Por sua vez, a Constituição Indiana rejeita a discriminação com base nas castas, em consonância com os princípios democráticos e republicanos que fundaram a nação após a sua independência em relação à Inglaterra; resumindo: o sistema de castas está fora da lei. Com o correr do tempo, as barreiras de casta deixaram de existir ou diminuíram muito nas grandes cidades, mas ainda persistem em muitos lugares da zona rural do país.
A notícia que li e que tem a ver com as castas era mais ou menos assim: numa cidadezinha da zona rural indiana, o conselho de castas local (existia um conselho!) tinha acabado de proibir as mulheres de portarem telefones celulares nas ruas, considerando que isso não era decente para elas; tal proibição deixou as mulheres revoltadas, principalmente as jovens; antes dessa proibição o mesmo conselho havia proibido que elas trajassem jeans como as ocidentais o fazem corriqueiramente.


Esse tal conselho de castas estava enfrentando muitos problemas, pois vinham acontecendo muitos casamentos entre membros de diferentes castas e ele tentava a todo custo proibi-los. A relação do conselho com a comunidade ficou tão difícil que houve a necessidade de intervenção externa e ela aconteceu. O governo proibiu a atuação do conselho com base na lei, que não reconhece o sistema de castas, pois a Índia é uma república e um dos seus princípios é a igualdade entre as pessoas. Simples assim... O filósofo grego Platão em sua magnífica obra, A República, já imaginava uma sociedade de iguais, mesmo naqueles tempos longínquos e tão desiguais, com escravos e muito mais... A Índia, por influência ocidental, adotou a república e a democracia, duas criações da velha Grécia. Com a independência indiana, Ocidente e Oriente encontraram-se (convergiram) no campo da política.
Modernamente, com a globalização da economia e da comunicação, muitos outros encontros estão acontecendo e eles dizem respeito a usos e costumes. Por exemplo, a situação das mulheres começa a mudar, apesar das reações negativas e muitas vezes violentas; li algumas notícias sobre isso nos jornais.  Muitas outras mudanças estão acontecendo, muitas mesmo... Délhi, a capital da Índia lembra muito uma metrópole ocidental, é só observar. Os grandes projetos industriais e a expansão da sociedade de consumo colocam imensas barreiras ao sistema de castas, pois ele atrapalha o avanço dessas duas propostas de caráter ocidental. Para o mercado os indivíduos são consumidores e quantos mais deles existirem será melhor para ele. O capital espera que cada indiano se torne consumidor, independente da casta que ele pertença. Assim, do ponto de vista socioeconômico, a casta perde o sentido de existir. Então, é possível impedir o uso de celulares pelas mulheres? O uso de jeans? É impossível e não interessa ao capital. A república não eliminou as castas no mundo real, mas o mercado o fará e, de fato, está fazendo isso com muita competência.
As considerações que escrevi agora sobre a matéria que li no jornal, tomando um inesquecível saffron cardamom black tea e comendo um doce temperado com o mais saboroso mel dos himalaias, eu já as havia pensado no ato da leitura do jornal, não me recordo se em 2011 ou 2012, não importa... Boas lembranças... Gratidão à lanchonete Honey Hut e a todos os seus servidores. Namaste!

 

segunda-feira, 7 de março de 2016

O dia das mulheres e do sagrado feminino

Zildo Gallo

Hoje, dia 8 de março de 2016, comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Trata-se de um dia de homenagem à dimensão feminina do ser humano e também de uma efeméride que deve ser consagrada à mais profunda reflexão. Há muito para refletir, pois o estado da real condição das mulheres no nosso planeta, que carrega o nome de uma deusa, a deusa Terra (Gaia para os gregos e Terra para os latinos, a deusa que deu a luz a todos os deuses, deusas e à vida que se esparramou pelas águas, terra e ar, conforme ensina a mitologia greco-romana), não é nenhuma maravilha, mesmo...

