sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Sobre a crise do paradigma da civilização ocidental: uma introdução

Zildo Gallo


Para se compreender a crise por qual passa o planeta Terra neste momento da sua história, uma crise que se espraia pela economia, pela sociedade e pelo meio ambiente, é preciso também que se busque a compreensão da crise que se abateu sobre o mundo da ciência a partir da segunda metade do século XX. Assim, deve-se retroceder no tempo, voltando aos primórdios da Revolução Científica, a partir do século XVII, e verificar como nasceu e se formou o atual paradigma, a visão de mundo que serve de baliza ao conhecimento da civilização base­ada na tecnologia e na indústria.
Todavia, caso se queira fazer uma análise mais profunda da relação do ser humano  com a natureza, que é uma questão central no paradigma ocidental, há que se  recuar ainda mais no tempo, pois a separação homem-natureza é uma característica central na filosofia ocidental, cuja matriz localiza-se na Grécia e Roma clássicas. O ocidente  nem sempre foi assim; houve uma época em que o modo de pensar a natureza era antagônico ao da atualidade, pois o mundo dos filósofos pré-socráticos era bastante diferente. Para os gregos, até mesmo após os pré-socráticos, o psíquico também pertencia ao mundo das coisas naturais, fazia parte da physis. Na mitologia grega os deuses não são apenas entidades sobrenaturais, eles integram a natureza e tudo na natureza tem alma. A alma habita a physis, concedendo-lhe a sua inte­ligência, afastando-a, então, da anarquia e do caos. Esta concepção de que as divindades, nas suas mais variadas formas, perten­cem ao mundo natural caracteriza todo o pensa­mento pré-socrático.
Com os filósofos Platão e Aristóteles é que começa um menosprezo à natureza e um maior apreço ao homem e às ideias. Acontece, a partir daí, uma desqualificação dos antigos filósofos, que passam a representar a expres­são de um pen­samento “mítico” e não filosófico. Mais adiante, com a influência judaico-cristã, a oposição homem-natureza e espírito-matéria adquiriu outra dimensão. Para os cristãos, Deus criou o homem à sua imagem e seme­lhança e, assim, ele passou a ser dotado de um privilégio em relação aos demais seres da natureza. Também com o advento do cristianismo, o Deus ocidental subiu aos céus e, instalado em lugar privilegiado, apartado da natureza, atua soberano sobre o mundo material im­perfeito do dia-a-dia dos mortais.
Com o tempo, durante o transcorrer da Idade Média, ao assimilar as filo­sofias de Platão e Aristóteles, o cristianismo consolidou definitivamente a separação entre espírito e matéria. Platão discorria que apenas a “ideia” era per­feita, em oposição à imper­feição da realidade mundana. O cristianismo medievo fará a sua leitura particular de Platão e do platonismo, opondo a realidade divina à imperfeição do mundo material. Com a difusão e crescimento do cris­tianismo, eliminando as antigas reli­giões politeístas do território europeu, os seres divinos não mais habitam a matéria, como na concepção pré-socrática.
Contudo, foi com o filósofo francês René Descartes, em seu Discurso sobre o Método, no sé­culo XVII, que a oposição homem-natureza, espírito-matéria, sujeito-objeto (res cogitans versus res extensa) ficou mais completa, transformando-se no eixo do pensamento ocidental. Dois aspectos do pensar cartesiano marcam a modernidade: 1) o cará­ter pragmático do conhecimento em clara oposição à filosofia especulativa; 2) o antropocen­trismo, o homem é colocado no centro do mundo e torna-se sujeito em relação aos objetos exteriores, em relação à natureza. Estes aspectos provocam dois desdo­bramentos: 1) o cartesianismo passa a ver a natureza como um recurso, um meio para atingir um fim; 2) o homem, possuidor do método científico, pode mergulhar nos mistérios da natureza e, então, tornar-se senhor da natureza, à imagem e semelhança de Deus, que ele acredita ser.
Curiosamente, no mesmo século XVII, Baruch de Spinoza, um contemporâ­neo de René Descartes, desenvolveu concepções diferentes, antagônicas ao pensamento cartesiano. Para ele Deus está em tudo e tudo está em Deus; o universo visível é corpo de Deus e a energia que move o universo é o Seu espí­rito. Spinoza traz Deus de volta ao mundo. Para o filósofo francês a vida consiste em três entidades separadas: um corpo mecânico, um espírito pensante e, acima dos dois, o espírito de Deus. Já Spi­noza combina as três entidades em uma única. Para ele, Deus não está acima do ser, mas dentro de cada ser. Então, o corpo, a inteligência e o espírito são três as­pectos de uma realidade única. O mundo material é o corpo de Deus, o pensamento que o contem­pla é a Sua inteligência e a energia que o move é o Seu espírito.
