Na minha infância e na minha adolescência, nos anos sessenta e setenta, na cidade de Americana, no Estado de São Paulo, não existia a abundância de fast foods que agora vejo. Havia algumas lanchonetes, as quais frequentávamos esporadicamente. O hábito de comer fora rotineiramente não era tão comum como agora, por isso não havia também a abundância de restaurantes e pizzarias da atualidade. Comer fora deixou de ser um luxo ao qual nos permitíamos vez ou outra e, agora, rotinizou-se.
Quando jovem, nos meus tempos de colegial, eu tinha uma rotina diária como muitos outros. Trabalhava o durante o dia, estudava à noite e fazia as refeições em casa. Muitos outros levavam marmitas ao trabalho, isso também era muito comum. Poucas empresas tinham restaurantes industriais naquela época. A nossa dieta baseava-se na alimentação caseira. Nos fins de semana, quando saíamos, às vezes, pelo menos no meu caso, íamos a uma lanchonete comer sanduíches ou pizzas, acompanhados de refrigerantes, na maioria das vezes. Nem o consumo de refrigerantes era tão rotineiro naqueles tempos como é agora.
O Bié Lanches, que ficava na rua Fernando Camargo, no centro da cidade foi uma referência importante, pois era bastante criativo na produção de lanches; se não me engano foi ele quem deu vida ao "Lobo Mau", um lanche de tamanho grande, o nome cabia-lhe perfeitamente. Também existiam alguns bares onde se podia comer baurus, como o Bar Casa Verde, Bar da Escada, Bar do Crespo, Bar do Filiputti, Bar Bacan, entre vários outros. Os hambúrgueres foram chegando aos poucos nas lanchonetes, não eram tão comuns.
Não havia os trailers e os carrinhos de cachorros quentes e hambúrgueres, que fazem parte da paisagem urbana da atualidade. Lembro-me que o primeiro trailer de lanches, acredito que tenha sido o primeiro, foi o Baitakão, que estacionou na região central da cidade, próximo de onde funcionava o supermercado Batajão, e que fazia um cachorro quente enorme e cheio de recheio, conhecido como Baitakão, é óbvio. Foi a grande novidade em termos de fast food nos anos setenta em Americana.
São lembranças que considero agradáveis. Não pretendo ficar recordando o meu passado gastronômico, mas quero introduzir aqui uma reflexão sobre o fast food dos nossos dias enquanto incentivador de formas de consumo predatórias do ponto de vista ambiental e também da saúde.
A alimentação rápida dos dias de hoje nos chegou como imitação dos Estados Unidos e rapidamente foi ocupando espaço no meio urbano. Não dá para precisar muito a data em que isso, que era marginal, começou a ganhar corpo. Podemos localizar tal fenômeno mais ou menos a partir do final segunda metade dos anos setenta, com uma aceleração a partir dos anos oitenta e noventa. Nesse período aconteceram alguns eventos que podem ter contribuído: introdução do forno de micro-ondas; expansão rápida dos salgadinhos de saquinhos, tipo chips; crescimento do setor de alimentos congelados e; crescimento contínuo e firme da alimentação fora de casa.
No quesito crescimento da alimentação fora de casa podemos localizar duas situações que têm um caráter positivo: o surgimento de restaurantes do tipo self service, que dão ao cliente a possibilidade de escolha, de montar o seu próprio prato, e a expansão dos restaurantes que fornecem os chamados pratos feitos, que pretendem ser o mais completos possíveis do ponto de vista nutricional. Também ocorreu a expansão das lanchonetes, das pizzarias e dos carrinhos e trailers de lanches. Neste último caso o problema está mais na constância do uso que cada consumidor faz desses serviços de alimentação.
Vamos por partes, analisando em primeiro lugar a introdução do micro ondas e dos congelados, ambos são irmãos siameses. Com os congelados diminuiu-se o tempo de cocção dos alimentos, mas se aumentou, em contrapartida, o consumo de massas, como as lasanhas, por exemplo, em detrimento do nosso tradicional arroz com feijão. O abuso das massas, já é sabido, pode fazer mal à saúde. Digamos que o problema está na constância do uso. Do ponto de vista ambiental, com a expansão do fast food doméstico, tivemos o aumento da produção de resíduos sólidos, no caso as embalagens descartáveis. Aquele hábito antigo, que veio dos imigrantes italianos, de consumir massas nos fins de semana, as famosas macarronadas, estendeu-se para os outros dias da semana. Haja calorias!
A expansão dos salgadinhos de saquinhos, os chips, por sua vez, é mais complicada. É difícil entendê-los como alimentos, inclusive, dada a sua artificialidade. Gorduras saturadas e excesso de sal caracterizam muitos deles. As embalagens, por sua vez, são do tipo totalmente descartáveis, impedindo a reciclagem, o que do ponto de vista ambiental é por demais incorreto. Os apelos publicitários desses produtos são minimamente desonestos, pois atingem em cheio o público infantil. A introdução de brindes dentro dos saquinhos é um forte chamariz para essa fatia do mercado. Lembram-se dos tazos, aqueles disquinhos colecionáveis que se tornaram verdadeira febre nos anos noventa? Os brindes contribuíram para introduzir o hábito de consumir isso que a indústria teima em chamar de alimento. São "alimentos" perniciosos do ponto de vista da saúde e do meio ambiente. Muitos os chamam de "salgadinho de isopor", não é por simples acaso.
A expansão do setor de lanches rápidos e das pizzarias pode apresentar riscos a partir da constância do consumo por cada cliente. Ocorre que muitas famílias acabaram perdendo o controle do espaço temporal entre um consumo e outro, principalmente em relação às crianças. O apelo das pizzas, dos lanches e das frituras acaba atingindo mais o público infantil, que não tem informações e maturidade suficientes para estabelecer críticas ao que está consumindo. Muitas vezes, em relação a esses alimentos, acontece um forte embate entre pais e filhos. "O meu amigo pode, por que eu não?" É uma questão difícil para pais e educadores. Como dosar o consumo dessas saborosas guloseimas? Além de tudo isso, tem um agravante: junto com as pizzas, os salgados e os lanches, vêm os refrigerantes, que aumentam o consumo de açúcar.
