Zildo Gallo
No
próximo primeiro de maio de 2018, comemora-se o Dia do Trabalho no mundo todo.
No Brasil a sua comemoração acontece num ambiente de muita tensão por conta do
desmanche da legislação trabalhista, propiciada pelo golpe de estado contra a
Presidenta Dilma, que foi reeleita pelo Partido dos Trabalhadores - PT, em
2014, contra a vontade da grande imprensa e de grande parte do empresariado
nacional, com destaque para o capital financeiro.
Todavia,
a situação da classe trabalhadora não está difícil só no Brasil. O capitalismo
mundial vive, neste momento, uma grave crise e os trabalhadores estão sendo as
grandes vítimas dela em todo o mundo. Nada de novo, pois também foi assim nas
outras crises, como a de 1929, por exemplo. Depois dessa crise, a atual
apresenta-se como a mais grave e o seu desfecho parece distante e muito incerto.
Não tem como fazer previsões seguras, neste momento.
Neste
momento grave da história da humanidade, quando se assiste a um ataque frontal
contra os assalariados e pobres do planeta, quando a renda se concentra de
forma nunca antes vista nas mãos de poucas famílias, em detrimento da imensa
maioria da população, faz-se necessária uma compreensão da real situação do
trabalho nos tempos de hoje, partindo de uma volta ao passado distante, como
sói razoável fazê-lo, para que se possa alinhavar argumentos válidos para a
instituição de um ponto de partida que leve à saída da crise e à emancipação
dos trabalhadores.
No
sentido do exposto acima, em reproduzo aqui o artigo "O homem humanizado e
a sociedade: o papel do trabalho", que escrevi para o meu blog
(zildo-gallo.blogspot.com.br) em 21 de dezembro de 2014. Acredito que ele pode lançar
luzes tanto sobre a história do trabalho e dos trabalhadores desde a
antiguidade como para a situação presente de ambos. Ao artigo!
O homem
humanizado e a sociedade: o papel do trabalho
Falar
do homem enquanto um ser humano parece redundante, mas não é, pois o homo
sapiens, enquanto espécie animal, enquanto ser vivente, é um projeto em
construção, um projeto humanizante em permanente elaboração e reelaboração. Ele
está posto como um vir a ser, um devir, um transformar-se, um tornar-se novo,
portanto, ele ainda não é, ele será. Ele sempre está carecendo de se humanizar.
Então, humanizar trata-se de um processo e, de forma bem simples, humanizar
significa tornar humano. Indo um pouco mais além: para tornar humano é preciso
despertar valores humanos.
O
ser humano está em permanente elaboração. A palavra elaboração vem de labor,
que é trabalho em latim. Daí extraímos três possíveis situações: 1) o homem é
um ser que trabalha; 2) que constrói pelo trabalho e; 3) que se constrói pelo
seu trabalho. Todas as três possibilidades são reais e, ao mesmo tempo,
complementares. Desta forma, é mais que lícito afirmar que o fazer humano é que
constrói o ser humano enquanto tal. Simplificando, se possível: o homem é um
ser que transforma (modifica) a natureza externa, que enxerga a sua própria
natureza (que se vê na sua natureza interna) e que transforma a sua própria
natureza. Resumindo: à medida que ele transforma o mundo ele também se
transforma, dá outra forma ao seu mundo interior. Lá pelos idos do século XIX,
Friedrich Engels falava do sobre "o papel do trabalho na
transformação do macaco em homem", suspeito que ele tinha razão.
Por
sua vez, a palavra trabalho vem da palavra latina tripalium, que
era um instrumento feito de três paus aguçados,
algumas vezes munidos de pontas de ferro, com o qual os agricultores batiam o
trigo para separá-lo da espiga. A maioria dos dicionários, contudo, registra o
tripálio apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente,
ou, talvez, se tornado depois. O tripálio (do latim tri: três
e palus: pau, literalmente, "três paus") é um
instrumento romano de tortura, um tripé formado por três estacas cravadas no
chão na forma de uma pirâmide no qual eram supliciados os escravos. Daí
derivou-se o verbo do latim vulgar tripaliare que significava,
a princípio, torturar alguém no tripálio. É comumente aceito entre os
linguistas que esses termos deram origem, no português, às palavras
"trabalho" e "trabalhar", ainda que no seu sentido original
o "trabalhador" fosse um carrasco, e não aquele que labora, que
elabora e que se elabora, como entendemos hoje em dia.
