Zildo Gallo
Com
a intenção de contribuir de forma mais efetiva para a compreensão sobre a
questão da gestão dos recursos hídricos no Brasil e no Estado de São Paulo, resolvi
transcrever na íntegra o capítulo que trata do assunto no meu livro Ethos, a grande morada humana: economia,
ecologia e ética (2007). Apesar de ser um tanto grande para o espaço de um blog, sendo
assim um tanto inadequado, acho que, àqueles que se interessarem, ele pode ser
bastante útil, pois se trata de um bom resumo sobre o tema. Além disso, por
conta da crise hídrica da atualidade, considero necessário que muitas pessoas
se interem do assunto. Para quem quiser um aprofundamento maior ainda, eu sugiro
a leitura da minha dissertação de mestrado (A
proteção das águas: um compromisso do
presente com o futuro: o caso da bacia do rio Piracicaba - 1995) e da minha
tese de doutorado (A defesa da qualidade
das águas da bacia do rio Piracicaba: o papel da CETESB e de todos nós -
2000), que se encontram disponíveis na biblioteca do Instituto de Geociências
da UNICAMP. Vamos ao capítulo:
Economia e natureza, um exemplo: a
construção de um sistema de gestão descentralizado e participativo para os
recursos hídricos no Brasil e no Estado de São Paulo
A água é
essencial à vida e está, cada vez mais, se transformando num elemento-chave
para a questão ambiental: “a sua ausência
ou contaminação, leva à redução dos espaços de vida e ocasiona, além de imensos
custos humanos, uma perda global de produtividade social” (DOWBOR, 2005, p.
27). A diminuição da quantidade de água
doce de boa qualidade no planeta implica num sério problema ambiental que
repercute sobre a sociedade e a economia de forma incisiva, dado que ela também
é um insumo de fundamental importância para a indústria e a agricultura.
As reservas
de água doce da Terra são constituídas por 98% de água salgada e só 2% de água
doce. Destes 2%, a maior parte, 87%, está congelada nas calotas polares e geleiras,
e a maior parte do restante encontra-se sob a terra, na atmosfera e nos
organismos vivos. Além de as reservas de água útil serem limitadas elas não
estão distribuídas uniformemente sobre a superfície do planeta (DOWBOR, 2005,
p. 28).
O Brasil
ostenta uma abundância de fontes de água doce, com mais de 70% localizadas na
Bacia Amazônica, o que representa 12,7% do total mundial. Com 7,32 trilhões de
metros cúbicos, o Brasil dispõe de mais água que a Rússia (4,5 trilhões), a
China (2,83 trilhões), o Canadá (2,79 trilhões) e os Estados Unidos (2,48
trilhões) (THOMAS, 2005, p. 122).
Embora a
água seja abundante em algumas regiões do Brasil, em outras há escassez. A
região semiárida do Nordeste, que concentra 28% da população, detém apenas 5%
dos recursos hídricos do país. A água potável tornou-se escassa nas áreas
industrializadas do Sul e Sudeste, que concentram cerca de 60% da população,
por conta da poluição. As estiagens também são fenômenos recorrentes. Todos
esses fatores contribuem para aumentar a complexidade da gestão das águas no Brasil
(THOMAS, 2005, p. 123).
A
disponibilidade e a distribuição irregular da água doce no planeta e no Brasil
e a piora da qualidade da água doce, uma realidade inquestionável nos dias de
hoje, que tem como causa a poluição, que tanto pode ser de origem urbana, como industrial
e agrícola, produzem transtornos econômicos, sociais e ambientais complexos.
Isto posto, coloca-se a necessidade premente, para todos os países, de se
organizar sistemas de gestão de águas.
Dowbor
(2005, p. 34) avalia que o setor de água e saneamento não sofre da falta de
conhecimentos técnicos e, segundo ele, o seu problema nem sequer é de
financiamento. Para ele é a dinâmica de regulação do setor que é totalmente
inadequada. O eixo das transformações necessárias está na democratização dos
processos decisórios.
O ponto de
partida da gestão dos recursos hídricos é a questão dos seus múltiplos usos e
dos conflitos deles decorrentes. O ponto de chegada é a descentralização e a
gestão comunitária, com a adoção da bacia hidrográfica como unidade de
gerenciamento. A avaliação dos problemas oriundos da centralização e
setorização das decisões – o caso do Brasil e do Estado de São Paulo – e as
informações sobre os modelos adotados em outros países, indicam que a gestão
descentralizada, por bacia hidrográfica, e participativa é a forma mais
adequada de administrar o uso da água.
Construindo uma nova metodologia: a bacia
hidrográfica como unidade de gestão
A
centralização na administração dos recursos hídricos é inadequada para resolver
os problemas locais de gestão da água. O papel dos governos deverá mudar, no
sentido de promover uma participação maior de indivíduos e instituições locais,
tanto públicas quanto privadas. O princípio básico é que, independente da
situação, as águas devem ser geridas da forma mais descentralizada possível.
Neste sentido, é necessário que as equipes de gestão incluam representantes de
todos os setores da sociedade. As experiências têm mostrado que, quanto mais
descentralizada é a administração, melhor é o aproveitamento da água. Os
princípios da descentralização e da participação coadunam-se com o enfoque da
bacia hidrográfica como unidade de gestão.
A tendência
moderna do planejamento dos recursos hídricos dá-se no sentido de não se
considerar, a priori, nenhuma
utilização preferencial, mas de contemplar diversos usos, de acordo com uma
perspectiva de gestão global, buscando uma utilização racional de cada bacia.
As bacias devem ser consideradas como um todo indivisível, cujo aproveitamento
deve dar-se da forma mais otimizada possível, com o objetivo de buscar um
melhor desenvolvimento econômico e social para as respectivas regiões, partindo
do conhecimento das características e necessidades locais. Nesse sentido, o
Artigo 11 da Carta Europeia da Água, de maio de 1968, estabeleceu a seguinte
orientação: “Art. 11. A gestão dos recursos
hídricos deve inserir-se no âmbito da bacia hidrográfica natural e não no das
fronteiras administrativas e políticas”.
A
Conferência de Caracas, promovida pela Associação Internacional de Direito das
Águas (AIDA), em 1976, também recomendou a adoção da bacia hidrográfica como
unidade de gestão dos recursos hídricos, sem prejuízo, contudo, da existência
de outras unidades geográficas de gestão (relacionadas, por exemplo, com o
desenvolvimento socioeconômico) mais amplas e não coincidentes com as áreas das
bacias (GRANZIERA, 1993, p. 28-29).