Em relação aos lanches rápidos, nas cidades médias e grandes, a situação ganhou um complicador nos tempos atuais: a entrada de uma grande rede internacional de fast food, no caso o McDonald's. É o caso de Americana. A princípio ele se encaixaria na situação do tipo de alimento que se pode fazer uso esporádico. Até aí tudo bem. O problema está nos esforços que ele faz para aumentar o consumo dos seus produtos e para a fidelização da sua clientela. A principal vítima desses esforços é o público infantil, de novo... Além do excesso de embalagens (aquelas caixinhas chamativas pelas suas impressões coloridas), ele costuma oferecer brindes às crianças, como no caso dos chips. Além dos brindes, é comum nas lojas maiores da rede a presença de playgrounds para atrair as crianças. Assim, são criadas as condições para a produção excessiva de resíduos, que é incorreta do ponto de vista ambiental, e a possibilidade do surgimento de problemas de saúde, pelo excesso de consumo de um alimento pouco saudável.
Sobre o McDonald's, sugiro que vejam o filme Super Size Me - A Dieta do Palhaço. Ele se encontra disponível no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=p5VGZVawW0c). Trata-se de um documentário de 2004, produzido, dirigido e protagonizado por Morgan Spurlock, um cineasta americano. No filme, Spurlock segue uma dieta de 30 dias onde apenas consome produtos do McDonald's. Durante a gravação, ele comia nas lojas da rede três vezes ao dia, consumindo em média 5000 kcal por dia, um exagero, o equivalente a seis Big Macs.
Antes da sua experiência, Spurlock, comia uma dieta variada. Era saudável, magro, e, com 1,85 m de altura, pesava 84,1 kg. Trinta dias depois, aumentou o seu peso em 11,1 kg, saindo de uma faixa de peso considerada saudável para entrar numa situação de sobrepeso. Também experimentou mudanças de humor, disfunção sexual, e dano ao fígado. Depois das filmagens, ele precisou de quatorze meses para eliminar o peso adquirido.Três médicos que o consultaram ficaram surpresos com o elevado grau de deterioração da sua saúde. Um deles chegou a afirmar que era irreversível o dano causado ao seu fígado. Durante o período das filmagens, Spurlock comeu mais refeições no McDonald's do que um nutricionista recomendaria comer em oito anos. Isso significa que comer alimentos desse tipo só pode acontecer bem de vez em quando, conforme os nutricionistas
O que motivou Spurlock a fazer a investigação, usando a si mesmo como cobaia, foi o crescimento da obesidade nos Estados Unidos, que chegou a ser considerada pela saúde pública americana como "epidemia". Também contribuiu para isso a demanda judicial contra o McDonald's em nome de duas meninas com sobrepeso, que alegaram que a obesidade era resultante do consumo de alimentos da rede. Parece que o consumo de comida rápida, do ponto de vista psicológico, pode ter um aspecto viciante; é algo a ser verificado.
O que está acontecendo nos Estados Unidos também está acontecendo no Brasil, a obesidade tem aumentado significativamente, com destaque para a obesidade infantil, com os malefícios que a acompanham, como a hipertensão e o diabetes mellitus. Trata-se de um problema de saúde pública. O melhor remédio para essa "epidemia" não é a cirurgia bariátrica, usada em casos extremos, mas a reeducação alimentar. Ela tem que se dar no seio da família, nas escolas, nas repartições de saúde e nos meios de comunicação, esses mesmos meios que propagam o tempo todo as delícias do fast food, não tem um caminho mais curto.
Apesar de tudo, o mundo não está definitivamente perdido. Tem muita gente atenta à questão da alimentação em todos os cantos do planeta. Trago aqui um ótimo exemplo. Em 1986 o jornalista italiano Carlo Petrini, com a ideia de promover a boa comida, fundou a organização Slow Food, cujo significado é "comida lenta", em contraposição ao fast food, "comida rápida". A ideia é aumentar o tempo gasto com a alimentação, com o objetivo de aumentar o prazer no ato de se alimentar, como nos velhos tempos, quando a família sentava-se à mesa, seguindo rituais antigos da comensalidade.
A filosofia da Slow Food (http://www.slowfoodbrasil.com/) resume-se em defender a informação ao consumidor, proteger as tradições alimentares, defender o cultivo e o processamento de alimentos herdados da boa tradição e defender espécies vegetais e animais, domésticas e selvagens. Para ela, o alimento deve ser bom, limpo e justo, o que significa: saboroso, nutritivo, respeitoso ao meio ambiente e com preços justos, tanto para os produtores como para os consumidores.
A rede de membros da Slow Food já reúne mais de 100 mil associados no mundo. Ela se organiza em grupos locais, que, periodicamente, organizam atividades como oficinas de educação alimentar, palestras, degustações, cursos, jantares e até turismo gastronômico. Ela costuma defender a produção e o consumo locais, o uso de alimentos da tradição e a compra direta dos produtores. Tudo isso pode tornar os alimentos mais baratos, pois encurta a cadeia produção/consumo, pela eliminação dos atravessadores. Além disso, a Slow Food questiona o custo ambiental dos alimentos produzidos em larga escala (agronegócio) e os impactos sobre a saúde do consumo de alimentos excessivamente processados pela indústria.
Reeducação alimentar é a palavra-chave do momento nutricional da humanidade. Lembro-me que na minhas infância e adolescência, a obesidade era bem pequena; uma ou outra pessoa era gorda e, no meio das crianças, era bem rara. O consumo eventual de lanches, pizzas e refrigerantes não produzia os estragos que o fast food produz hoje. A frequência esporádica, era esporádica mesmo, às lanchonetes e bares não produzia os estragos ora verificados. Além disso, não existiam os "salgadinhos de isopor", as massas congeladas do fast food doméstico e a abundância de refrigerantes e outras bebidas pouco saudáveis. Saborear lanches no Bié e nos bares da época significava uma quebra de rotina, apenas uma quebra de rotina, não era a rotina. Essa quebra da rotina era agradável e não prejudicava a saúde, pois a sua esporadicidade garantia isso .
Bom apetite!
Cadê o córrego do Gallo na vila Gallo?
O título deste artigo não é nenhuma brincadeira, é sério. Havia um córrego do Gallo na vila Gallo no município de Americana/SP. É Gallo com dois eles mesmo. Não se trata do macho das galinhas, que se escreve com um ele só, aquela ave que canta no alvorecer de cada dia. Este Gallo que é grafado como o meu sobrenome significa gaulês (originário da Gália). Pelo jeito, sou um descendente de Asterix e de Obelix, como todos os demais cidadãos portadores do mesmo sobrenome.