A situação das mulheres já foi muito pior, mas ainda existem muitas situações de descabida inferioridade e de inaceitável violência. O patriarcado feriu, conspurcou e acabou rompendo a sacralidade feminina e ela precisa ser restabelecida. Trata-se de uma tarefa para toda a humanidade, em todos os cantos do mundo, pois o patriarcado precisa ser superado para que se restabeleça a igualdade primitiva que se perdeu com o avanço da civilização, que se dá após o fim do neolítico, com o surgimento das cidades.

A subjugação das mulheres e da energia feminina pelos homens é o verdadeiro pecado original da civilização, mas os homens, com destaque para o Ocidente, por mais incrível que pareça, mais particularmente após a expansão do judaico-cristianismo, conseguiram imputá-lo às mulheres; lembram-se do mito de Adão e Eva? Há que se pedir perdão a Eva e a todas as suas filhas. Assim, reproduzo aqui o artigo que publiquei no ano passado por considerá-lo muito claro e oportuno, com o fito de colocar mais uma pedra no edifício do arrependimento, que se transformará, quando enfim concluído, no monumento do verdadeiro perdão. Só depois disso a humanidade rumará no sentido da sua definitiva libertação, da sua transcendência. Ao artigo!




O Dia Internacional da Mulher e a necessidade de resgatar os valores femininos

Na sociedade estratificada do mundo civilizado, onde existem os muito ricos e os muito pobres, encontramos também vários outros tipos de estratificação, onde se repete a dicotomia entre "os de cima" e os "de baixo", que acaba dividindo os grupos sociais entre "incluídos" e "excluídos". Os de alta renda estão em cima e os de baixa renda estão em baixo; os brancos (caucasianos) estão em cima e os negros (afrodescendentes) e índios estão em baixo; os heterossexuais estão colocados acima e os homossexuais abaixo e, ainda; os seres humanos do sexo masculino continuam no "andar de cima" e os do sexo feminino no "andar debaixo". Além destas divisões encontramos outras: as ligadas às religiões; às nacionalidades; ao nível de escolaridade etc. Etc. mesmo, pois os seres humanos são mestres em produzir divisões, em criar grupinhos. É muita divisão para uma única humanidade.
A primeira e grande divisão da humanidade é a de caráter biológico, entre o sexo masculino e o sexo feminino. Trata-se de uma divisão natural, diferente das outras citadas acima que têm origens socioculturais. A bipolaridade que encontramos no universo material, que se expressa, inclusive, no nível atômico, com a divisão entre prótons (com carga positiva) e elétrons (com carga negativa), é encontrada na biologia, com a divisão entre macho e fêmea. Sem a combinação entre prótons e elétrons, que são antagônicos e também complementares não haveria a matéria como a conhecemos e, muito menos, o universo com as suas galáxias e seus sistemas solares. Sem a complementaridade entre masculino e feminino, a vida poderia ser composta majoritariamente por vírus, por muitos seres unicelulares e vários tipos de fungos. A vida superior, incluindo aí os seres humanos, não seria possível. Não existe uma hierarquia, neste caso, ambos, masculino e feminino são necessários, o que existe é uma condição de efetiva e necessária igualdade.