Usos múltiplos, escassez e cobrança pelo
uso das águas.
A água
apresenta várias possibilidades de utilização. Além de ser um recurso vital,
serve ao aproveitamento hidrelétrico, à navegação, ao abastecimento das cidades
e indústrias, das quais recebe efluentes domésticos e industriais etc. E,
quando um curso de água se presta a diversos usos, podem surgir conflitos, pois
existem rivalidades no uso de recursos escassos. Com frequência o crescimento
das populações urbanas compete e conflita com a atividade produtiva em relação
ao uso da água. A Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH)
manifestou-se sobre a questão, em 13 de novembro de 1987, através da Carta de Salvador:
A água, pelo
importante papel que desempenhou no processo de desenvolvimento econômico e
social, é um bem econômico de expressivo valor, sujeito a conflitos entre seus
usuários potenciais.
Assim, o País
deve valorizar as oportunidades de aproveitamento de recursos hídricos para
múltiplas finalidades – abastecimento urbano, abastecimento industrial,
controle ambiental, irrigação, geração de energia elétrica, navegação,
piscicultura, recreação e outras – analisando seus empreendimentos em contextos
de desenvolvimento regional integrado, e contemplando vários objetivos,
principalmente de natureza econômica, social e ambiental.
O Código de
Águas, de 1934, também enfocou a questão dos usos múltiplos, quando dispôs, nos
artigos 37 e 38, que o uso das águas públicas deveria realizar-se sem prejuízo
da navegação, desde que se destinasse ao comércio. No Artigo 143, dispôs os
interesses a serem considerados nos aproveitamento de energia: a) da
alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas; b) da navegação; c)
da irrigação; d) da proteção contra inundações; e) da conservação e livre
circulação de peixe; f) do escoamento e rejeição das águas.
Sem nunca
desconsiderar a importância das leis que regem a matéria, no estudo dos usos
múltiplos, deve-se sempre levar em consideração as particularidades das bacias
hidrográficas. Não dá para adotar uma hierarquia genérica para o uso das águas,
pois cada aquífero tem características próprias. Devem ser considerados os
aspectos hidrológicos, geográficos, políticos e econômicos. Esta é uma das
razões, como veremos mais à frente, da adoção da bacia hidrográfica como
unidade físico-territorial de gestão das águas, com a participação das
comunidades locais.
A questão
da disponibilidade de água, para algumas bacias do Estado de São Paulo, por
exemplo, nos anos mais recentes, tem se colocado de forma ostensiva. Além da
bacia do Piracicaba, as bacias do Capivari, do Jundiaí, do Alto Tietê e da
Baixada Santista enfrentam este tipo de problema. A intensa industrialização
que se fez acompanhar por um processo de urbanização não menos vigoroso é a
causa desse fenômeno. Nucci (1993,
p. 13) ajuda a dimensionar o problema:
Então, uma
discussão inicial sobre os recursos hídricos na Região Metropolitana de São
Paulo revela que, apesar de ser uma região com chuva abundante – a média das precipitações
na bacia do Alto Tietê é pouco mais de 1300 mm , o que é uma média alta de precipitação
-, a área da bacia de captação dessa precipitação é pequena e as bacias em toda
a volta também são pequenas, portanto, há uma escassez relativa pronunciada. Poucas
cidades do mesmo porte enfrentam o desafio, em relação aos recursos hídricos
enfrentados por São Paulo.
Agora, esse
problema de escassez, é uma visão de hoje. Certamente não foi a visão de São
Paulo de Anchieta e Nóbrega e nem mesmo dos primeiros séculos seguintes.
Obviamente essa condição depende do tamanho que São Paulo acabou alcançando.
Hoje, a Grande São Paulo atende cerca de 15 milhões de habitantes; abriga, num
território que é um centésimo do território Nacional, cerca de mais de 10% da
população, algo entre 30 e 40% do produto nacional bruto e outro tanto de toda
produção industrial. Só para relembrar rapidamente os usos da água e a água
como recurso hídrico, nessas condições, a água deixa de ser abundante e, na
linguagem dos economistas e engenheiros, passa a ser chamada de recurso
hídrico. Como tal passa a ser considerada como um bem econômico e um objeto de
preocupação da economia, buscando-se assegurar que seu uso se dê da forma mais
produtiva possível.
No Brasil,
um país de cultura urbana recente, a água encontra-se associada fortemente à ideia
de abundância. O conceito água grátis
encontra-se profundamente enraizado na cultura do povo brasileiro. As baixas
tarifas cobradas pelos serviços públicos que, muitas vezes, mal cobrem os
custos de captação, tratamento, distribuição da água e manutenção dos
respectivos serviços, acabam encorajando um grande desperdício e, por consequência,
um desprezo pela conservação e proteção dos recursos hídricos.
Tendo em
vista que a intensificação dos usos, principalmente dos consuntivos (irrigação,
abastecimento urbano e industrial), que, em larga medida não retornam para os
corpos d’água, e da diluição de efluentes domésticos e industriais não
tratados, tem tornado cada vez mais escassa a existência de água de boa
qualidade para consumo humano, a sua proteção faz-se cada vez mais necessária.
É neste sentido que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos se coloca hoje em
dia.
A cobrança
pelo uso das águas é um instituto novo no mundo e novíssimo no Brasil. Entretanto,
o fundamento legal para a cobrança pelo seu uso remonta ao Código Civil de
1916, quando se estabeleceu a utilização dos bens públicos de uso comum podia
ser gratuita ou retribuída. No mesmo sentido, o Código de Águas de 1934
estabeleceu que o uso comum das águas pode ser gratuito o retribuído.
Posteriormente, a Lei 6.938 de 1981 incluiu a possibilidade de imposição, ao
poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos
causados e, ao usuário, da contribuição pelo uso de recursos ambientais com
fins econômicos. Finalmente, em 1997, através da Lei 9.433 ficou definida a
cobrança como um dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos. A Lei
9.984/2000, que criou a Agência Nacional de Águas (ANA), atribuiu a ela a
competência da cobrança pelo uso das águas de domínio da União.