Os americanenses mais novos talvez nem imaginem onde se localiza o córrego em questão, mas, com certeza sabem onde fica a Avenida Prefeito Abdo Najar. O córrego fica em baixo dessa avenida. A nascente e todo o córrego estão soterrados. Estranho? Não, nem um pouco. Era e ainda é, em muitos lugares, uma prática comum a canalização de córregos. Trata-se de um atentado à natureza, um dos muitos atentados praticados contra ela no meio urbano. Ali, na avenida, deveria correr um regato com a sua mata ciliar, o que poderia ser uma bela imagem do ponto de vista paisagístico e as cidades carecem de áreas verdes e de belas paisagens para suavizarem a brutalidade da selva de concreto, Americana não foge ao caso.
O cronista carioca Stanislaw Ponte Preta escreveu a obra Febeapá (Festival de besteiras que assola o país), que foi muito lida nos anos setenta, nos tempos da minha adolescência. Toda cidade precisaria de um Stanislaw Ponte Preta para registrar as besteiras praticadas pela gestão municipal, com o apoio e o aplauso de muitos munícipes. A canalização dos córregos está no rol das besteiras de muitas cidades. O município de São Paulo é o campeão nesse tipo de asneira. Quem sabe que o Vale do Anhangabaú em São Paulo era o vale do rio Anhangabaú? Sobre esse corpo d'água passa uma larga avenida. Essa situação se repete em muitas cidades do Brasil. Não se trata, todavia, de uma exclusividade brasileira; muitos outros países também necessitam de cronistas que registrem os seus febeapás.
Por que se canalizaram os córregos? Por dois motivos: 1) com o asfaltamento das ruas, as águas das chuvas corriam rapidamente para os córregos e acabavam provocando inundações e; 2) o despejo do esgoto in natura nos corpos d'água provocavam mal cheiro na vizinhança dos ribeirões, também se alegava questões de saúde pública. São duas saídas bem complicadas. As canalizações dificilmente resolvem as inundações, pois a melhor forma de combatê-las é a pela existência de solo descoberto ou, melhor, coberto apenas com vegetação, em abundância, para possibilitar a infiltração das águas no subsolo. Mas, onde fica a especulação imobiliária, que disputa cada palmo de chão para transformá-lo em dinheiro? Por sua vez, a melhor forma de eliminar o mal cheiro do esgoto e os possíveis riscos à saúde é pelo seu tratamento, desconheço outra. Em relação ao córrego do Gallo, parece-me que os dois argumentos foram usados à época.
Em todas as cidades os argumentos são os mesmos. Hoje, vários países já estão fazendo um tipo de engenharia reversa, estão descobrindo os rios canalizados, retirando sua capas de concreto, mas, no Brasil, isso ainda está longe de acontecer, quiçá um dia... As cidades cresceram em confronto com a natureza e poucas, muito poucas, respeitaram o meio ambiente no seu processo de expansão. Entretanto, esta é uma visão de hoje, pois até poucos anos atrás as questões ambientais não eram colocadas na ordem do dia, pois o que contava era o "progresso" e tudo que se colocasse contra ele era visto como atraso, como antiquado.
Hoje, passando pela Avenida Abdo Najar, que já está toda tomada por construções, parece difícil reverter a situação, talvez impossível. Registro este libelo com dois objetivos: 1) como advertência para outros futuros febeapás e; 2) como protesto pelo confinamento do ribeirão que homenageia a imensa família Gallo de Americana, parece-me que esta é a origem do seu nome, assim como do bairro.
O menino americano e a bola de capotão
Muitas vivências e fatos da nossa existência, por mais longínquos que estejam no tempo, sempre permanecem na memória. Permanecem porque carregam significados singulares, especiais. Muitos deles, caso analisemos rapidamente, podem parecer sem importância, mas, caso insistamos na observação, caso não "deixemos para lá", o que corriqueiramente costumamos fazer, sempre acabaremos por achar algum significado profundo escondido. A história que relato a seguir é um caso desses.
No final dos anos 60 do século passado, quando morava em Americana (SP), à rua Frederico Pollo, na Vila Jones, numa situação de muita pobreza e dificuldades econômicas concretas (existe dificuldade econômica não concreta?), eu e vários meninos da minha rua e das proximidades, que também enfrentavam situações parecidas, uns mais outros menos, vivenciamos durante algum tempo uma história inédita, até mesmo estranha, dada as nossas condições limitadas de vida e da percepção diminuta que tínhamos do mundo, pelo menos a minha era assim. Apesar da estranheza, a história era bem agradável, tanto que grudou nas paredes da minha memória.
Antes de narrar os acontecimentos pretéritos, que são bem curtos e singelos, acho conveniente descrever o cenário do enredo e, ao mesmo tempo, acrescentar algumas informações que, com o correr do tempo, fui adquirindo sobre a história de Americana, cidade na qual vivi a maior parte da minha infância, toda a adolescência e parte da idade adulta. São informações que considero importantes para a compreensão do sincrônico encadeamento dos fatos.
O nome do bairro, Vila Jones, homenageia uma das famílias de imigrantes americanos confederados, que começaram a se instalar, entre 1865 e 1885, nas terras próximas ao ribeirão Quilombo que, posteriormente, formarão o município de Americana. Os Jones são uma família com visibilidade e importância na história local. A senhora Judith Mac Knight Jones, esposa do Dr. James Roderick Jones (Jaime Jones, assim ele era chamado pelos brasileiros), além de ter no currículo o fato de ser tia de Rita Lee Jones, nossa eterna rainha do rock, também escreveu um livro importante, que resultou de uma grande pesquisa histórica, sobre a imigração e a instalação dos imigrantes confederados no Brasil do segundo império: Soldado Descansa! uma Epopeia Norte Americana sob os Céus do Brasil.
O cenário dos acontecimentos que vou narrar foi onde hoje funciona uma escola estadual, entre quatro ruas: Rua Washington Luis, Rua Florindo Cibin, Rua Martins Fontes e Rua Guilherme de Almeida. Neste quarteirão, nos anos 60 e 70, havia um campo de futebol, o Canto do Rio. Acredito que se chamava assim porque estava localizado perto da microbacia do Córrego Pyles, que ficava no sítio dos Jones. O nome do córrego, Pyles, também homenageia uma família de imigrantes americanos.