Parece
estranho a palavra trabalho derivar de um instrumento de tortura. Entretanto,
se olharmos para a história do trabalho, veremos que faz todo sentido. As
palavras não se formam do mero acaso. Então, olhemos para a história do
trabalho.
Na
pré-história, do paleolítico ao neolítico, os homens modernos (homo sapiens)
tinham como preocupação central a luta pela sobrevivência num ambiente hostil.
O uso das primeiras ferramentas e das primeiras armas possibilitou uma
convivência mais tranquila com o meio e a introdução da agricultura
sedentarizou os grupos humanos. Num primeiro momento, as relações sociais
pareciam igualitárias, pois ainda não havia a apropriação do trabalho alheio e
nem a dominação das mulheres pelos homens. Mas essa situação não dura, pois nos
primórdios das primeiras cidades ela se modifica, com o surgimento do trabalho
escravo, do patriarcado, do casamento monogâmico, com a consequente limitação
dos papéis femininos e com o assentamento da propriedade privada, os fragmentos
do território dominados pelos patriarcas. Sugiro aqui a leitura de uma obra
clássica: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado,
de Friedrich Engels (1884).
A
civilização nasce com vários aspectos sombrios e uma dessas sombras é a
apropriação do trabalho alheio de forma arbitrária e violenta, através do
trabalho escravo. O escravo é um indivíduo destituído da sua liberdade e que
vive em absoluta sujeição a alguém que o trata como um bem explorável e
negociável, como uma mercadoria. Na verdade, stricto sensu, é uma
mercadoria como qualquer outra mercadoria.
No
correr dos séculos, a exploração do trabalho sofreu várias mudanças, mas ainda
permanecem situações muito obscuras, como se verá na sequencia. Na idade média
europeia, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho servil,
principalmente na agropecuária. Os trabalhadores já não eram uma mercadoria
negociável, mas não podiam sair das terras de seus senhores e estavam sujeitos
a normas draconianas impostas por esses senhores feudais, que tudo podiam, já
que eram a lei, a polícia e o juiz. Além disso, grande parte da produção
camponesa era consumida pela aristocracia agrária e pelos seus soldados,
deixando os trabalhadores da terra em constante situação de pobreza e, muitas
vezes, de fome.
Todavia,
nem toda relação de trabalho era opressiva na idade média europeia, pois havia
um tipo de trabalho livre, que era o trabalho artesanal. O artesão era dono da
sua oficina e das suas ferramentas e vendia a sua produção que, naquela época,
era feita, na sua maioria, sob encomenda. Alfaiates, pintores, escultores,
marceneiros, construtores, entre outros, exerciam o seu trabalho de forma
livre. Tratava-se de um trabalho criativo, com começo, meio e fim e, por conta
disso, prazeroso e, ainda por cima, melhor remunerado que o trabalho camponês.
A
expansão da manufatura na Europa com maior ênfase a partir do século XV, já
criando um princípio de estrutura fabril, começou a diminuir a importância do
trabalho artesanal, aumentando o assalariamento na produção de mercadorias
manufaturadas. Abrindo parêntesis: é importante lembrar aqui que a partir do
século XV, o trabalho escravo foi recriado nas colônias Europeias, com destaque
para as Américas. Entretanto, a destruição da produção artesanal ocorrerá
definitivamente com a Primeira Revolução Industrial, que tem seu início no
final do século XVIII na Inglaterra. A partir daí, as oficinas dos artesãos
serão fechadas e eles se tornarão assalariados. Nessa época também ocorrerá um
êxodo rural de grande monta e levas e mais levas de camponeses serão lançados
no mercado de trabalho da indústria nascente e crescente. Trata-se de um
período de extrema exploração do trabalhador: salários baixos, jornadas de
trabalho extensas, trabalho infantil e feminino abusivos, situações de grande
insalubridade nos locais de trabalho, entre outras formas de degradação e o que
é mais importante, o trabalho deixou de ser criativo, tornando-se repetitivo e
monótono. A melhor definição para essa forma de trabalho é "trabalho
alienado".