A Carta Europeia
da Água, proclamada pelo Conselho da Europa em Estrasburgo, França, em maio de
1968, em seu artigo 10, considerou que “a
água é um patrimônio comum, cujo valor deve ser reconhecido por todos” e
que “cada um tem o dever de economizá-la
e utilizá-la com cuidado” (BEZERRIL JR., 1989, p. 6). A Declaração de
Dublin, em janeiro de 1992, estabeleceu no seu princípio número quatro que os
recursos hídricos de um país são um bem de valor (GRANZIERA, 1993, p. 32). A Agenda 21, que resultou da Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de
Janeiro, em junho de 1992, também recomendou a cobrança pelo uso dos recursos
hídricos.
Para o
Estado de São Paulo, a sua Constituição em vigor estabelece, no Artigo 211, a cobrança pela
utilização dos recursos hídricos, e a Lei 7.663/91, no Artigo 3o,
inciso III, considera o “recurso hídrico
como um bem público, de valor econômico, cuja utilização deve ser cobrada,
observados os aspectos de quantidade, qualidade e as peculiaridades das bacias
hidrográficas”. A Lei estabelece que,
na sua regulamentação, com relação à cobrança pelo uso ou derivação, deverão
ser obedecidos os critérios que seguem: a classe de uso preponderante em que
for enquadrado o corpo de água onde se localiza o uso ou derivação, a
disponibilidade hídrica local, o grau de regularização assegurado por obras
hidráulicas, a vazão captada em seu regime de variação, o consumo efetivo e a
finalidade a que se destina.
Para a
cobrança pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, conforme a mesma
lei, deverão ser respeitados os seguintes critérios: a classe de uso em que for
enquadrado o corpo d’água receptor, o grau de regularização assegurado por
obras hidráulicas, a carga lançada e seu regime de variação, ponderando-se,
dentre outros, os parâmetros orgânicos e físico-químicos dos efluentes e a
natureza da atividade responsável pelos mesmos.
A cobrança
pela diluição, transporte e assimilação de efluentes, baseada no princípio poluidor-pagador, é um dispositivo
que possui muitas deficiências. Contudo, goza de grande popularidade, derivada
da conjunção de vários fatores: ele faz apelo à noção de justiça, recorre aos
automatismos do mercado e não a uma burocracia especializada, prometendo uma
solução ótima e contribuindo com o mito da “racionalidade econômica”. Um
problema que se coloca é como avaliar o custo da poluição. Parece perigoso
tentar legitimar atentados ao ambiente que comprometem o funcionamento dos
ciclos ecológicos dos quais dependem a reprodução dos recursos renováveis; se
tais atentados forem de caráter irreversível, o dano não é passível de cálculo.
Contudo, o exposto acima não inviabiliza de forma definitiva a utilização do princípio poluidor-pagador conforme
observa Sachs (1986, p. 36):
A análise
sumária que fizemos mostra o quanto é difícil internalizar o ambiente ao nível
do sistema de preços. Uma política ativa de proteção ambiental não pode
dispensar medidas de intervenção administrativa, o que não impede em absoluto
que, dentro de limites precisos, o Estado possa servir-se do sistema de preços
como um dos instrumentos na panóplia dos meios empregados. A experiência
francesa da administração de bacias hidrográficas mostra as possibilidades e as
limitações de tal abordagem.
Experiências internacionais em gestão de
recursos hídricos
A
experiência internacional na gestão das águas é muito variada, sendo difícil a
identificação de regras generalizantes. Entretanto, algumas características
comuns tendem a se estabelecer como diretrizes necessárias ao estabelecimento
de um bom sistema de gestão: a bacia hidrográfica como unidade administrativa,
a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e a participação dos usuários entre
os responsáveis pela gestão. Um estudo realizado pela Fundação do
Desenvolvimento Administrativo – FUNDAP (1992, p. 36) tira uma lição importante
da observação sobre as experiências estrangeiras:
(...) se de
um lado existem grandes princípios a serem adotados, por outro lado, a forma
como de estrutura a gestão está intimamente ligada às características ambientais,
às formas de uso do recurso hídrico, ao histórico das experiências
institucionais do país, ao tipo de organização político social vigente etc.
Na verdade,
no que se refere à gestão das águas, os países adotam arranjos institucionais
os mais variados possíveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, há grande
diversidade de arranjos: “as Comissões de
bacias hidrográficas tanto podem ser fruto de composições entre Estados e
Federação, como entre Agências de bacias, totalmente locais ou ainda totalmente
federais” (FUNDAP, 1992, p. 37).
O Japão e a
Holanda também adotam arranjos diversos. Nestes dois países, a importância
atribuída aos recursos hídricos acabou implicando na instituição de diferentes
níveis de centralidade da gestão. O Governo Central Holandês atribui a si mesmo
a responsabilidade pelos rios de importância nacional e internacional e canais
relevantes, como o de Amsterdã, por exemplo. Cursos d’água menos importantes
são gerenciados pelas províncias, que podem delegar responsabilidades a
agências regionais. Existem, ainda, organizações autônomas e locais. No Japão
as agências podem estar vinculadas ao governo central ou às prefeituras,
conforme a importância do curso d’água (FUNDAP, 1992, p. 37).
É
importante notar que, de qualquer maneira, prevalece uma tendência, não muito
recente, de se estruturar sistemas que permitem a gestão de forma
regionalizada, por bacias hidrográficas. Isso tem propiciado na França, por
exemplo, considerável autonomia financeira e política às agências de regionais
de gerenciamento das águas.
A experiência francesa na gestão dos
recursos hídricos
Na França,
assim como no Brasil vários órgãos e instituições atuam na área dos recursos
hídricos. O Ministério do Meio Ambiente é responsável pelo planejamento e
regulamentação, cuidando da compatibilização do desenvolvimento econômico com o
meio ambiente e a gestão das águas. Outros ministérios também atuam, ainda que
setorialmente, sobre os recursos hídricos, como Saúde (normas sanitárias),
Transporte (navegação) e Indústria (eletricidade).
Todos os
protagonistas que atuam na questão das águas, os municípios, a indústria, os
agricultores, o turismo, a pesca profissional e amadora, as associações
preservacionistas, com seus distintos interesses podem se expressar graças aos
dispositivos da Lei das Águas, de 12 de dezembro de 1964. Devido a esta
legislação a França dispõe hoje de um sistema de gestão descentralizado e eficaz
(MONTICELI, 1992, p. 6).
Até o
começo dos anos 1960, a
gestão francesa dos recursos hídricos baseava-se num conjunto de textos e
regulamentos que se transformaram, ao longo dos anos, num labirinto jurídico.