Quando eu me mudei para Americana com minha família, em 1963, o Canto do Rio estava vivendo um processo de deterioração. Antes, ele era bem cuidado e tinha, inclusive, em todo o lado que margeava a Rua Washington Luis, uma arquibancada construída com tijolos e concreto. Com o abandono, várias famílias começaram a saquear a arquibancada para, com os tijolos dali extraídos, ampliarem as suas residências; a arquibancada desapareceu em muito pouco tempo.
Apesar da degradação, o campo nunca deixou de ser usado enquanto tal, até que virasse uma escola. Que legal que tenha virado escola! Nos finais de semana ele era utilizado por um time que se formou a partir dos frequentadores do bar de um posto de gasolina na Avenida Campos Salles, o Servicentro Esso. Meu pai, Aristides, que trabalhava no posto, no seu primeiro emprego em Americana, também jogava no time, que era composto, na sua maioria, por operários das fábricas de tecidos da região, que, ao final da tarde, quando saíam do trabalho, paravam no bar, conhecido por todos como Bar do Posto, onde bebiam alguma coisa e jogavam conversa fora, antes de irem para sua casas. Tenho na memória alguns nomes de jogadores: Buzina, Piti, Viola e Japão. Lembro-me também que Piti era surdo-mudo e Japão era o borracheiro do posto. Guardei-os porque os achava engraçados, acho que é por isso, não sei, a memória é uma coisa muito estranha.
Durante os dias úteis da semana o Canto do Rio era das crianças. De manhã eu ia para a escola e à tarde rumava para o campo, onde encontrava outros meninos. Ficávamos esperando, conversando bobagens, até que aparecesse alguém com uma bola. Havia poucos meninos proprietários de bolas de futebol, eram os "donos da bola". E os donos de uma bola de capotão de tamanho oficial? Esses eram uma raridade, raridade mesmo. Uma bola Drible de couro, costurada à mão, de tamanho número cinco, grandona, era muito cara; naquela época ela era um desejo praticamente impossível de ser alcançado pela esmagadora maioria dos meninos do Canto do Rio.
Contudo, às vezes, os desejos mais difíceis podem ser atendidos, como num passe de mágica. Num dia, não me lembro de qual ano, eu e meus amigos esperávamos alguém com uma bola e eis que de repente, não mais que de repente (como no poema de Vinícius de Moraes), apareceu um menino que chegava acompanhado pelo pai. Ele era muito diferente dos meninos dali, comigo incluso, era alto, do tipo forte e tinha o rosto claro e rosado. Apresentou-se como Johnny, num português com sotaque engraçado, pelo menos eu achei engraçado. E, o que é mais importante: ele trazia consigo uma bola de capotão oficial, branquinha, lindona.
Johnny era americano e ficaria no Brasil por algum tempo. No tempo que ficou em Americana, ele virou o verdadeiro "dono da bola". Acredito que nenhum outro gringo tenha sido tão bem recebido e tão festejado como ele. Acredito que ele mesmo não saiba disso, com certeza. Brincamos muito com a bola de capotão do Johnny. Ele foi o primeiro americano que conheci pessoalmente. Conhecíamos os descendentes dos confederados, um americano legítimo como ele estava num outro nível e, ainda mais, ele tinha uma bola de capotão número cinco.
Um dia o Johnny foi embora e levou consigo a bola de capotão, nada mai justo. Um americano que gostava de futebol naquela época era uma raridade, a posse da bola era muito mais que merecida. Todavia, o mundo é sempre uma caixinha de surpresas.
Muitos anos mais tarde, quando trabalhava como professor no Departamento de Economia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) foi que fiquei sabendo o nome completo do Johnny, John Cowart Dawsey. Ele foi professor da UNIMEP entre 1989 e 1996, conforme informa o seu Currículo Lattes. Eu, por minha vez, lecionei na universidade entre 1987 e 2006. Jung chama essas coincidências, que ele não considera assim, de sincronicidade.
Hoje, o Johnny (John Cowart Dawsey) é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e vejo, pelo seu Lattes, que ele é um pesquisador produtivo. Ele é uma espécie de "dono da bola" na sua área de conhecimento. Os comentários que ouço sobre ele são sempre abonadores Quanto ao futebol, tenho informações que ele continua gostando do esporte bretão como antes. Só que agora ele não é mais uma raridade, pois muitos americanos gostam de futebol, mas o menino Johnny foi um pioneiro nesta questão, isto ninguém tira dele.
PS.: A história é verdadeira, aconteceu mesmo. Resolvi transformá-la numa crônica, numa crônica sobre o futebol das crianças em tempos difíceis. A bola é um símbolo, um desejo, é um meio e, ao mesmo tempo um objetivo. Não é o jogador que atinge a meta (o gol), mas a bola chutada por ele. Por ser redonda, não sabemos onde começa e onde termina, o que é um enigma. Por ser redonda ela rola, se não rolasse, o futebol não seria possível. A posse de uma bola de qualidade era na minha infância uma forma de poder. Todavia, o poder tinha que ser exercido de forma democrática, porque não dá para jogar futebol sozinho. Esta é a beleza desse esporte: o "dono da bola" tem que dividir a bola para poder jogar.
O roubo da bola de capotão
Devia ser o ano de 1966, já faz muito tempo, é difícil precisar a data depois de tantos anos decorridos. Éramos um grupo de meninos, todos bem crianças mesmo, nem púberes éramos ainda. O que nos ligava eram as muitas brincadeiras de rua e o futebol, muitas vezes jogado nas ruas também. Para esse esporte improvisávamos bolas quando não as tínhamos, enchendo meias velhas com trapos, dando-lhes uma forma o mais arredondada possível.
O município de Americana (SP) era pequeno naquela época e, apesar de não muito distante do centro da cidade, o lugar onde morávamos poderia ser visto como periférico. Outra coisa que nos ligava era a pobreza, pois poucos escapavam dessa condição naquela vizinhança. Havia muitos meninos no nosso grupo, muitos mesmo, e, num dado momento, não sei exatamente porque e como, desejamos montar um time de futebol, para disputarmos partidas com outros times infantis que existiam na cidade. Achávamo-nos bons de bola o suficiente. Só precisávamos de uma boa bola de capotão.
Um desejo não atendido ou, melhor, impossibilitado de ser atendido, pode levar-nos a fazer coisas não recomendadas pela moral e os bons costumes. Na infância, quando a personalidade está em construção, quando a noção de certo e errado é ainda muito movediça, o "Diabo pode atentar", como diziam os mais velhos. Um dia ele chegou e atentou. Alguns garotos, às escondidas do restante do grupo, foram até o centro da cidade atrás de uma bola, mas só um deles teve a coragem de fazer o combinado. Ele dirigiu-se até a porta de uma loja de produtos esportivos e, quando notou que ninguém estava olhando, pegou uma bola que estava em exposição perto da porta e sumiu, sem que ninguém percebesse.
