Zildo Gallo
Rodriguinho
e Manoela eram, na sua infância, dois amigos inseparáveis no minúsculo vilarejo
de Santa Filomena. Estudavam na mesma escola, a única do local, faziam as
lições de casa juntos, brincavam juntos também e tinham um grande amigo em
comum, o senhor Chiquinho, um velhinho muito simpático que tinha para mais de
setenta anos de idade, acho que bem para mais, e que era um grande contador de
histórias.
Em
Santa Filomena havia um ribeirão cercado de árvores, muitas árvores, com águas
transparentes, o Córrego dos Cascudos, onde os três amigos iam pescar com muita
frequência. As pescarias serviam para justificar as longas conversas recheadas
de muitas histórias, a maioria delas baseadas na vida real e fictícia do velho
Chiquinho, todas elas entremeadas de fantasias, muitas fantasias, uma mais fantástica
que a outra.
A
última pescaria do trio amistoso terá desdobramentos incríveis no futuro, muito
após o momento em que ela acontecia, num futuro bem distante. Num dia em que os
peixes passavam ao largo dos anzóis, nem beliscavam, e o senhor Chiquinho
estava muito inspirado, contando histórias mil, de repente, a vara de
Rodriguinho vergou-se para baixo. Parecia peixe grande. Ele ergueu o caniço
rápido e com força e, para sua surpresa, o que viu não foi um peixe, mas uma
botina enganchada no anzol.
Foi
só risada, muita risada mesmo... O senhor Chiquinho aproveitou o fato para
contar muitas histórias sobre objetos estranhos retirados das águas nas suas pescarias,
nas pescarias de toda a sua vida. Aquele dia não rendeu nenhum peixe, mas valeu
a pena pela diversão. Todavia, o menino levou a botina velha como troféu para
casa, tinha ideias na cabeça...
O
garoto veio ao mundo com habilidades artísticas inatas e, por conta disso,
resolveu transformar o calçado velho e danificado numa obra de arte. Limpou e
secou a botina; pintou-a com tinta amarela e desenhou escamas, muitas escamas,
com traços finos de tinta preta; desenhou olhos, boca e nadadeiras; colou a
sola numa base de madeira e escreveu em letras maiúsculas: PEIXE BOTINA. Ficou
uma belezura...
Rodriguinho
resolveu presentear seu amigo com a sua obra de arte e, assim, lá se foram as
duas crianças até a sua casa. Lágrimas de emoção rolaram pelas faces comovidas
do bom velhinho. Foi uma tarde comprida de muita conversa e muita história. Foi
a última rodada de histórias, pois Chiquinho caiu doente, acamado, e passou
muito rápido para o outro lado da vida. Foi muito dolorido para os dois amigos
inseparáveis.
O
menino resolveu ficar com o PEIXE BOTINA como lembrança de seu amigão do peito.
Mas as dores da separação não pararam por aí; pouco tempo depois a família de
Rodriguinho teve que se mudar para a Cidade Grande, bem longe, muito longe de
Santa Filomena. Novamente, grandes dores para ele e sua melhor amiga. E o tempo
passou... passou... passou... O tempo costuma anestesiar as dores. Eliminá-las
mesmo é muito difícil.
Rodrigo
não era mais Rodriguinho, virou adulto e tornou-se um artista plástico famoso,
famoso mesmo... Pintava, esculpia, desenhava com bico-de-pena e montava
mosaicos coloridos. Suas exposições faziam sucesso e em todas elas ele levava o
seu PEIXE BOTINA, mas sempre grudava um recado bem grande nele, com letras
maiúsculas: NÃO ESTÁ À VENDA.
O
PEIXE BOTINA foi a sua primeira "grande obra" e tornou-se uma espécie
de moeda número um do Tio Patinhas (personagem dos gibis da sua infância),
transformou-se num precioso talismã. Inspirado nela, ele começou a produzir
peças artísticas a partir de objetos abandonados pelas pessoas. Deu certo!
Para
confirmar o poder do talismã, certo dia, numa certa exposição, lotada de gente,
Rodrigo vê adentrar uma moça diferente. "Nossa, que mulher bonita" -
pensou. Firmou a vista e prestou mais atenção naquela moça com jaqueta jeans,
cabelos pretos compridos e olhos grandes e pretos como jabuticabas. Ela lhe
abriu um sorriso largo.
_
Manoela! É você?
Aqui
termina esta história, a história do PEIXE BOTINA. Quem quiser que imagine a
sua continuidade.
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