Havia uma grande dispersão de responsabilidades. A regulamentação sobre o
combate à poluição era incompleta, esparsa e setorial. Havia, até mesmo,
contradições entre as ações de diferentes administrações, o que não permitia
encontrar solução para alguns problemas.
A crescente
diminuição de fontes de abastecimento com qualidade adequada, provocada pelo
aumento substancial dos poluentes, obrigou o legislador a modificar esse
sistema de gestão. Segundo relata Duc (1992, p. 41), naquele momento, duas opções foram analisadas: “ignorar a organização administrativa
anterior e confiar a gestão a uma única administração nova, dotada dos
instrumentos regulamentares necessários”, ou , “manter a organização anterior para o essencial e criar um dispositivo
inovador para dar à gestão dimensões técnica, política, econômica e financeira,
simultaneamente”. A segunda opção foi adotada pela Lei das Águas de 1964.
A nova
dimensão técnica consiste em administrar as águas não mais setorialmente, mas
considerando seus problemas em nível de bacia hidrográfica. A dimensão política
consiste em se decidir os trabalhos de despoluição necessários pelos próprios
usuários dos recursos hídricos, agrupados em organismos denominados comitês de
bacias. A dimensão econômica e financeira busca incitar à despoluição através
do princípio poluidor-pagador: os poluidores são penalizados por cotizações
obrigatórias a um fundo de investimento, onde os encargos são fixados em função
dos trabalhos a realizar e dos inconvenientes que sua poluição ocasiona; os que
executam os trabalhos de despoluição são financiados por esse fundo. Comitês de
bacia e agências da água foram criadas em cada uma das seis grandes bacias
hidrográficas francesas: Adour-Garonne, Loire-Bretagne, Rhône-Mediterranée-Corse,
Siene-Normandie, Artois-Picardie e Rhin-Meuse.
O comitê de
bacia é o organismo que decide a política da água a vigorar na bacia. Trata-se
de um “Parlamento das Águas”, que se organiza da seguinte forma: 20% dos
membros são representantes do estado e os outros 80% são representantes dos
municípios e dos usuários dos recursos hídricos, seja como consumidores ou como
poluidores.
A agência
da água é uma entidade pública descentralizada e dotada de autonomia
financeira. A sua finalidade é dar suporte técnico e financeiro ao comitê e às
empresas, públicas ou privadas, que executam serviços, operações e obras
necessárias ao controle da poluição. A gestão de cada agência está a cargo de
um conselho de administração indicado pelo comitê. Os seus recursos financeiros
provêm da cobrança pelo uso das águas, que se dá na proporção da água utilizada
e pela contaminação produzida no meio receptor.
A cobrança
pelo uso da água é, no sistema francês, um instrumento importante na política
de luta contra a poluição das águas. Sua originalidade está em estimular os que
poluem a observar o interesse coletivo, dando-lhes condições de opinarem sobre
o destino dos recursos arrecadados. Outra originalidade está em garantir a
obtenção de um recurso estável para o financiamento dos programas. Uma terceira
originalidade está na criação de um gerente único e independente da
administração do estado.
Existem
poucas controvérsias a propósito do modelo francês ser a principal fonte de
inspiração dos sistemas institucionais que estão em implantação no Brasil, seja
a conformação geral delineada pela Lei Nacional no 9.433/97
ou as variações sobre o tema aplicadas pelas unidades federativas, à luz de
suas especificidades regionais. A formação de comitês de bacia e de agências de
água adquiriu uma grande força; tornaram-se unanimidade, o que sem dúvida, com
o passar do tempo deverá contribuir para o sucesso o modelo de gestão das
águas.
A experiência alemã na gestão dos recursos
hídricos: o caso da bacia do rio Ruhr
Na
Alemanha, ao contrário da França, não existe um único formato para todo o país
para a gestão dos recursos hídricos. Apenas no Estado do Norte do
Reno-Westfália (Nordeshein-Westfalen)
são encontradas instituições semelhantes a da França. As associações de bacias,
nesse Estado, remontam ao início do século XX, sendo a do rio Emscher fundada
em 1904 e a do Ruhr em 1911.
A legislação atual do Norte do Reno-Westfália obriga os
usuários à participação nas associações e ao cumprimento com as obrigações dos
pagamentos pelo uso das águas. A cobrança pelo uso das águas dá-se tanto pelo
lançamento de efluentes como pela derivação de água pelos usuários. Os recursos
arrecadados destinam-se às associações de bacia, que são órgãos autárquicos
controlados pelo governo estadual, mas que são dotados de ampla autonomia administrativa
(ALBRECHT, 1992a, p. 52).
Nos outros
estados da Alemanha, a água derivada não é objeto de cobrança, apenas o
lançamento de efluentes é onerado. Os recursos auferidos são revertidos ao
estado, para um fundo específico, cuja utilização vincula-se a programas de despoluição
(FUNDAP, 1992, p. 40). Esses recursos são, então, emprestados aos municípios e
consórcios de municípios, que são responsáveis pelo tratamento de esgotos. A
reunião de municípios em consórcios acaba sendo necessária, no sentido de “melhorar a eficiência econômica e gerencial
dos projetos, obras e ações”, conforme observa Monticeli (1992, p. 9).
O
Ruhrverband, associação da bacia do rio Ruhr, ao contrário da agência de bacia
francesa, executa obras, opera reservatórios e estações de tratamento,
responsabiliza-se pelo controle e monitoramento de efluentes etc. São
associados do Ruhrverband todos os que poluem a bacia do Ruhr, assim como as
empresas públicas de abastecimento de água. Internamente ele está estruturado
em departamentos e seções para projetar, supervisionar construções e operar
todas as instalações técnicas (ALBRECHT, 1992a, p. 52-53).
O
Ruhrverband desenvolve seu sistema de cobrança pelo uso da água há décadas,
distribuindo os custos da associação entre seus associados, de acordo com a
poluição causada ou conforme os benefícios recebidos, como no caso das empresas
públicas de abastecimento de água. A partir de 1976, foi criada uma tarifa
federal de efluentes a ser paga por todos os proprietários de estações de
tratamento de efluentes. A taxa é paga de acordo com a poluição residual do
efluente e, sobre ela, Albrecht (ALBRECHT, 1992b, p. 117) faz os seguintes
comentários:
Vale
ressaltar que não se compra uma licença para poluir ao pagar a taxa de
lançamento de efluentes. Os requisitos mínimos deverão ser cumpridos em todos
os casos, em todo o território nacional. Há apenas a possibilidade de se
negociar o período de tempo a ser concedido a determinada fábrica para que esta
adapte ou expanda suas instalações a fim de alcançar os padrões vigentes. Em
caso de águas receptoras sensíveis, as condições poderão ser ainda mais rigorosas.