No mesmo dia ele apareceu no terreno onde brincávamos como uma bola velha, caindo aos pedaços, como costumeiramente fazíamos. Chegou todo orgulhoso, ostentando a bola de capotão de tamanho oficial, acho que era uma Drible; a cor, eu tenho certeza, era branca. Contou-nos o ocorrido e pediu segredo, acho que tinha receio de que seus pais soubessem. Foi assim que conseguimos a nossa bola, de uma forma nem um pouco convencional e lícita. Muito mais tarde é que fui compreender que o nosso silêncio colocou-nos como cúmplices. Este é um aprendizado mais refinado e eles vem com o tempo, com o amadurecimento.
Já tínhamos a bola, mas faltava o jogo de camisas. Quanto a esse objetivo, agimos coletivamente e fizemos uma campanha na vizinhança, pedindo ajuda a todos os nossos conhecidos e parentes, juntando um pouco aqui, um pouco ali. Deu certo, muitos contribuíram e conseguimos comprar o jogo de camisas na loja onde a bola foi roubada. Fizemos isso sem pensar. Talvez fosse a única loja que vendia jogos de camisas, talvez... não sei... Viramos um time, de fato. Adotamos como nome do time o nome do nosso bairro, se não me falha a memória, já se vão cinquenta anos.
O garoto que conseguiu a bola era o nosso melhor jogador, um craque mesmo, era o que eu achava. O tempo foi passando, passando e passou. O nosso time já não mais existia, tornei-me adolescente e cursava o ginásio. Nessa época, num dia qualquer, tomei um baita susto com uma notícia que me chegou, não me lembro exatamente como. Aquele nosso craque foi pego em flagrante furtando dinheiro do escritório onde trabalhava como office-boy. Lembro que a minha cabeça girou: será que deveríamos ter contado aos seus pais sobre o delito cometido? será que seus pais realmente não sabiam? será? será? Confesso que senti alguma culpa, culpa mesmo, pois isso nunca me saiu da cabeça. Caramba! que bela bola era aquela... Como devolvê-la? Como perder o nosso objeto desejado? Será que o Diabo morava nos nossos desejos, como acreditavam os mais velhos? Com o passar dos anos eu fui percebendo que eles tinham razão.
Depois desse episódio nunca mais tive notícias do garoto bom de bola. Pelo que sei ele, que era menor de idade à época, parou por aí. Nunca mais tivemos notícias de nenhum outro acontecimento ilegal. Acho que o susto de ser pego e o fato de ficar à disposição e vigiado pelo Juizado de Menores por algum tempo serviu para corrigir os desvios de caráter. Ainda bem. Naqueles tempos Americana era uma cidade tranquila, com baixo nível de criminalidade. Lembro-me que andávamos à pé pelas madrugadas, voltando de festinhas e nunca corríamos perigos. Fatos como o que relatei eram bem raros e muito mais raros eram os episódios envolvendo violência; quando acontecia algum, era uma espantosa comoção pública.
O tempo foi passando, passando e chegamos aos dias atuais. Hoje, Americana conta com uma estrutura desportiva ampla e pública esparramada pela cidade, o que não acontecia na minha infância. Assim, acredito que o grande desejo dos meninos da cidade não deve ser uma bola de futebol, pois vejo que muitos têm e, quando não têm, a Prefeitura tem e todos podem jogar. Na minha infância, ter uma boa quadra desportiva, um bom campo de futebol e uma boa bola era o máximo. Poucos tinham acesso, só as crianças oriundas de famílias mais ricas de fato tinham, já que elas frequentavam clubes privados, inacessíveis à maioria da população.
E daí, acabaram-se os desejos? Não, de jeito nenhum. Vivemos numa sociedade que produz desejos, muitos desejos, um após o outro. Todo dia um novo desejo é criado, sem que nos demos conta. Hoje as crianças desejam tênis de marca, vídeo games, celulares etc. Os desejos são criados de forma bem mais ostensiva que nos anos sessenta do século passado, quando ainda não éramos, de fato, uma autêntica "sociedade de consumo". Os desejos são criados, mas o acesso a eles ainda não é para todos. O acesso só é possível aos que têm renda, isso que Keynes (economista britânico) chamou de demanda efetiva. Assim, o sonho de ter um tênis bacana na infância não é para todos. Quem nunca ouviu falar de um menino que se viu obrigado a tirar seu tênis por "meninos de rua" e voltar descalço para casa? Eu já, várias vezes.
A criação contínua de desejos, os mais variados possíveis, pela propaganda a serviço da indústria numa sociedade muito desigual como a nossa não pode ser considerada uma coisa boa e, de fato, não é. O aumento da violência, com destaque para os furtos praticados por menores de idade, é um bom exemplo disso. Exigir que crianças, seres em formação, sublimem seus desejos, quando eles são diuturnamente enfiados nas suas pequenas cabeças pelos meios de comunicação, parece-me no mínimo um contrassenso. Na verdade, considero uma grande hipocrisia, pois tentam inculcar a culpa nas vítimas. A hipocrisia é a marca, a grife mais conhecida, da sociedade de consumo.
Quando escrevo estas palavras, sei que muitos entre aqueles que nunca se sentiram privados do acesso aos bens de consumo talvez não consigam compreendê-las. Para compreendê-las é preciso que saiam do seu mundo protegido, indo além dos seusbunkers, os condomínios fechados e os shopping centers protegidos, e se coloquem no lugar dos excluídos, dos muitos excluídos. Eles são muitos mesmo. Não é uma tarefa fácil em tempos tão individualistas, egoístas mesmo, como os tempos atuais, mas é uma tarefa necessária. O colocar-se no lugar dos que sofrem é um ato de caridade, é a verdadeira caridade propugnada pelo cristianismo, que encontra as suas raízes na compaixão. Estamos num país majoritariamente cristão, ou não? Será que somos como aqueles fariseus, aos quais Jesus chamava de sepulcros caiados, que agem como zeladores prestimosos dos bons costumes, das leis, que são belos na aparência e podres por dentro? Aliás, o que conta na sociedade de consumo é a aparência; trata-se de uma sociedade farisaica. Alguém discorda?