Por que as concepções de Spinoza não tiveram a mesma projeção que as concepções cartesianas? Por que o ocidente aceitou sem resistências a ideia da separação? Alguns fatores podem ter influen­ciado nessa preferên­cia. Baruch de Spinoza era filho de judeus portugueses num mundo majoritariamente cristão. Sua família saiu de Portugal, fugindo da persegui­ção católica, e fixou residência na Holanda. Esse país foi palco de uma grande ironia: Baruch que significa abençoado em hebraico foi excomungado pela sina­goga de Amsterdã pelas mesmas razões, as suas ideias, que o fariam vítima do Santo Ofício caso fosse católico como era René Descartes, que não chegou a sofrer grandes perseguições. Spinoza ficou sem lugar no mundo. Além disso, o pensamento cartesiano  estava em pleno acordo com o mundo que emergia da Idade Média, marcadamente pragmático e fundamentado na ciência e na técnica, o mundo da burguesia florescente. A filo­sofia do Movimento Iluminista, do século XVIII, consagrará em definitivo o filósofo fran­cês e limpará o pensamento renascentista dos seus últimos traços reli­giosos.
Definitivamente, o antropocentrismo vitorioso legitimará a capacidade hu­mana de dominar a natureza. Por sua vez, a natureza despovoada de deuses, trans­formou-se em objeto e, como objeto, pode ser cortada, dividida, modificada e até destruída. Com o ad­vento da Revolução Industrial essa concepção será levada aos extremos. O século XIX assistirá a vitória do racionalismo e do pragmatismo; a ciência e a tecnologia assumirão, a partir daí, um papel central na existência hu­mana, o que acabará criando, com o correr do tempo separa­ções problemáticas no próprio mundo científico. Num primeiro momento, as ciências da natureza separaram-se das humanidades, criando,desse modo,um abismo entre uma e outra. Hoje, a ecologia enquanto saber e o movimento ecológico denunciam os malefícios dessa divisão.
Outra consequência importante da separação entre homem e natureza, pro­movida pela Revolução Científica é a excessiva fragmentação das ciências. A pri­meira grande divisão que ocorreu foi entre as ciências naturais e as humanas. A partir daí os dois grupos seguem, cada um do seu lado, subdividindo-se continua­mente e produzindo, com esse movimento, um amontoado de especialidades. As especializações, se por um lado estimu­lam um maior conhecimento sobre questões específicas, por outro lado limitam a visão do todo.
As ciências organizaram-se mantendo uma forte separação entre o ser humano e a natureza. Na Zoologia, e parte da Medicina, por exemplo, considera-se o homem como ser natural, desconsiderando a sua sociabilidade. Nas humanidades o homem social é estudado na an­tropologia, na sociologia, na economia, na história, na psicologia, mas  separando-o da natureza. Por sua vez, as ciências naturais desconsideram o poder do homem para transformar e destruir a Natu­reza.
A economia, por exemplo, que teria grande facilidade para promover a integração entre homem e natureza, tampouco o faz. A teoria econômica concen­tra-se em enxergar o mundo apenas pelo lado social, estudando as relações sociais de produção e de troca. Ela se rela­ciona com a natureza considerando-a apenas como uma base de recursos, os chamados recursos naturais. Falta à teoria econômica uma visão mais ampla do processo natural. Não é por acaso que as intervenções econômicas sobre a natureza têm provocado muitos problemas ambientais.
Contribuiu muito para todo este processo de fragmentação do saber a arrogância com que o ocidente vive o seu sonho de poder, a ideia de que o homem é, efetivamente, a imagem e seme­lhança de Deus. O conhecimento tem sido utilizado para justificar as suas ações, desconsiderando as críti­cas e, muitas vezes, dando o caráter de verdade absoluta a certas crenças. Na cultura ocidental, as ciências e as religiões são vistas como saberes concluí­dos, fechados, e isto lhes proporciona uma arrogância própria. O conhecimento disciplinar e a educação têm priorizado os saberes concluídos, ini­bindo a criação de novos saberes. O mundo ocidental, por conta da sua peculiar arrogância intelectual, também tem sido imper­meável à penetração de conheci­mentos de outra origem, no caso os do mundo oriental.
Contudo, alguns avanços já estão acontecendo nos espaços con­sagrados ao conhecimento, os templos da modernidade, as escolas tradicionais, as academias. A disciplinaridade evoluiu para a multidisciplinaridade e tem evoluído com dificuldade para a interdisciplinaridade, que é o diálogo permanente entre os saberes. Todavia, o avanço real, que abre novas possibilidades para o saber, é a transdisciplinaridade, onde os limites de cada ciência são rompidos e elas se interpenetram. Isto só é possível com o fim da arrogância científica. A transdisciplinaridade, ao assumir a incompletude  dos seres humanos, acaba por rejeitar a arro­gância do saber concluído e das certezas pré-estabelecidas e, então, pode propor a humildade da busca permanente. Isto posto, há que se concluir que uma ampla revi­são das ciências é necessária; um olhar-se para dentro de cada um dos cientistas é mais que bem-vindo para o bem da humanidade e da Terra.

Referência
GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu (SP): Ottoni Editora, 2007. 130 p.


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