A gestão dos recursos hídricos no Brasil
antes da Lei 9.433/97
O
gerenciamento de recursos hídricos compreende um conjunto significativo de
atividades que vai do planejamento e administração do aproveitamento múltiplo,
controle e proteção das águas, até a articulação dos interesses, geralmente
conflitantes, da complexa rede de agentes, composta por órgãos públicos,
empresas privadas etc. para Amaral “o
desafio do sistema de gerenciamento dos recursos hídricos é o de conseguir
fazer o pacto entre os diferentes atores” (AMARAL, 1993, p. 48).
As
tendências atuais do planejamento e da administração dos recursos hídricos
apontam para uma visão holística da água. Devem ser levadas em consideração as
águas superficiais e as subterrâneas e, nos projetos de aproveitamento hídrico,
deve sempre ser avaliado o binômio quantidade-qualidade. A Declaração de
Amsterdã, exarada pelo Segundo Tribunal Internacional da Água, em março de
1992, aponta o direito à sobrevivência sustentada, tanto para as gerações presentes
quanto para as futuras, incluindo a disponibilidade de água em quantidade e
qualidade suficientes, e enfatiza o direito assegurado às populações atingidas
por um curso d’água de serem informadas sobre os projetos e obras que venham a
utilizar-se dele e de participarem das decisões que envolvem os recursos
hídricos (GRANZIERA, 1993, p. 26-27).
Nucci
(1993, p. 20), falando sobre os objetivos da gestão das águas, observa que,
historicamente, o primeiro objetivo buscado foi o da eficiência econômica e
que, posteriormente, “começou-se a verificar
que a eficiência econômica poderia não ser a única forma de resolver os
problemas econômicos, em face dos conflitos sociais que se estabeleciam, e
passou-se a estabelecer um segundo objetivo: a diminuição das desigualdades
regionais”. O autor refere-se à gestão de águas nos Estados Unidos para
exemplificar sua argumentação, afirmando que o New Deal do Presidente Roosevelt, importante instrumento de luta
contra a depressão na década de trinta, definiu as ações no sentido da
diminuição das desigualdades sociais e da pobreza no vale do Tennessee. Sobre a
consolidação e permanência do segundo objetivo e, posteriormente, o surgimento
de um terceiro, Nucci (1993, p. 21) tem o seguinte a dizer:
Mais tarde, o
Conselho Nacional de Recursos Hídricos dos Estados Unidos adotou estes
objetivos numa norma de planejamento e gestão: primeiro objetivo, eficiência
econômica; segundo, a diminuição das desigualdades regionais, hoje, na
literatura internacional identificado ou ligada à distribuição de renda de modo
geral.
Mais recentemente,
criou-se um terceiro. A primeira vez que surgiu nos Estados Unidos, foi em
versão de 1962, desenvolvida pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos,
enviado ainda pelo Presidente Kennedy ao Congresso dos Estados Unidos. O
terceiro objetivo definido foi a preservação e melhoria do meio ambiente. Outros
– constituindo o quarto conjunto de objetivos – estão sendo e podem vir ainda a
ser explicitados, à medida que as demandas da sociedade forem se tornando mais
bem definidas e melhor equacionadas.
No Brasil,
o Código de Águas de 1934 foi muito audacioso, contudo ele teve uma preocupação
fundamentalmente voltada para resolver um tipo de problema, o quantitativo,
como observa Granziera (1993, p. 49):
Pelo que
podemos inferir da análise do Código de Águas de 1934 e alterações posteriores,
não houve uma grande preocupação com a água enquanto recurso natural passível
de proteção contra a poluição, e cuja utilização deve observar princípios de
utilização e gerenciamento internacionalmente aceitos, o que se justifica pela época
em que foi concebido. Mesmo assim, o Código de Águas já contemplou alguns
dispositivos tendentes à utilização múltipla dos Recursos Hídricos, embora embrionários.
O Estado de
São Paulo foi pioneiro no País na preocupação de estabelecer critérios, condições
e parâmetros de acesso à água, tendo em vista a sua qualidade. Na década de 50
do século passado começaram os primeiros esforços nesse sentido. Em dezembro de
1951 foi criado o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), que tinha
como principal objetivo o estabelecimento da política estadual de recursos hídricos.
O DAEE possuía uma visão mais moderna da gestão dos conflitos oriundos dos
múltiplos usos das águas, inspirado na experiência americana dos anos 30 do
século passado, e iniciou a organização pública do aproveitamento dos recursos
hídricos e da arbitragem dos conflitos estabelecidos, conforme relata Rui
Brasil Assis (1992, p. 18):
O conceito de
aproveitamento múltiplo no Estado nasceu praticamente com a atuação do DAEE.
Baseado na experiência do Tennessee Valley Autority (TVA), implantado em meados
da década de 30, tendo como objetivo o desenvolvimento daquela região, foi
implantado no Vale do Paraíba um programa de planejamento integrado, embasado
na execução de obras hidráulicas para permitir o aproveitamento hidroagrícola
das extensas várzeas e promover o desenvolvimento regional antes sustentado
pela produção cafeeira.
Nas décadas
de 1960 e 1970, o governo do Estado de São Paulo adotou uma política de criação
de companhias de economia mista, destacando-se os seguintes empreendimentos:
Centrais Elétricas do Estado de São Paulo (CESP); incorporação da Companhia
Paulista de Força e Luz (CPFL); Companhia de saneamento Básico do Estado de São
Paulo (SABESP); Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB).
Conforme
Assis (1992, p. 19), numa avaliação rápida dessas companhias, pode-se concluir
que aconteceu uma considerável eficiência setorial, mas acontecendo, como
contrapartida, “um enfraquecimento do
prestígio do DAEE enquanto autarquia de gestão da política de recursos
hídricos". Ao mesmo tempo, instalou-se "um quadro cada vez mais diversificado de apropriação de recursos
hídricos no âmbito do próprio estado com conflitos institucionais, sem que
fossem previstos ou implantados mecanismos de articulação”.