Uma
forma de remediar os efeitos nefastos do trabalho alienado, levantada já no
século XIX por pensadores sociais como Karl Marx e Paul Lafargue, e que
adquiriu um certo consenso no meio dos cientistas sociais que vieram a seguir,
é a redução da jornada de trabalho. Com isso as pessoas poderiam fazer coisas
criativas, inteligentes e agradáveis no seu tempo livre. E, de fato, do século
XIX até os dias de hoje, as jornadas de trabalho diminuíram muito, com destaque
para os países europeus. Recentemente, o sociólogo Domenico De Masi retomou a
discussão sobre a importância do tempo livre no seu livro "O ócio
criativo".
Com
o correr da história e com as lutas de resistência dos operários, que se
organizaram em sindicatos e partidos políticos, a exploração foi diminuindo e
as condições de trabalho foram paulatinamente melhoradas. Os salários subiram,
as jornadas foram reduzidas e muitos benefícios foram introduzidos nas relações
entre capital e trabalho, tais como férias remuneradas, aposentadoria, entre
outras, melhorando as condições de vida da maioria da população, que é assalariada,
e diminuindo a pobreza nos países industrializados.
À
Primeira Revolução Industrial seguiu a Segunda Revolução, na segunda metade do
século XIX, que completou a industrialização na Europa e se estendeu aos
Estados Unidos e Japão. No século XX a industrialização se estende a países
como Brasil, Argentina, entre outros, trata-se de um desenvolvimento tardio. O
que é interessante de se notar é que, tanto na Segunda Revolução quanto na
industrialização tardia, muitos benefícios serão incorporados, tornando o
trabalho menos árduo que na Primeira Revolução, são avanços efetivos, há que se
considerar.
Entretanto,
no que diz respeito à criatividade no trabalho, a situação pouco mudou,
pois o trabalho industrial continuou repetitivo e monótono, por conta do
excessivo parcelamento das atividades nas linhas de montagem (lembram-se do
Charlie Chaplin em Tempos Modernos?). Todavia, em contrapartida, a
moderna divisão do trabalho produz um resultado benéfico à sociedade, que é o
barateamento das mercadorias, que foi preconizado por Adam Smith, o pai da
economia política, na sua magnífica obra, Riqueza das Nações.
Parecia
que tudo estava caminhando bem, mas no final do século XX, principalmente por
conta do crescimento da indústria na Ásia, com destaque para a China,
Singapura, Vietnã etc., que se dá de forma precária (jornadas excessivas,
baixos salários, condições insalubres etc.), a situação do trabalho e dos
trabalhadores sofreu um revés em todo mundo, incluindo aí a Europa e os Estados
Unidos. A concorrência internacional fez aumentar o desemprego fora dos países
asiáticos e as condições de trabalho também pioraram, principalmente por conta
das terceirizações, chegando a registrar, inclusive, muitas ocorrências de
trabalho similar ao escravo, como no caso da indústria de roupas feitas no
Estado de São Paulo. Em muitos casos a situação retrocedeu ao que era nos
séculos XVIII e XIX e até pioraram, como no caso do trabalho escravo.
Do
exposto até aqui surgem algumas questões: 1) será que a exploração do homem pelo
homem e das nações por outras nações é o único modus operandi possível
para a civilização?; 2) será que a produção de bens de consumo precisa dar-se
de forma tão alienada, alijando em demasia os trabalhadores dos processos
criativos, para que tais bens sejam acessíveis à maioria das pessoas?; 3) será
que a necessidade permanente de acúmulo de riquezas pelos países, o desejado e
buscado "desenvolvimento econômico" tem que se dar de forma tão
competitiva e predatória, onde tudo vale, num tipo de guerra permanente entre
todos?
Laudas
e mais laudas já foram escritas sobre estas questões e muitas outras ainda
serão produzidas e não serão em demasia, pois parece até possível que toda essa
enorme e desenfreada competição dê cabo da civilização. A crise ambiental, com
destaque para o aquecimento global, já está dando o seu alerta. Não são apenas
as pessoas que são passíveis de exploração, a natureza também tem sido
explorada além da sua capacidade de suporte. Então, completo aqui a primeira
questão acima levantada: será que a exploração abusiva da natureza também faz
parte do modus operandi da civilização?