Diante do exposto até aqui, afirmo: pensar em superioridade e inferioridade entre os gêneros é, no mínimo, estupidez e, no máximo, alguma expressão impublicável (escolha a expressão, à vontade). Todavia, em relação aos seres humanos uma diferença foi criada; trata-se de uma criação sociocultural, apenas sociocultural. Entretanto, muitos ainda acreditam que, do ponto de vista biológico, os homens nasceram melhor aquinhoados. Muitos, raciocinando no limite inferior das suas capacidades, não enxergando além da sua própria massa corpórea, acreditam que a força física os diferenciam. No mundo de hoje, onde as máquinas há muito tempo substituíram a força física nas tarefas mais pesadas, pensar assim é minimamente ridículo, pois a força bruta, que foi valorizada em outros tempos, hoje significa muito pouco, muito pouco mesmo. É muita ignorância e o nosso planeta ainda está lotado de ignorância, infelizmente...
A partir da introdução um tanto azeda que fiz acima para o meu artigo em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sigo na construção do mesmo, pretendendo lançar luzes sobre o porquê da brutal inferiorização e violência sofridas pelas mulheres durante milênios da trajetória humana no planeta Terra. É possível entender esta barbaridade, acreditem.
Entre 2011 e 2012, participei de um grupo de estudos sobre ecologia profunda, na UNIARA (Centro Universitário de Araraquara), onde leciono no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Mestrado e Doutorado). Por conta das nossas ricas discussões, escrevi um texto para análise do grupo, onde falo sobre as três grandes sombras que acompanham a humanidade desde os primórdios da civilização, três elementos basilares do patriarcado: 1) a exploração do trabalho alheio (escravatura, jornadas abusivas, baixos salários, trabalho infantil, insalubre etc.); 2) a violência contra a mulher, nas suas mais diferentes manifestações (falta de liberdade, violência física, exploração sexual, exploração econômica etc.); 3) a concentração da propriedade e da renda por poucos em detrimento da maioria. Vou tratar aqui, com mais detalhe, o detalhe possível num artigo relativamente pequeno, da sombra que ainda paira sobre o mundo feminino.
Na pré-história (paleolítico e neolítico), os homens modernos (homo sapiens) tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil. O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais pareciam igualitárias, pois, nas tribos, ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e nem a dominação das mulheres pelos homens. Nos primórdios das cidades, com o enfraquecimento das sociedades tribais, a situação se modificou. Surgiu o trabalho escravo, o patriarcado e o casamento monogâmico, com a consequente limitação dos papéis femininos, e, aos poucos, firmou-se a propriedade privada, os fragmentos de territórios apropriados e dominados pelos patriarcas. Instalou-se a partir daí a trindade trevosa que comanda a humanidade desde então.
Apesar de tudo, precisamos ser indulgentes com a humanidade: numa situação indefesa, com conhecimentos limitados sobre o seu entorno, é compreensível o surgimento da tríade obscura. Para sobreviver num ambiente hostil, os humanos precisaram arrojar-se, tornar-se fortes e agressivos. A batalha pela sobrevivência acontecia todos os dias. Os humanos tornaram-se hábeis caçadores e desenvolveram armas úteis tanto para a caça como para a defesa. Tiveram que aprender a conviver com os fenômenos naturais agressivos e sobrepujá-los. Com o fortalecimento da família monogâmica e patriarcal, nos primórdios da civilização, a questão central da luta humana passou a ser a sobrevivência das famílias nas cidades. Nas tribos importava mais acentuadamente a sobrevivência do coletivo dos seus membros, a sobrevivência da própria tribo. A civilização acabou estreitando a ideia de coletividade, entendendo-a como um conjunto de famílias, o que se trata de uma redução simplista, que serviu para justificar a exploração do homem pelo homem. O teólogo e filósofo Leonardo Boff denominou esse primeiro momento da trajetória da humanidade de paradigma conquista.