Caminho para as Índias 1: o retorno de Narciso
Estávamos na segunda metade do ano de 1974, já caminhando para o fim do ano, quando, num fim de tarde, um rapaz bem cabeludo e barbudo, com uma mochila enorme nas costas, trajando uma jaqueta jeans surrada pelo uso, subiu as escadas da sede da União Estudantil Americanense - UEA (1), entidade da qual eu fui um dos dirigentes, localizada em frente à Praça Comendador Muller, no centro da cidade, num sobrado onde poucos anos antes funcionou a Câmara Municipal. Rapidamente ele foi reconhecido pelos presentes e eu era um deles; tratava-se de Narciso, um jovem de Americana (SP) que, há mais ou menos um ano, resolveu sair vagando pelo Brasil como hippie, algo que era bastante comum naqueles tempos.
Contou-nos resumidamente sobre as suas andanças, que foram muitas e, em seguida rumou à residência de sua mãe, que se tratava de um apartamento localizado na região central da cidade, se não me engano, é muito tempo para a minha memória. A passagem de hippies por Americana era bastante comum à época. O mais corriqueiro era eles apearem na estação ferroviária e seguirem a pé até a Praça Comendador Muller, onde estendiam panos no chão para exporem os seus artesanatos, que consistiam, na maioria das vezes, de bijuterias feitas com fios de cobre. Rapidamente, juntavam-se pessoas no entorno deles, principalmente pessoas do sexo feminino, interessadas nos artefatos à venda. Não foi assim com Narciso, que não estava de passagem, pois ele voltava para casa, abandonando a sua vida nômade. A sede da UEA foi a sua primeira parada na cidade antes que ele rumasse a sua antiga moradia.
Os dias que se seguiram é que foram interessantes. Nas suas andanças pelo país, Narciso acabou passando algum tempo com seguidores da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishina, ou simplesmente ISKCON (International Society for Krishna Consciousness), conhecida popularmente como "Movimento Hare Krishina", no Estado do Rio de Janeiro. Ele nos contou sobre o Movimento e o que aprendeu sobre Krishina e o hinduísmo. Narciso era um bom contador de histórias, admito. Tudo aquilo, principalmente naquela época, era muito estranho para mim e para meus companheiros da União Estudantil. O Oriente era um imenso mistério.
A coisa não parou por aí, pois ele trouxe na sua mochila uma boa quantidade de incenso. Foi a primeira vez que vi incensos de vareta, antes só conhecia o incenso da igreja católica, aquele que era queimado no turíbulo. A partir dos seus incensos e do mantra que Narciso nos ensinou (Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare/ Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare), começamos a realizar um ritual antes de nossas reuniões, acedendo incensos e repetindo o mantra 108 vezes, marcados nas contas do Japa Mala (rosário indiano com 108 contas) do nosso amigo. Fazíamos isso dançando em círculos. Confesso que era muito agradável, é o que a minha memória indica, apesar da já significativa longevidade temporal. Fizemos o ritual muitas vezes e acho que deixamos de fazê-lo por conta do término dos incensos. Naquela época não havia em Americana uma lojinha de produtos "esotéricos".
No ano de 1974, eu li pela primeira vez um romance do escritor alemão Hermann Hesse (1877 - 1962). Tinha lido Demian, escrito em 1917, e aquele pequeno contato com a Índia, através do jovem Narciso, levou-me a ler Sidarta (1922), que se trata de uma rica interpretação pessoal do autor sobre as correntes filosóficas do Oriente. Hesse era filho de pais missionários protestantes que pregaram o cristianismo na Índia. Veio daí o seu interesse inicial pelo Oriente, mas o interesse definitivo aconteceu a partir de sua viagem à Índia em 1911. Algum tempo depois, ele teve contato com a psicologia analítica por meio de um discípulo de Carl Gustav Jung. Então, estas duas influências seriam decisivas no posterior desenvolvimento da obra de Hermann Hesse. Eu, por minha vez, no ano de 1974, tornei-me leitor fervoroso do escritor alemão e através dele fui desenvolvendo minhas impressões sobre o Oriente.
Este meu breve relato foi o meu primeiro contato com o mundo oriental. A partir daí outros surgirão, todos de forma inusitada, até que, no ano de 2007, farei a minha primeira viagem à Índia, que será uma experiência também inusitada, inusitada mesmo. Interrompo a minha narrativa por aqui, pois pretendo relatar as várias experiências anteriores à primeira viagem e as que acontecerão na sequência, nos anos posteriores a 2007. Aguardem!
O sapo e os morangos
É comum, extremamente comum, encontrar o morango como campeão disparado nos resultados de pesquisas sobre a presença de agrotóxicos em alimentos. Ele tem a casca fina e rugosa, o que o torna adequado ao armazenamento de resíduos. Além disso, ele tem um ciclo curto de floração e frutificação, não dando tempo para os venenos se dissiparem. Para agravar a situação, muitos produtores costumam usar componentes químicos que não deveriam ser utilizados no seu cultivo; um deles é a vinclozolina, que se trata de um fungicida muito usado na cultura do feijão (1).
Além de usarem agrotóxicos, é corriqueiro os agricultores brasileiros não respeitarem as normas de uso dos pesticidas que, muitas vezes, eles desconhecem. Outra coisa muito importante que geralmente passa ao largo é o intervalo de segurança, ou seja, o tempo entre a aplicação do veneno e a colheita dos alimentos. É comum a colheita acontecer antes do período indicado, aquele que, em tese, garantiria a dissolução do veneno. No caso do morango, como foi dito acima, a situação é bem mais grave, pois o tamanho do seu ciclo nem permite uma dissolução adequada. Conclusão: só coma morangos orgânicos, estes não contêm resíduos de agrotóxicos.
Por que estou falando de morangos? Simples, porque eu já plantei morangos. No início dos anos 80, eu morava com meus pais em Americana (SP), num bairro periférico chamado Jardim Alvorada. A nossa casa tinha um quintal de bom tamanho e como meu pai havia se aposentado, ele se dedicava ao cultivo de hortaliças. Nenhum produto químico era usado na plantação, pois ela era fertilizada com esterco de gado bovino. A terra era muito rica em microbiodiversidade, com a presença de muitos insetos benignos e de minhocas, muitas minhocas... Meu pai, o senhor Aristides, que era um amante da pesca, tinha um estoque infindável de iscas de excelente qualidade a sua disposição. Desde aquela época descobri empiricamente uma verdade: um solo saudável produzirá plantas saudáveis (ver meu artigo "Meditações a partir da horta doméstica da minha casa", neste blog (2)).