Para Nucci (1993,
p. 28) a atuação inicial do DAEE deu-se no sentido de "criar quadros para poder enfrentar o problema no mesmo nível em
que vinha enfrentando setorialmente, por exemplo, pela antiga Light - hoje
Eletropaulo - desde o começo do século". Ainda segundo ele, "até a década de 70, houve um quase
absoluto predomínio da gestão em função do uso da geração hidrelétrica".
Somente a partir daí é que efetivamente começou a se contestar esse tipo de
predomínio, que se baseava exclusivamente no princípio da eficiência econômica.
Para Helena
Kerr do Amaral (1992, p. 3), a gestão dos serviços de água e esgotos no Brasil
passou, nas últimas décadas, por um processo de centralização e de "excessiva setorialização das
políticas, o que permite que alguns setores imponham política prejudicial aos
usos múltiplos da água”. A
extrema centralização decisória e financeira acabou desenvolvendo um modelo
rígido de gestão e facilitando a fragmentação excessiva das políticas para os
recursos hídricos. O fortalecimento das políticas setoriais deu-se num ambiente
de industrialização e urbanização acelerada, principalmente nos anos 1970,
decorrendo daí um quadro de degradação ambiental preocupante em diversas
regiões, dada à existência de atividades produtivas altamente consumidoras e
degradadoras dos recursos naturais, principalmente da água.
Amaral (1993,
p. 49) observa que, a partir da década de 1980, o Governo Federal avançou na
legislação do setor ambiental. Entretanto, tal fato não possibilitou alterações
significativas no quadro da utilização dos recursos naturais, pois “todas as agencias criadas para dar conta da
questão ambiental foram criadas já num momento de desmonte do Estado”. Nos
últimos anos da década, a administração federal não foi capaz de implementar
políticas para o setor. Desse modo, o Brasil saiu “da transição de governos autoritários centralizadores tecnocráticos
para a ausência de políticas governamentais no nível federal”.
A crise do
financiamento das políticas e o crescimento das preocupações com os problemas
ambientais colocaram uma nova agenda para os gestores. No centro da agenda está
a questão da compatibilização dos interesses dos diferentes atores,
afastando-se, ao mesmo tempo, da gestão centralizada e setorizada e das formas
fragmentadas e isoladas da velha gestão municipal.
A bacia hidrográfica como unidade de gestão
no Brasil
No Brasil,
a introdução, ainda que limitada da bacia hidrográfica como unidade de gestão
deu-se em 1976, quando, através de um acordo entre o Ministério das Minas e
Energia e o Governo do Estado de São Paulo, instalaram-se um Comitê Especial,
presidido pelo Secretário de Obras e do Meio Ambiente do estado de São Paulo e
contando com a participação de dirigentes da ELETROBRAS, DNAEE, DAEE, CETESB,
SABESP, ELETROPAULO, e EMPLASA, e um Comitê Executivo, presidido pelo
Superintendente do DAEE e contando com representantes das entidades
participantes do Comitê Especial.
O
comprometimento da geração hidrelétrica na Usina Henry Borden, que funciona com
a reversão das águas da bacia do Alto Tietê, através do canal do rio Pinheiros
e represa Billings, em razão do agravamento da poluição por efluentes
domésticos e industriais não tratados na Região Metropolitana de São Paulo
(RMSP), associado aos problemas de controle de inundações e de abastecimento de
água na RMSP, propiciou o início dessa experiência pioneira no planejamento dos
recursos hídricos no Brasil. Conforme Assis (1992, p. 19), “a experiência desses colegiados foi bastante rica e proveitosa”.
Ao Comitê Executivo foi atribuída a elaboração de estudos referentes ao aproveitamento,
controle e proteção das águas das bacias do Alto Tietê e Baixada Santista, que
foram apresentados ao Comitê Especial para deliberação. A integração no mesmo
fórum dos órgãos com atribuições no campo dos recursos hídricos mostrou-se
possível.
Posteriormente,
em 1979, o Governo Federal, inspirado nos resultados do Acordo Ministério das
Minas e Energia – Governo do Estado de São Paulo, através da Portaria
Interministerial no 3, assinada pelos ministros de Minas e
Energia e do Interior, criou o Comitê Especial de Estudos Integrados de Bacias
Hidrográficas (CEEIBH). Subordinados ao CEEIBH seriam criados Comitês
Executivos de Estudos Integrados para cada uma das bacias hidrográficas de rios
federais onde se fizessem necessários.
Instalaram-se
no Brasil diversos comitês executivos subordinados ao CEEIBH, cinco dos quais
com a participação do Estado de São Paulo, a saber: CEEIVAP – Comitê Executivo
de Estudos Integrados da Bacia do Rio Paraíba do Sul (São Paulo, Rio de Janeiro
e Minas Gerais), criado em 1979; CEEIPEMA – Comitê Executivo de Estudos
Integrados da Bacia do Rio Paranapanema (São Paulo e Paraná), criado em 1979;
CEEIJAPI – Comitê Executivo de Estudos Integrados das Bacias dos Rios Jaguari e
Piracicaba (São Paulo e Minas Gerais), criado em 1982; CEEIGUAPE – Comitê
Executivo de Estudos Integrados da Bacia do Rio Ribeira do Iguape (São Paulo e
Paraná), criado em 1984; CEEIGRAN – Comitê Executivo de Estudos Integrados da
Bacia do Rio Grande (São Paulo e Minas Gerais).
Conforme Assis
(1992, p. 20), esses comitês tiveram
atuações diferenciadas e, dentre eles “destaca-se
a maior regularidade nos trabalhos do CEEIVAP e CEEIPEMA”. Todavia, a
partir de 1985, quando apareceram muitas críticas e surgiu uma tentativa de
revisão da estrutura dos comitês, o CEEIBH não mais se reuniu, ficando os
comitês de bacia atuando por conta própria.
A principal
crítica que se tem a fazer da experiência desses colegiados é a de que a
participação acabou ficando limitada a órgãos e entidades oficiais da União,
estados e, eventualmente, dos municípios. Como pontos positivos destacam-se o
significativo avanço na conscientização dos técnicos sobre a necessidade de
gerenciamento integrado dos recursos hídricos e o reforço da bacia hidrográfica
como unidade territorial de planejamento.