Contudo, com o passar do tempo, a humanidade aumentou a sua capacidade de sobreviver a partir da expansão crescente do conhecimento sobre a natureza e dos avanços da tecnologia. Ela tinha tudo para deixar de lado essa competição insana, mas acabou entrando num círculo vicioso, onde a oposição entre proprietários e não proprietários, entre homens e mulheres e entre as diversas nacionalidades tornou-se uma constante. A guerra, violenta ou subliminar, tornou-se a forma de ser da civilização, embalada na ideia de que nem tudo dava para todos, embalada no medo permanente de uma possível escassez. As mulheres foram as que mais perderam nessa trajetória, pois elas praticamente se transformaram em propriedade dos homens, alienando a sua liberdade e a sua criatividade. A partir da civilização o mundo tornou-se essencialmente masculino e isso se cristalizou, transformou-se num tipo de vício, um vício difícil de ser largado.
Hoje, no século XXI, a inferiorização da mulher ainda é muito presente e, em muitos países, ela chega à beira da irracionalidade. No oriente ela é mais visível e mais absoluta, abrangendo amplos aspectos da vida cotidiana. No ocidente ela é mais sutil e se encontra mais claramente no mundo do trabalho. A exploração do trabalho feminino é maior e a sua remuneração menor é a ponta do iceberg desta questão. Outra forma sutil de exploração da mulher no ocidente encontra-se no campo da sexualidade, onde o corpo feminino transformou-se em valiosa mercadoria. Só um exemplo, tem muitos: as revistas eróticas são um grande negócio e as suas modelos são regiamente remuneradas, o inverso do que acontece nas fábricas e nas fazendas. O mercado produziu uma grande façanha: transformou a liberdade sexual conquistada com muita luta a partir dos anos 60 do século passado, em mercadoria com alto valor agregado. A condição feminina e a sexualidade humana continuam, ainda hoje, envoltas por uma grande sombra.
Hoje a humanidade precisa e tem plenas condições de superar o paradigma conquista, em função das imensas conquistas no campo da ciência e da produtividade da economia. Entendo também que a necessidade de mudança paradigmática passa com maior ênfase pela questão de gênero e que esta questão é, em última instância, espiritual, pois se trata de uma mudança profunda na forma de ser dos indivíduos e da sociedade. Acredito mesmo que a centralidade das questões contemporâneas está nas disputas, que remontam a ancestralidade do homo sapiens, entre os sexos masculino e feminino, no sentido de que prevalece até os dias de hoje uma compreensão majoritariamente masculina da realidade.
Para facilitar a compreensão do que quero dizer, lanço mão da milenar filosofia chinesa. Os chineses enxergam o universo como uma relação, uma relação de duas forças antípodas e, ao mesmo tempo, complementares. Basta observarmos a natureza, esta é a sabedoria chinesa: para que exista o frio tem que haver o quente, para o molhado há o seco, para o mole tem o duro, para o claro tem o escuro, para o triste tem o alegre, para o bom tem o ruim etc. De forma bem simples, eles dividem tudo e todos os fenômenos em dois grandes blocos: YIN e YANG (veja a figura abaixo).