Eu, no auge da minha juventude, trabalhava numa jornada de oito horas diárias e nas horas vagas exercia a minha militância política, que era muito intensa. Não me sobrava muito tempo, não tinha o mesmo tempo que meu pai para me dedicar à horticultura. Mesmo assim, resolvi fazer alguma coisa, resolvi plantar morangos. Comecei com um canteiro pequeno e rapidamente o seu tamanho multiplicou-se. Como o meu pai, no trato da sua horta, eu nunca usava agroquímicos e para fertilizar a terra também usava o esterco bovino, que era bem disponível na região por conta do Instituto de Zootecnia de Nova Odessa (IZ), que fazia divisa com o nosso bairro. Para garantir que os morangos não se sujassem em contato com a terra do canteiro, eu espalhava palha de arroz entre as mudas, funcionava muito bem e, além disso, tal proteção saía-me gratuita e era natural, bem diferente daqueles plásticos que os agricultores estendem no chão, entre os pés de morangos.
Num dia qualquer, enquanto eu cuidava da minha plantação, retirando com as mãos o mato que crescia no meio dela, acabei por encontrar escondido entre as folhagens um sapo. Era um sapo grande, grande mesmo. Olhei para ele, achei-o bonito, imponente, e decidi que ele poderia permanecer no quintal, se ele assim o desejasse. Falei com meus pais sobre isso. Eles, que nasceram e cresceram no meio rural, não estranharam. Assim, o sapo lá permaneceu por muito tempo.
Estabelecemos uma parceria útil aos dois lados: o sapo tinha a moradia garantida num terreno úmido e cheio de bichinhos e, em contrapartida, ele controlava a população de insetos para mim, comendo-os. Acho que tinha comida em quantidade suficiente, pois a sua permanência estendeu-se por um tempo bem longo, não consigo precisar quanto.
Tanto a horta do meu pai como a minha plantação de morango prosperaram. A horta era mais que suficiente para o nosso consumo e, por conta disso, os vizinhos começaram a comprar hortaliças do nosso quintal. Isso garantia uma renda extra, que era muito bem-vinda. Por sua vez, a produção de morangos, que só aumentava, levou-me a intentar outras experiências. Comecei a produzir geleia de morango e aprendi a fazer tortas iguais àquelas que vemos nas prateleiras envidraçadas das confeitarias. Contudo tinha uma diferença, eu costumava fazer tortas enormes, do tamanho de pizzas, com muitos morangos. Era um certo exagero, confesso, mas eram saborosíssimas, pois afirmo, sem nenhuma dúvida: os morangos orgânicos são muito mais saborosos, acreditem!
A minha parceria com o sapo foi longa e muito útil, sem dúvida nenhuma. Aliás ele acabou se tornando um tipo de animal doméstico e como qualquer animal desse tipo, vivia tentando entrar em casa. A minha mãe, a dona Aparecida, enxotava-o com uma vassoura, mas ele sempre tentava... Um dia, assim como ele tinha aparecido, ele desapareceu. Acredito que tenha se cansado da vida longe dos animais da sua espécie e tenha resolvido voltar ao seu brejo de origem. Perto da minha casa, nas terras do IZ, passava o rio Quilombo e nas suas margens normalmente alagadas deveriam existir muitos sapos. Acho que ele voltou para lá depois de viver uma experiência diferente entre animais de outra espécie.
Eu, por minha vez, continuei produzindo morangos e fazendo geleias e tortas. Só parei com essas atividades quando me mudei de Americana. Corria o ano de 1986, quando eu e minha namorada Claudia decidimos morar juntos e nos mudarmos para Bauru (SP), por conta de mudanças no campo do trabalho. Meu pai continuou com a sua horta, mas não se interessou pelos morangos. Depois disso nunca mais os plantei, mas sei como fazê-lo, garanto! Hoje cuido de uma horta na minha residência em Campinas, mas não consigo ver espaço suficiente para iniciar um cultivo de morangos; o terreno livre da minha casa em Campinas (SP) é menor que o de Americana. Contudo, a ideia não me sai da cabeça e, de alguma forma, pretendo pô-la em prática, algum dia... Se algum sapo aparecer e topar uma parceria, será bem vindo.
(1) Ranking do veneno (artigo extraído da revista Saúde). Disponível em: http://www.agrisustentavel.com/toxicos/ranking.htm. Acesso: 30 de maio de 2015.
(2) http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2015/02/meditacoes-partir-da-horta-domestica-da.html
PS.: Informe-se sobre a agroecologia e sobre os alimentos saudáveis. A internet tem muitos sites que tratam do assunto; o endereço citado acima é um deles.
É de graça! Sobre a necessidade da refazenda.
Lembro-me que, antes de me mudar com a minha família do meio rural do município de Borborema (SP) para a zona urbana de Americana (SP), no ano de 1963, eu nunca havia presenciado o comércio de frutas. Confesso que estranhei muito. Nos sítios, além das várias lavouras temporárias e dos cafezais, existiam pomares com grande variedade de frutas e, conforme cada época do ano, cada árvore frutífera oferecia a todos, de forma gratuita, os seus frutos. Trago na memória a época da jabuticaba, da goiaba e da manga, que eram as frutas que mais me atraiam. Por sua vez, mamões, bananas e melancias existiam o tempo todo, não eram frutas de época, não eram temporãs.
A partir do momento que passei a morar na cidade, a abundância frutífera e a gratuidade desapareceram. Demorou muito para me acostumar com o fato de que só comeria frutas se as comprasse na quitanda. Assim, por conta da pobreza, a minha alimentação piorou muito na cidade. Lembro-me nitidamente que havia no meio rural uma saudável troca de produtos entre os vizinhos, era uma troca permanente e rotineira. Até mesmo nas cidades pequenas tal fenômeno existia, pois era comum a existência de pomares e hortas nas residências urbanas. A gratuidade e a troca não mercantil ainda faziam parte do cotidiano das pessoas nos anos sessenta do século passado.