Também
foram importantes os diversos encontros nacionais de órgãos gestores de
recursos hídricos. O primeiro aconteceu em outubro de 1984, na sede do
Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), em São Paulo. Posteriormente ,
outros encontros, com o objetivo de discutir o gerenciamento de recursos
hídricos no Brasil, foram realizados, na ordem que segue: Belo Horizonte;
dezembro de 1984; Salvador, setembro de 1985; Porto Velho, janeiro de 1986.
Como
desdobramentos resultantes desses encontros, destacam-se: o surgimento da
primeira proposta de instituição de um Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos (SINGREH) e a instituição, no âmbito do Ministério das Minas
e Energia, de um grupo de trabalho para estudar e propor a organização desse
sistema (Portaria MME de junho de 1986).
Mais
adiante, em 1988, a
Constituição Federal previu, no seu Artigo 21, Inciso XIX, a instituição de um
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, que se tornará possível
a partir da Lei 9433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política
Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos. A aprovação da Lei 9.433/97 resultou de um intenso processo
de debates e articulações, envolvendo os poderes executivo, legislativo e
setores da sociedade civil organizada, que se desenvolveu ao longo de seis
anos, iniciado em 1991, quando o poder executivo enviou para o Congresso
Nacional o Projeto de Lei 2.249/91.
De acordo
com o Artigo 1o da Lei 9433/97, a Política Nacional de
Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: a água é um bem de
domínio público; a água é um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico; em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é
o consumo humano e a dessedentação de animais; a gestão dos recursos hídricos
deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; a bacia hidrográfica é a
unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos
Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; a
gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a
participação do poder Público, dos usuários e das comunidades. Dentre os
diversos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, cabe destacar
a cobrança pelo uso das águas, Artigo 5o, Inciso IV.
Durante o
longo período de tramitação do Projeto de Lei 2249/91, que vai de 1991 a 1997, aconteceram
várias implantações de sistemas estaduais de gerenciamento dos recursos
hídricos: São Paulo, 1991; Ceará, 1992; Santa Catarina, 1993; Distrito Federal,
1994; Sergipe, 1995; Bahia, 1995.
Mais
recentemente, em sete de junho de 2000, através da Lei 9.984, o Congresso
Nacional aprovou o projeto de criação da Agência Nacional de Águas (ANA) que,
além de ser o órgão responsável pela execução da Política Nacional de Recursos
Hídricos, tem a responsabilidade de implantar a Lei das Águas, de 1997, que
disciplina o uso dos recursos hídricos no Brasil.
A bacia hidrográfica como unidade de gestão
no Estado de São Paulo
Como
resultado de seminários, estudos e propostas realizados no âmbito de entidades
do governo do Estado de São Paulo, em especial do DAEE e da FUNDAP, e das
pressões políticas de grupos organizados, com destaque para os da bacia do rio
Piracicaba, o Governador Orestes Quércia promulgou o Decreto 27.586, em 11 de
novembro de 1987 (CONEJO, 1992, p. 69). Este
decreto instituiu o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CRH), com a missão
de propor uma política de gestão de recursos hídricos, estruturar um sistema de
gerenciamento e elaborar o primeiro Plano Estadual de Recursos Hídricos. No
mesmo decreto foi instituído o Comitê Coordenador do Plano Estadual de Recursos
Hídricos e do Sistema Estadual de Gestão de Recursos Hídricos (CORHI),
subordinado ao CRH, com a função de supervisionar e coordenar as atividades dos
diversos colegiados técnicos, criados com o objetivo de levar a cabo as tarefas
propostas pelo Decreto 27.586/87. Os colegiados foram criados pelo CORHI em 24
de fevereiro de 1988.
Como
resultados do trabalho dos grupos técnicos têm-se: a elaboração e aprovação do
primeiro Plano Estadual de Recursos Hídricos, em 1990, composto por um
diagnóstico da situação das águas no Estado e pela proposição de programas, e a
Lei 7.663, de 30 de dezembro de 1991, que estabeleceu normas de orientação à
Política Estadual de Recursos Hídricos, criou o Sistema Integrado de
Gerenciamento de Recursos Hídricos (SIGRH) e previu a cobrança pelo uso das
águas.
O SIGRH
busca a execução, formulação e aplicação do Plano Estadual de Recursos Hídricos
(PERH), congregando órgãos estaduais, municipais e a sociedade civil
organizada. Neste sentido, a Lei 7.663/91 previu a criação de órgãos de
coordenação e de integração participativa. No nível central foi prevista a
formação do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CRH) e nas unidades
hidrográficas os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH).
O CRH,
assegurada a participação paritária dos municípios em relação ao Estado, é
composto por: a) secretários de estado, ou seus representantes, cujas atividades
se relacionem com o gerenciamento ou uso dos recursos hídricos, a proteção do
meio ambiente, o planejamento estratégico e a gestão financeira; b)
representantes dos municípios contidos nas bacias hidrográficas, eleitos entre
seus pares.
Os comitês
de bacias, assegurada a participação paritária dos municípios em relação ao
Estado, serão compostos por: a) representantes das secretarias de estado ou de
órgãos e entidades da administração direta e indireta, cujas atividades se
relacionem com o gerenciamento ou uso das águas, proteção ao ambiente,
planejamento e gestão financeira do estado, no âmbito das bacias; b)
representantes dos municípios contidos nas bacias; c) representantes de
entidades da sociedade civil, sediadas nas bacias, respeitado o limite máximo
de um terço do número total dos votos, entendendo as universidades, os
institutos de ensino superior, as agências de pesquisa e desenvolvimento, as
associações de usuários, as associações especializadas em recursos hídricos, as
entidades de classe, as associações comunitárias e outras associações não
governamentais como representantes da sociedade civil.
A gestão
através de comitês de bacias permite um debate mais amplo sobre as alternativas
de utilização dos recursos naturais regionais e proporciona a adaptação da
política às realidades físicas e humanas de cada região. A participação de
representantes do estado, dos municípios e da sociedade civil garante que as
propostas sejam resultados de negociações políticas.
Em 25 de
agosto de 1993 foram empossados os integrantes do CRH. Em novembro do mesmo ano
foi implantado o Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari
e Jundiaí. A implantação do comitê consistiu num marco da estrutura da Política
Estadual de recursos Hídricos. A partir daí, os demais comitês foram
paulatinamente sendo implantados.