Na figura são visíveis dois peixinhos do mesmo tamanho, harmoniosamente encostados um no outro. Um é branco e representa o aspecto solar masculino e o outro é preto e representa o aspecto lunar feminino. Um detalhe importante: O peixe branco tem um olho preto e o preto tem um olho branco, significando que o masculino também possui elementos do feminino e que o feminino também contém elementos do masculino, sugerindo uma complementaridade perfeita, apesar de todo o antagonismo. As características de Yin e Yang são opostas e complementares, como se pode ver no quadro abaixo.

UNIVERSO BIPOLAR
YIN
YANG
FEMININO
MASCULINO
CONTRÁTIL
EXPANSIVO
CONSERVACIONISTA
EXIGENTE
RECEPTIVO
AGRESSIVO
COOPERATIVO
COMPETITIVO
INTUITIVO
RACIONAL
SINTÉTICO
ANALÍTICO

Pelo quadro vemos que Yin, que representa o feminino, tem atributos opostos a Yang, que representa o masculino. Na sua conturbada trajetória, com destaque para os tempos pretéritos, a humanidade lançou mão com mais vigor dos atributos masculinos por conta do paradigma conquista, focando mais a necessidade de sobrevivência, e acabou obliterando os femininos, inclusive com a própria inferiorização da mulher, guardiã das energias Yin. A humanidade tornou-se majoritariamente Yang: agressiva, competitiva, racional, expansionista etc.
Nesta altura da história da humanidade, com tranquilidade, podemos concluir que, em última instância, as crises econômica, social e ambiental, vividas em todo o mundo, decorrem do desbalanceamento das duas energias primordiais, com a balança pendendo para o lado Yang, o que reforçou e ainda reforça o paradigma conquista. A sobrevivência da humanidade enquanto tal, depende da transição para um novo paradigma, o paradigma do cuidado. É preciso diminuir a competição e aumentar a cooperação, é preciso diminuir a agressão e aumentar a aceitação e assim por diante. E, o que é de muita importância, neste mundo conduzido pela ciência: é preciso dar vazão às outras formas de percepção da realidade, possibilitadas pela intuição, que é a contraparte feminina da racionalidade masculina. O começo da caminhada para o paradigma do cuidado é o resgate da dignidade feminina, uma tarefa ainda árdua para a humanidade, todavia imprescindível.
Caminhar rumo ao paradigma do cuidado significa que a humanidade precisa tornar-se mais afetiva e compassiva, dois atributos femininos.  E, por falar em homens mais compassivos: a compaixão é a essência  mais profunda do ser humano e ela se apresenta menos no campo material da existência e muito mais no campo do espírito, é um sair de si, um abandono positivo de si e um aproximar-se do outro, numa alteridade positiva, enxergando no outro “um igual” e ao mesmo tempo, “um diferente” e, sobretudo, aceitando a sua diferença, vendo no outro a si mesmo. Desaparece a separação e, extrapolando e extremando a dimensão da alteridade, quem é o outro? O outro são todos os seres que navegam na nave-mãe Terra. A partir daí, o homem abandona o seu papel de conquistador, de guerreiro, e assume o seu papel de cuidador, de jardineiro dos jardins da criação.
Para terminar, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, ofereço o poema de Victor Hugo, onde ele capta as essências masculina e feminina. Lembrando, sempre é bom lembrar: a mulher também guarda em sua alma a essência masculina e o homem a feminina. Somos seres muito complexos e esta é a beleza.

O Homem e a Mulher

O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter, no crânio, uma larva;
Sonhar é ter, na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.


Viva as mulheres! Viva os homens! Viva a igualdade!



quarta-feira, 2 de março de 2016

Os ventos de outono navegam as pipas

Zildo Gallo

Na minha infância, o outono era a estação das pipas. Acho que continua sendo. Passei a minha infância, a partir dos sete anos de idade, em Americana (SP), no bairro Vila Jones, e lembro-me que, assim que o verão começava a sua calorenta e não tão calorosa despedida, carregando com ele o período chuvoso, aí pelo final março, começavam a soprar os ventos favoráveis às pipas, o vento das pipas...


Naquela época, anos 60 e 70, no bairro onde morava, eu e todos os meninos construíamos as nossas pipas. Éramos muitos e muitas eram produzidas e alçadas aos céus todos os dias. Havia muita área livre nas proximidades da minha casa, mas o melhor lugar era um campo de futebol conhecido como Canto do Rio. O nome do campo era este por conta de ele se encontrar às margens do córrego Pyles, cujo nome homenageia uma das famílias confederadas que imigraram para o nosso país no século XIX, após o término da Guerra de Secessão. O campo não mais existe, mas ele segue vivo na minha memória e na dos meninos da minha infância longínqua.
Durante os dias, quase todos os dias, o Canto do Rio servia como palco das pelejas futebolísticas infantis e das pipas empinadas, alçando voos no céu aberto, ao sabor dos ventos suaves e das temperaturas amenas. Não eram só garotos que se divertiam com elas, mas eles eram a grande maioria. No outono de 1975, quando vivia o final da adolescência e caminhava celeremente para a idade adulta, quando cursava o terceiro ano do colégio no Kennedy (IEEPK), escrevi um poema sobre a pipa. Hoje, compreendo que isso foi um tipo de cântico de despedida, uma fotografia para a memória de tempos que ficariam cada vez mais distantes. Ao poema!

PIPA

Nave interestelar
planando mundos
distantes, perdidos,
serpenteando os ares
como se dançasse,
presa à terra
por frágil linha,
como a vida.

Pássaro-Inocência,
sonho, felicidade.
Tão frágil,
um vento forte... estrangula-o.
Tão forte,
carrega consigo uma vida.

Losangos, cubos,
círculos, águias.
Não importam as formas,
são apenas formas.

Zildo Gallo - Americana, SP, maio de 1975


A QUE VIM