Hoje, quando a maioria esmagadora da população mora no meio urbano, as famílias perderam o hábito de cultivar pomares e hortas como antigamente se fazia e, por conta disso, o hábito da troca também desapareceu. Para muitos, esses hábitos chegam a parecer uma aberração, de tão comprometidos que estão com a ideia de que tudo tem um preço e que só é possível conseguir as coisas pagando com dinheiro por elas. A gratuidade parece algo pecaminoso, um pecado contra o mercado, contra a economia de mercado. Além disso, muitos se incomodam com a natureza no meio urbano; quem nunca ouviu alguém dizer que uma árvore frutífera suja a calçada? O afastamento da natureza é tal que muitas pessoas consideram folhas, flores e frutos como sujeira. Quem nunca viu uma senhora neurótica varrendo o tempo todo as folhas da calçada?
Vou contar uma história. Nos anos de 1988 e 1989, eu morei com minha família no bairro Santa Genebra em Campinas (SP). Ao lado da minha casa morava uma mulher neurótica por limpeza, que se incomodava demais com as folhas que caíam das árvores. Teve um dia que ele se irritou tanto e passou muito mal, tendo que ser internada num hospital. As folhas caíam e ela varria e, mal ela acabava de varrer, as folhas caíam de novo e ela retomava a varrição e assim sucessivamente... Ela não conseguia deixar a calçada livre das folhas e isso a deixava doente. A saída que sua família encontrou foi contratar um garoto que ficava atento o tempo todo às folhas cadentes para varrê-las de imediato. Parece loucura, mas foi assim mesmo que aconteceu.
Todavia, mesmo no meio urbano, é comum encontrar ruas ou áreas livres com árvores frutíferas plantadas. É provável que algum migrante saudoso do meio rural e do estilo de vida gratuito tenha generosamente plantado as árvores para que qualquer transeunte pudesse delas se beneficiar. Trata-se de altruísmo verdadeiro, pois o benefício atinge os desconhecidos, incluindo aí os passarinhos e outros animais que também aproveitam as frutas da época.
A natureza tornou-se estranha para muita gente, muita gente mesmo, e será preciso que elas retomem o contato com ela para que, a partir daí, tornem-se suas defensoras.Muito do processo de destruição ambiental vem da ignorância das pessoas sobre a natureza e os fenômenos naturais. Fazer hortas domésticas e plantar árvores frutíferas nas casas, nas ruas e nos espaços públicos ajudam na interiorização do entendimento de que o alimento do nosso corpo vem da terra, da sua fertilidade, e que não tem nenhum problema ela nos oferecer os seus frutos gratuitamente, pois é assim que acontece na natureza selvagem, não controlada pelo mercado, pelo capital. Não é nenhum pecado apanhar uma fruta do pé e não pagar por ela. Meu Deus! colocamos preço em tudo...
Vou mais longe, pois considero que deveria ser uma política pública a disseminação de árvores frutíferas pelas praças, parques, ruas, avenidas escolas etc. Além disso, as prefeituras poderiam estimular nos habitantes o hábito do cultivo de hortas e pomares nas suas residências. Acho que a segurança alimentar dos cidadãos aumentaria bastante com isso e, mais importante ainda, esse poderia ser o começo da reconexão com a natureza, que é essencial no atual momento do planeta Terra. Estou sugerindo uma refazendacomo aquela da belíssima canção de Gilberto Gil, que nos ensina que a vida vem em ciclos, nos moldes da natureza:
Refazenda
Abacateiro acataremos teu ato
Nós também somos do mato como o pato e o leão
Aguardaremos brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração
Abacateiro teu recolhimento é justamente
O significado da palavra temporão
Enquanto o tempo não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão
Abacateiro sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem o seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro doce manga venha ser também
Abacateiro serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário da leveza pelo ar
Abacateiro saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba
Brincando de fazer poesia em 1975: lembranças do velho Kennedy
Fuçando em arquivos antigos, encontrei um poema que escrevi quando fazia o colegial no Instituto de Educação Estadual Presidente Kennedy (IEEPK) em Americana (SP), nos idos de 1975. Lembrei-me daqueles bons tempos, da boa qualidade de ensino e dos muitos bons professores que tive; foram muitos, muitos mesmo. Lembrei-me em particular do professor Wilson Camargo (português, literatura etc.), que primava pela didática impecável e pela imensa erudição. Hoje, eu avalio que construí, naqueles tempos, naquela escola, uma base sólida de conhecimentos que serviu como salvo conduto (ainda serve) na minha caminhada intelectual mundo afora. Só tenho agradecimentos. Segue a história do poema.
Depois de uma aula de filosofia (acho que era filosofia, faz muito tempo...) do terceiro colegial no velho Kennedy eu escrevi um poema, reportando-me ao assunto da aula; acredito que, com os parcos recursos teórico-filosóficos que dispunha naquela época, apesar de ser um bom aluno e um ávido leitor sobre os mais variados assuntos, consegui expressar-me sobre o lado utilitarista e neurótico das relações humanas, que pode ser estremado em determinadas circunstâncias.
A aula havia tratado da subjetividade dos valores. Era mais ou menos assim, bem simples: tem valor aquilo que é útil, aquilo que satisfaz uma necessidade (física ou psíquica); quando um objeto desejado torna-se difícil de ser alcançado, seu valor tende a aumentar, podendo, inclusive, tornar-se uma obsessão, uma doença, e isso pode produzir consequências funestas. É disso que fala o poema, que fiz por pura brincadeira nos idos de 1975 ao final de uma aula.
Em homenagem ao Kennedy, aos professores e aos alunos, meus inesquecíveis colegas de caminhada daqueles tempos (como esquecê-los?), vamos ao poema:
TEORIA DOS VALORES
João gostava de Maria,
portanto uma necessidade Maria era
ao psiquismo joanino.
Se necessária era,
alguma coisa ela valia.
João precisava dos valores de Maria,
para reencontrar o perdido do equilíbrio
ou o equilíbrio do perdido.
Mas Maria indiferente
não percebia a não indiferença
do desequilibrado João.
João desesperou-se,
tinha que preencher esse vazio;
valorizou-se de cachaça,
valeu-se de um revolver
e desvalorizou Maria.
João saiu desesperado, gritando
que a vida nada valia
e, desvalorizado,
meteu um tiro no ouvido.
Zildo Gallo - Americana (SP), 27 de agosto de 1975
PS.: Cursei o ginásio e o colégio no IEEPK, mas os quatro anos do curso primário eu cursei no Centro Educacional SESI 101, na Vila Frezarim (1964-1967). Tenho boas lembranças da minha turma, das professoras (Dona Zenaide e Dona Sônia) e, hoje, consigo avaliar como boa a qualidade do ensino que recebi naquela escola.