Durante o
ano de 1991, entendendo a necessidade de uma descentralização mais abrangente,
o Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba e Capivari liderou a
proposta de inclusão da Agência de bacia na lei 7.663/91, com o apoio de vários
deputados, de outros consórcios constituídos ou em formação e de diversas
entidades civis ligadas à questão das águas. O que foi defendido pelo Consórcio
e hoje é lei estadual é um órgão descentralizado de gestão a ser criado em
situações especiais, por decisão do respectivo comitê de bacia e com aprovação
do CRH.
A agência
de bacia é uma entidade jurídica, com estrutura administrativa e financeira
própria, que exercerá a função de secretaria executiva do comitê de bacia e
terá as seguintes funções: a) elaborar o plano de bacia hidrográfica e
submetê-lo ao comitê de bacia; b) elaborar relatórios que serão submetidos ao
comitê de bacia; c) gerenciar os recursos financeiros do Fundo Estadual de
Recursos Hídricos (FEHIDRO) pertinentes à bacia hidrográfica; d) promover, na
bacia hidrográfica, a articulação entre os componentes do sistema de
gerenciamento, com os outros sistemas do estado, com o setor produtivo e a
sociedade civil.
As agências
de bacias, quando criadas permitirão a efetiva descentralização da gestão dos
recursos hídricos, dado que, com elas, acontecerá a descentralização da gestão
financeira de cada unidade de gerenciamento. As agências de bacias não são
novidades, pelo menos nos países do primeiro mundo. Elas existem há 38 anos na
França e há 98 na Alemanha. Cada país instituiu a sua agência de acordo com as
suas características. As experiências internacionais, neste momento, assumem
uma certa importância, dado que servem de referência para a implantação do
modelo de gestão local, principalmente a experiência francesa, que sempre
causou boa impressão.
Em nível
nacional, a Lei 9.433/97, no Artigo 33, Inciso V, também previu a criação de
Agências de Água que deverão integrar o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos. Elas, em nível nacional, exercerão a função de secretaria
executiva dos comitês de bacias e poderão ser criadas quando atendidos os
seguintes requisitos: a) prévia existência de um Comitê de Bacia Hidrográfica;
b) viabilidade financeira assegurada pela cobrança do uso dos recursos hídricos
em sua área de atuação.
Conforme
informações da Agência Nacional de Águas – ANA, no ano de 2002 foram
desenvolvidas ações para a instalação de agências de água e para a
implementação da cobrança pelo uso dos recursos hídricos nas bacias do rio
Paraíba do Sul, que envolve os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais, e do Alto Iguaçu, no Paraná. Ainda, conforme a ANA (http://www.ana.gov.br – Acesso em 20 de junho
de 2005), na esfera estadual, atualmente, 24 estados e o Distrito Federal já
aprovaram suas leis sobre política e sistema de gestão das águas. Todas as leis
aprovadas incluíram a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento
de gestão. A cobrança começou a acontecer em 2006 na Bacia do rio Piracicaba e
deverá constituir-se num importante recurso para o financiamento das obras
necessárias à recuperação da qualidade e da quantidade das águas dos seus rios
formadores.
Em relação
ao planejamento do uso dos recursos hídricos, pode-se dizer que ele foi
marcado, até a década de 1980, pela forte centralização e pela excessiva
setorização. Os planos tinham, com certa frequência, a sua eficácia
comprometida pela parcialidade dos enfoques que os geravam, dado que acabavam
desconsiderando os conflitos sociais, econômicos e políticos que sempre
acompanham o uso das águas. Não resultavam, portanto, de negociações entre os
diversos usuários das águas.
A forte
centralização do poder de decisão no Brasil começou a ser rompida com a
Constituição de 1988. Contudo, não se completou, ainda, o ciclo de adaptação do
aparato institucional. Os municípios e as regiões ainda não assumiram de forma
integral as atribuições normativas e fiscalizadoras que agora lhes são
permitidas e a sociedade civil ainda tem uma participação muito tímida.
O que fica
claro do exposto é que, a partir do novo quadro legal, que possibilita novos
arranjos institucionais, começa a se construir uma nova forma de planejar a
economia e o uso dos recursos naturais, entre eles os recursos hídricos. A nova
forma pressupõe postura democrática e, portanto, deverá estar alicerçada em
mecanismos institucionais de articulação de órgãos públicos (municipais,
federais e estaduais) e de representantes de toda a sociedade. Desta maneira, o
planejamento não deverá ser apenas a concretização de trabalhos bem
estruturados tecnicamente, mas também o resultado de debates e negociações com
os diversos setores sociais e econômicos.
A
participação pública e dos atores sociais é uma ferramenta extremamente
importante, contribuindo muito nas tomada de decisão e na diminuição dos
conflitos inerentes ao processo de gestão integrada dos recursos hídricos. A
participação oferece à comunidade a oportunidade de exercer seus direitos,
assim como, de reconhecer suas responsabilidades, uma atribuição de caráter
essencialmente ético.
Considerações finais
As
trajetórias da construção de sistemas descentralizados de gestão de recursos
hídricos no Brasil e no Estado de São Paulo, apesar das imensas dificuldades de
percurso, são bons exemplos de iniciativas, que envolvem a economia e a ecologia,
dentro de princípios democráticos, que têm como objetivo buscar a preservação e
o uso sustentado das águas pelo setor produtivo e pela sociedade. O planejamento
do uso dos recursos hídricos foi marcado, até a década de 1980, pela
centralização e pela setorização. Os planos nunca resultavam de negociações
entre os diversos usuários das águas. Todavia, a centralização do poder de
decisão no Brasil começou a ser rompida. Está sendo construída, aos poucos, uma
nova forma de planejar a economia e o uso dos recursos naturais, entre eles os
recursos hídricos. A nova forma está alicerçada em mecanismos institucionais de
articulação de órgãos públicos (federais, estaduais e municipais) e de
representantes da sociedade. Assim, os planos não serão apenas concretizações
de trabalhos técnicos, mas também resultados de debates e negociações entre os
setores sociais e econômicos. Estão sendo construídos mecanismos e fóruns que
servirão à sustentabilidade do desenvolvimento no território brasileiro.
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Bom trabalho hidrográfico brasileiro é importante saber sobre as nossas águas.O que nos entristece é que várias bacias hidrográficas do nosso país estão poluídas. Tudo em nome do lucro abusivo. Quando abro a torneira da pia parece que não está saindo água,mas leite, é muito cloro e outros componentes químicos para fazer a decantação da água poluída da região. Esta água não pode fazer bem para a saúde.
ResponderExcluirGrato pelo comentário.
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