É
mais que evidente que parar ou diminuir o ritmo dessa grande máquina
(civilização), que foi posta em movimento com o surgimento das primeiras
cidades, é um trabalho hercúleo - olha o trabalho aí de novo!
Quiçá seja possível redirecionar a máquina da civilização positivamente, sem
que ela se desmonte, jogando a humanidade num estado de barbárie. Será possível
fazê-lo? Esta é uma questão a ser respondida com a devida urgência. Todavia,
não se trata de uma tarefa para um herói em particular, mas de uma árdua tarefa
para toda humanidade, o que a torna muito difícil, entretanto imprescindível.
Por
onde começar? A resposta a esta questão é difícil e, talvez, por conta disso, a
melhor forma de iniciar seja retrabalhando o significado do trabalho. Outros
valores também necessitam de ressignificação, mas como o trabalho é um elemento
fundante da humanidade, talvez seja o mais importante, é de bom alvitre começar
por ele. Durante a maior parte da história da civilização o trabalho esteve
associado ao sofrimento, como já foi visto, e, por conta disso, foi
estigmatizado. Há que se resgatar a dignidade do trabalho e, para tanto,
precisamos compreendê-lo na sua profundidade, atingindo a sua essência.
Comecemos
por lembrar que o homem é um ser social e que, neste sentido, o trabalho é um
elemento essencial à socialização. A forma como cada ser humano trabalha
determina a sua forma de ser e o seu conjunto de relações. Ele começa a
trabalhar para cuidar de si e dos membros do seu grupo, com destaque para as
crianças, que necessitam de proteção plena e não têm como produzir a sua
própria existência. Então, desde o seu início, o trabalho surge também como um
serviço prestado ao outro. Estou falando aqui do trabalho essencialmente
humano, que significa utilizar-se da natureza e modificá-la a seu serviço,
criando com isso um processo que não se repete apenas, mas que aumenta a sua
dimensão e que se aperfeiçoa, criando isso que conhecemos como cultura.
A
humanidade precisa fazer mea culpa e ressignificar
positivamente o trabalho. Ela precisa abolir todas as formas de aviltamento das
relações trabalhistas existentes e elas ainda são muitas. O trabalho meramente
repetitivo precisa diminuir e quando isso não for de todo possível, deverá ter
seus efeitos negativos minimizados, a redução das jornadas pode ajudar neste
sentido, liberando tempo para que as pessoas exerçam a sua criatividade de
alguma forma.
Cabe
reforçar aqui a ideia de que trabalhar significa uma relação de cuidado (ver
meu artigo Saber cuidar: a essência do humano, neste blog) e que o
cuidado determina o modo de ser humano. Os humanos são cuidados quando
crianças, passam a cuidar quando ficam adultos e recebem cuidados na sua
velhice. Tudo isso implica em afetividade e o afeto, neste sentido, é a
essência mais profunda do ser humano. O trabalho escravo, ainda sobrevivente, e
as demais degradações laborais, como a exploração das crianças e das mulheres,
entre outras, vão no sentido contrário à essência humana.
Começar
pela ressignificação do trabalho no imaginário coletivo da humanidade talvez
seja o primeiro passo a ser dado. A partir daí, outros passos serão dados,
criando um movimento sustentado positivamente, resgatando os valores
humanos, que sempre se formam a partir do cuidado e do afeto. Depois disso,
o trabalho ressignificado (re)assumirá o seu real papel na história da
humanidade que é o de serviço, ajudando-a a seguir na sua trajetória
humanizante. Trabalho e serviço passarão a ser, de fato, sinônimos. Só mais uma
última consideração: a urgência é necessária.
Referências
DE MASI,
Domenico. O ócio criativo. São Paulo: Editora Sextante, 2000.
ENGELS.
Friedrich. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Rio
de Janeiro: Global Editora, 1990.
ENGELS,
Friedrich. A origem da família, da propriedade
privada e do Estado. São Paulo:
Centauro Editora, 2006.
SMITH, Adam. A riqueza das
nações: investigação sobre a sua natureza e suas causas. São Paulo:
Nova Cultural, 1985.
Super publicação!
ResponderExcluirGrato! É um debate necessário.
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